domingo, maio 24, 2020

Opinião alheia - "Covid-19: medo não é solução"

Pelas ruas vejo muitas máscaras, algumas no chão, e vejo respeito pelo distanciamento social. Continua o comportamento exemplar e proactivo da sociedade portuguesa. Desde o cidadão comum aos vários sectores da economia, às instituições e até às altas figuras da governação, como o nosso Presidente da República. Vejo todos empenhados em dar o seu melhor, com diversidade nas ideias e interpretação dos factos.
Mas também vejo medo na sociedade. Medo de olhar para os factos. Medo de usar o conhecimento. Medo de agir com base no conhecimento. Eu próprio também tenho receios. Temo que, com o aumento da mobilidade que vai resultar numa subida dos casos de infecção, pois estamos no princípio dos princípios da pandemia, se regresse ao confinamento. Que não se consigam proteger os grupos de risco. Que o Serviço Nacional de Saúde fique sobrecarregado. Que as ruas fiquem outra vez desertas. Que seja dado um passo atrás e não à frente. Que se fique à espera de uma vacina que provavelmente virá, mas demorará tempo. E não podemos ficar confinados à espera.
É possível prever o comportamento deste vírus? Será que vai tornar-se endémico? Provavelmente sim
A ciência tem aqui um papel essencial e decisivo. Esta não é a primeira pandemia e este não é o primeiro vírus. É um vírus novo na população humana, mas não é um tipo de vírus desconhecido. Pertence a uma família que conhecemos bem. Regularmente somos infectados com vários coronavírus e sabemos muito sobre os coronavírus. Foram descobertos há mais de 80 anos em galinhas com doença respiratória. Todos os anos ensino aos meus alunos de Medicina, os futuros médicos, que vários coronavírus provocam infecções respiratórias e intestinais ligeiras em humanos. Que nos reinfectam regularmente ao longo da nossa vida e que geram uma imunidade de curta duração. E que se estes vírus nos infectarem num estado debilitado, assim como os microrganismos em geral, podem provocar doença grave e morte. E este coronavírus, o SARS-CoV-2 que provoca a doença covid-19, será como os coronavírus que conhecemos? É possível prever o seu comportamento? Será que vai entrar em equilíbrio com a população mundial e tornar-se endémico? Apesar de não conhecermos tudo sobre este vírus, mas com base no conhecimento que temos sobre esta família viral, a resposta a estas perguntas será, muito provavelmente, sim, sim e sim.
Para todas as doenças há situações que fogem do normal, são raras, como a mulher de 113 anos saudável que recupera de covid-19 ou a criança de três anos que desenvolve síndrome de Kawasaki. E isto confunde e gera medo.
E então, como é que podemos usar a ciência para solucionar esta pandemia? Construindo uma imunidade na população contra o SARS-CoV-2. Como? Por infecção natural ou por vacinação. Não havendo vacina, será possível construir imunidade de grupo com infecção natural mitigada, protecção dos grupos de risco e perda mínima de vida humana? Sim. Neste momento existem cerca de três milhões de pessoas infectadas confirmadas em estado ligeiro de doença (98%) e cerca de 2% em estado clínico grave ou crítico. Os primeiros estudos serológicos permitem inferir que existem, pelo menos, 10 vezes mais infectados assintomáticos. Com base nestes dados, a proporção estimada de casos clínicos graves ou críticos seria de 0,18%, e não de 2%. Estes factos revelam que o vírus é atenuado. E que se pode construir a imunidade de grupo com medidas inteligentes de mitigação — ou seja, (1) combinação de testes de diagnóstico e serológico; (2) identificação e isolamento de infectados; (3) quarentena preventiva dos contactos, e (4) protecção dos grupos de risco (seguindo exemplarmente as recomendações da Direcção-Geral da Saúde e outras instituições). E à medida que essa imunidade de grupo se vai construindo, mais eficaz se torna a protecção dos grupos de risco e mais liberdade a sociedade reconquista. Até que se deixará de usar máscaras e se voltará a dar abraços. Sem medo (texto de opinião do virologista PEDRO SIMAS, no Expresso, com a devida vénia)

Sem comentários: