sábado, novembro 20, 2021

As rotas, os negócios via Uber e os menores recrutados pelos traficantes



As principais rotas do tráfico de droga em Portugal identificadas num relatório da PSP, a que o Expresso teve acesso, têm como pontos estratégicos o Algarve, Lisboa e Porto, as três regiões que fornecem o resto do país. E é assim que funcionam. A capital está identificada como um dos pontos de abastecimento de heroína, cocaína e MDMA para Beja, ou haxixe para Castelo Branco, “existindo ligações entre os traficantes das duas áreas geográficas”. Os dealers de Lisboa fornecem Coim­bra e Figueira da Foz com heroí­na, cocaína e haxixe. Já para Évora seguem heroína, cocaína e haxixe, enquanto para Faro é enviada cocaína e heroína. No Norte, o Porto é tido como um dos principais locais de abastecimento de droga a Bragança, Mirandela, Aveiro, Espinho e Ovar. Os traficantes destas cidades deslocam-se até à Invicta para comprar todo o tipo de estupefacientes. O relatório revela que os dealers dos Bairros do Aleixo e Pinheiro Torres, no Porto, garantem a introdução de cocaína em Coimbra e Figueira da Foz.

Já o Algarve “é um dos pontos de remessa” de cocaína e haxixe para Beja, existindo também “ligações” entre os traficantes algarvios e os de Castelo Branco. Do Algarve parte muito do haxixe que se encontra à venda nas ruas de Coimbra, Santarém e Setúbal.

Um “número considerável” de moradores de bairros problemáticos “nutre maior simpatia pelos traficantes do que pela polícia”

O documento interno da PSP coordenado pelo Núcleo de Análise Criminal revela algumas tendências deste crime e fenómenos que se encontram escondidos da maior parte da população. A pandemia acelerou-os, pois intensificaram-se as “encomendas” realizadas através de aplicações como o WhatsApp, Signal, Messenger ou Telegram. Os fornecedores passaram a entregar a droga em qualquer local do país, “incluindo a venda ao domicílio” levada a cabo pelo próprio traficante ou através de colaboradores. Mas realmente criativa é a distribuição da droga com recurso a transportadores, “que aproveitam e utilizam ilicitamente as plataformas de distribuição, tais como a Uber ou a Glovo”. O produto é pago pelo consumidor através “de diversas plataformas digitais, como o MB Way, o Revolut ou o PayPal”.

Uma das mais importantes redes de tráfico que operava em Oeiras, e que foi desmantelada pela PSP em maio, usava precisamente esta técnica. Um mês antes da operação, os investigadores foram surpreendidos com o modus operandi da transação numa escuta telefónica entre J.B., um habitual comprador de droga de Mem Martins (Sintra), e o seu dealer G.F., de Paço de Arcos. A meio da conversa, o clien­te propôs enviar um estafeta da Glovo para levantar a droga, que ficaria escondida numa caixa de telemóvel. O dealer aceitou a ideia e tudo correu sem sobressaltos; sem o saber, o motorista da Glovo recolheu e entregou o produto. O pagamento foi feito por MB Way.

Contactada pelo Expresso, a Glovo garante ter “diversos protocolos para prevenir qualquer incidente” e colaborar “com as autoridades competentes nesse sentido”. Já a Uber assegura que os motoristas ou estafetas envolvidos em qualquer atividade criminosa “são imediatamente banidos”, reforçando que apoiam as investigações através da sua equipa LERT (Law Enforcement Response Team).

MENORES NO TRÁFICO

Preocupante é o recrutamento de jovens e menores para o negócio ilegal da venda de droga. “As bancas de droga lideradas por traficantes de grandes quantidades recrutam jovens oriundos do próprio bairro (ou outros bairros da periferia) para executar e encabeçar as bancas de droga. Verifica-se igualmente que os traficantes utilizam consumidores e por vezes menores para acondicio­nar o produto estupefaciente e proceder à venda a consumidores que se desloquem a estas zonas urbanas sensíveis”, pode ler-se no relatório.

Uma fonte da PSP confirma que os menores são usados sobretudo para avisar os traficantes quando existe a suspeita da chegada da polícia. Mas há casos de dealers que aproveitam os telemóveis de menores que residem no mesmo bairro para fazerem os seus negócios. “É uma maneira de fugirem às escutas. Como recompensa, dão a esses menores um telefone novo.”

Um dos casos mais recentes identificados pela polícia envolveu dois rapazes de 14 anos, que eram cúmplices de uma rede de traficantes num bairro em Cascais. “Eram usados para fazer entregas de droga aos consumidores, bem como para guardar o haxixe e as armas dos traficantes”, conta a mesma fonte.

Nas chamadas zonas urbanas sensíveis de Lisboa não faltam esquemas para os traficantes fintarem e detetarem a polícia a tempo de não serem apanhados em flagrante. No Bairro das Galinheiras, em Lisboa, foi detetado um caso “caricato”, em que os gangues montaram um esquema curioso: inscreviam as matrículas dos carros usados pelas unidades da PSP numa caixa de eletricidade próxima da boca de droga. Assim, raramente eram surpreendidos pelas rusgas.

A PSP refere ainda que um “número considerável” dos moradores de bairros problemáticos “nutre maior simpatia pelos traficantes do que pela polícia”, “por serem colaboradores, familiares ou amigos” dos traficantes. Estes locais são “autênticas zonas de conforto” (Expresso, texto do jornalista HUGO FRANCO e infografia de JAIME FIGUEIREDO)

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