A pandemia provocou no ano passado a maior queda da economia em quase um século e o nível de endividamento público fixou um novo recorde, mas, paradoxalmente, João Leão conseguiu financiar a dívida com o custo mais baixo de sempre. Há dez anos, Teixeira dos Santos pagava 6% para vender títulos de muito curto prazo, que atualmente registam taxas negativas, e suportava um custo anual de financiamento que era o dobro do atual (ver artigo nesta página). Não é difícil descobrir rapidamente as diferenças no mercado da dívida olhando para as curvas dos juros na crise de então e na crise gerada pela covid-10 (ver gráfico).
DEZ ANOS DEPOIS DO
RESGATE
Durante cinco semanas, entre as edições de 1 e 30 de abril, o Expresso vai publicar uma série de artigos sobre a década que passou desde o resgate da troika em 2011 e sobre os seus impactos na economia portuguesa. Na dívida, na banca, nas empresas ou no crescimento.
A fuga súbita dos
investidores e os cofres vazios obrigaram o então ministro de José Sócrates a
admitir numa quarta-feira, a 6 de abril, que chegara a hora de pedir o resgate.
Dez anos depois, Leão enfrenta uma recuperação económica difícil, mas não tem
de lidar com uma crise de financiamento. A pandemia da covid-19 trouxe-lhe uma
prenda no meio da desgraça. Algo com que Teixeira dos Santos na época não podia
sequer sonhar. “Desta vez, o pragmatismo impôs-se à ideologia”, diz-nos Mark
Blyth, professor na Universidade de Brown, nos Estados Unidos. Os três pilares
da troika de então, hoje comportam-se de um modo que ninguém acreditaria há dez
anos.
Mesmo com um
recorde de dívida em quase 134% do produto interno bruto (PIB), João Leão
pagou, pela primeira vez na história, um juro negativo numa colocação de dívida
a dez anos em janeiro. Com a subida recente dos juros no mercado, em virtude do
contágio norte-americano, é provável que o ministro não repita a proeza. O
custo das novas emissões, em todos os prazos, que caiu de 1,1% em 2019 para
0,5% em 2020, já subiu em fevereiro para 0,9%. Mas continua em mínimos
históricos.
SOB O SIGNO DE
ERROS ALHEIOS...
Ora, há dez anos,
recorda Blyth, o autor de “Austeridade — A História de uma Ideia Perigosa”,
tudo era ao contrário. O BCE liderado por Jean-Claude Trichet subiu as taxas
diretoras e suspendeu as compras de dívida — incluindo a portuguesa – por seis
meses (ver pág. seguinte). Bruxelas estava dominada desde 2010 pela “ideologia
da austeridade”, diz o académico. O FMI acompanhava essa doutrina inspirada no
guru de Harvard, o economista italiano Alberto Alesina (que faleceu em maio do
ano passado), por muitos considerado o ‘pai’ da austeridade, apesar de ter
recusado o cognome em entrevista ao Expresso.
O ambiente geral
em que se movia Teixeira dos Santos, recorda Rui Pedro Esteves, professor no
Graduate Institute em Genebra, era um misto “dos erros do BCE sob a liderança
de Jean-Claude Trichet e sobretudo de mudança na politica para a contração
orçamental”. Portugal, depois da Irlanda, foi o país do euro com o maior grau
de austeridade entre 2010 e 2014, segundo um estudo publicado no portal Vox.eu
(ver gráfico).
A agravar ainda
mais a ideologia, diz Blyth, o FMI calculou mal os efeitos negativos
multiplicadores das medidas de austeridade. Um erro que só um ano depois
reconheceu. “Foi o FMI que acabou com a austeridade, é bem verdade”, conclui o
académico. Mas “a admissão do erro por Olivier Blanchard, então
economista-chefe do Fundo, de que tinham subestimado os multiplicadores durante
uma recessão, e deste modo contribuído para as políticas de austeridade, chegou
já tarde para fazer diferença”, reforça Paul de Grauwe, professor na London
School of Economics (LSE). A própria capacidade da União Europeia (UE) para se
mover noutra direção era limitada: “A UE não é uma lancha rápida, nem mesmo um
petroleiro. É mais um porta-contentores Evergreen que, por vezes, encalha”,
ironiza Filipe Garcia, presidente da consultora Informação de Mercados
Financeiros.
A situação interna
também não era favorável há dez anos, e em parte derivava de erros de política
económica do período em que Teixeira dos Santos teve a pasta das Finanças nos
Governos de Sócrates. Portugal sofria de vários desequilíbrios com mais de uma
década, recorda Ricardo Reis, professor na LSE. Para o colunista do Expresso,
havia uma soma negativa de crescimento fraco, défices e dívida em alta e bancos
entulhados em dívida pública.
…E VÍTIMA DOS
PRÓPRIOS ERROS
Teixeira dos
Santos viu o rácio da dívida ultrapassar os 100% do PIB em 2010, e o défice
disparar para mais de 11% do PIB, o mais alto em democracia. Num estudo
publicado no portal Vox.eu, Portugal apresentava a pior situação em termos de
conta externa e a segunda pior, depois da Grécia, em matéria orçamental (ver
gráfico). Eduardo Catroga recorda que, já em 2007, Blanchard avisava que “a
economia portuguesa está com sérios problemas” num artigo que publicou no
“Portuguese Economic Journal”.
A última tentativa
de ajustamento orçamental feita por Teixeira dos Santos iria por água abaixo. O
PEC4 seria chumbado no Parlamento por uma coligação negativa de toda a
oposição, de esquerda e de direita, e o primeiro-ministro José Sócrates pediu a
demissão. PEC4 era a sigla para o quarto Plano de Estabilidade e Crescimento,
um documento elaborado pelas Finanças, que apresentava medidas de austeridade
para os anos de 2011, 2012 e 2013 com vista à redução do défice orçamental.
Teixeira dos Santos esperava poupar até €7 mil milhões com as medidas de
controlo orçamental para 2011-2013.
Chumbado o PEC, o Governo entrou em gestão, e Teixeira dos Santos precipitou o pedido de resgate, levando Sócrates, nessa noite, a anunciá-lo oficialmente, depois de um Conselho de Ministros extraordinário. “Estávamos a dias do colapso de tesouraria. Não era possível atrasar mais”, conclui Ricardo Reis.
FRASES
“Não era possível
atrasar mais o resgate. Os mercados não iam esperar pela democracia”
Ricardo Reis,
Professor da London School of Economics, R. Unido
“Os erros do BCE
dirigido por Trichet foram a razão da crise da dívida”
Charles Wyplosz, Professor do Graduate Institute, Suíça
2011: O ANO DO
RESGATE
12 de janeiro
Portugal coloca
dívida a 10 anos pagando juro de 6,7%, perto do limiar vermelho de 7% admitido
por Teixeira dos Santos, em entrevista ao Expresso, em outubro do ano anterior
9 de março
Em leilão de
dívida a dois anos, Portugal paga 5,993%, no dia em que Cavaco Silva toma posse
do seu segundo mandato
23 de março
Toda a oposição no
Parlamento rejeita o PEC IV, apresentado pelo Governo. Sócrates pede demissão e
Governo entra em gestão
25 de março
BCE suspende
compra de dívida pública dos periféricos através do programa SMP, que dura até
agosto
1 de abril
Portugal vai ao
mercado pela última vez antes do resgate. Paga 5,793% na colocação de dívida a
14 meses. Só volta a realizar leilões de dívida em abril de 2014
6 de abril
”O dia mais longo
e difícil” de Teixeira dos Santos, em que o ministro admite em entrevista ao
“Jornal de Negócios” que é necessário recorrer a “mecanismos europeus de
financiamento”. Nessa noite, Sócrates anuncia pedido de resgate, depois de
Conselho de Ministros extraordinário
13 de abril
BCE sobe taxa
diretora para 1,25%
5 de maio
Governo aprova
memorando do resgate de €78 mil milhões pela troika para três anos. Ecofin
aprova resgate a 16
5 de junho
PSD ganha eleições
legislativas antecipadas. Governo de coligação PSD/CDS toma posse a 21
5 de julho
Moody’s corta
rating de Portugal, para ‘lixo financeiro’
13 de julho
BCE volta a subir
taxa diretora, agora para 1,5%
1 de agosto
Governo apresenta
Orçamento retificativo, aprovado pela coligação e com abstenção do PS
3 de outubro
Começa a recessão
na zona euro. Em Portugal iniciara-se no último trimestre de 2010
28 de outubro
Governo apresenta
2º Orçamento retificativo, aprovado pela coligação e com abstenção do PS
1 de novembro
Mario Draghi
assume presidência do BCE. Dia 9 corta taxa diretora para 1,25%. É a primeira
medida de retificação da política de Trichet
16 de novembro
Vítor Gaspar
declara que irá “mais além” da troika
23 de novembro
Comissão Europeia,
presidida por Barroso, lança “Green Paper”, propondo eurobonds. Acaba na gaveta
14 de dezembro
BCE corta taxa
diretora para 1%
31 de dezembro
BCE fecha carteira
de dívida portuguesa com €22,8 mil milhões de obrigações compradas através do
SMP. PIB português (Expresso, texto do jornalista JORGE NASCIMENTO RODRIGUES)
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