domingo, abril 17, 2022

Le Monde Diplomatique: Quem são os falcões russos?


A invasão da Ucrânia por parte de Moscovo assinala a vitória de uma corrente de pensamento que preconiza, desde a queda da União Soviética, um confronto militar e civilizacional com o Ocidente. Se a ideologia só em parte explica uma decisão cujos meandros são geopolíticos e militares, a influência crescente desses «falcões» russos contribuiu para o movimento de passagem à guerra.

A 26 de Fevereiro de 2022, no dia em comemorava os seus 84 anos, o escritor russo Aleksandr Prokhanov dava uma entrevista em directo do cockpit de um avião de combate que sobrevoava a Ucrânia. Frente aos seus olhos, o sonho que tinha de reconstituir o império soviético ganhava forma por via da violência: «Sobrevoo a terra negra ucraniana que os tanques russos atravessam, corrigindo a ferida monstruosa cometida contra a história russa em 1991. (…) Hoje, voltamo-nos a casar com a Ucrânia».

Prokhanov é um dos chefes de fila dos «nacionais-patriotas». Esta corrente de pensamento forma-se, a partir da Perestroïka (1985-1991), em oposição aos «ocidentalistas» (zapadniki) e «liberais-democratas». Ela juntava, nessa época, intelectuais nostálgicos da Rússia imperial tradicionalista e o establishment político-militar soviético contrário à liberalização do país conduzida pelo último dirigente soviético, Mikhail Gorbatchov. Ao longo da década de 1990, o jornal fundado por Prokhanov, o Zavtra (Amanhã), torna-se o ponto de encontro da oposição ao presidente russo Boris Ieltsin. Entre os colunistas regulares incluem-se seguidores de Estaline, nacionalistas, padres ortodoxos monárquicos ou ainda muçulmanos tradicionalistas. O pensador euro-asiático Alexandre Douguine. que defende a especificidade civilizacional da Rússia separada do Ocidente, o escritor nacional-bolchevique Edouard Limonov ou ainda o líder do Partido Comunista, Guennadi Ziuganov, estão ali lado a lado. Esta mistura ecléctica estabelece-se em torno de uma crítica virulenta à democracia pós-soviética, à liberalização da economia, ao poder dos oligarcas, à ocidentalização da sociedade e à hegemonia estado-unidense sobre a ordem internacional. «Ieltsin matou 2 200 000 russos», titula o Zavtra em 1995, acusando a política económica de Ieltsin de perpetuar um «genocídio».

Os nacionais-patriotas partilham uma aspiração comum: a reconstituição de um Estado forte que faria a síntese dos períodos da história russa, aliando os valores tradicionais e espirituais do império czarista com o poderio militar e tecnológico da União Soviética. Embora este grupo permaneça na oposição, uma parte das suas ideias é recuperada pelo poder aquando do desencadear da Guerra da Tchetchénia, em 1994. O regime procura então construir um novo patriotismo de Estado em torno da luta contra o separatismo. Em 1996, Ieltsin cria uma comissão governamental para definir «a ideia nacional» da Rússia pós-soviética.

No final do século, vários acontecimentos importantes provocam a rejeição do liberalismo e do Ocidente, bem como o crescimento do patriotismo no seio da opinião pública russa: a crise financeira de 1998 e a desvalorização brutal do rublo, o alargamento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) à Hungria, à Polónia e à República Checa, os bombardeamentos da Sérvia pela OTAN em 1999 sem mandato da Organização das Nações Unidas (ONU) e a segunda Guerra da Tchetchénia. Este contexto favorece a emergência de uma nova geração de intelectuais, os Jovens Conservadores. Nascidos nos anos 1970, estes novos «falcões» russos já não sentem a nostalgia da União Soviética que caracteriza os seus companheiros mais velhos nacionais-patriotas. Mas estes especialistas da filosofia religiosa, do conservadorismo político e do nacionalismo, formados na Universidade Estatal de Moscovo (MGU), estendem a sua crítica à globalização e apresentam a sua vontade de promover a soberania do Estado russo e o seu estatuto de grande potência.

Na política, a chegada de Vladimir Putin à presidência no ano 2000 confirma uma viragem conservadora. O novo chefe de Estado pretende fortalecer a centralização do Estado e restaurar a «verticalidade do poder». A partir de 2004, os falcões russos são progressivamente instados a contribuir para o contra-ataque ideológico que o Kremlin estabelece em resposta às «revoluções coloridas» pró-ocidentais no espaço pós-soviético. Vladislav Surkov, o subchefe da administração presidencial e principal ideólogo do partido presidencial Rússia Unida, teoriza, em 2006, o conceito de «democracia soberana» para justificar o carácter autoritário do Estado russo. Douguine e Prokhanov são exortados pelo partido a fazerem conferências junto dos movimentos juvenis pró-governamentais Nashi (Os Nossos) e Molodaia Gvardiia (A Jovem Guarda). As suas carreiras levantam voo. Douguine é nomeado professor de Filosofia na Universidade de Moscovo em 2006. Prokhanov torna-se um convidado frequente dos programas de debate apresentados pelo famoso jornalista próximo do poder Vladimir Soloviev, no canal televisivo NTV. Os Jovens Conservadores, por seu turno, promovem um clube de reflexão no seio do partido, o Clube Russo, encarregado de formular uma resposta pró-governamental ao nacionalismo étnico anti-Kremlin, que seguia de vento em popa.

Uma viragem antiocidental na política externa

Em 2007, as intervenções de Putin assumem de forma mais decidida uma parte do discurso dos falcões. Encontra-se nelas a ideia de «segurança espiritual», que associa a protecção da identidade religiosa russa a uma questão de segurança nacional. «As religiões tradicionais da Federação Russa e o escudo nuclear da Rússia são duas coisas que reforçam o Estado russo e criam as condições necessárias para assegurar a segurança interna e externa do país», declara ele, a 1 de Fevereiro de 2007, frente a uma plateia de jornalistas russos e estrangeiros. No mesmo ano, na Conferência sobre Segurança de Munique, a sua condenação da unipolaridade da ordem mundial marca uma viragem antiocidental na sua política externa. (Le Monde Diplomatique, texto da jornalista Juliette Faure)

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