sábado, abril 03, 2021

O que tem Leão que Teixeira dos Santos não tinha?

 


A pandemia provocou no ano passado a maior queda da economia em quase um século e o nível de endividamento público fixou um novo recorde, mas, paradoxalmente, João Leão conseguiu financiar a dívida com o custo mais baixo de sempre. Há dez anos, Teixeira dos Santos pagava 6% para vender títulos de muito curto prazo, que atualmente registam taxas negativas, e suportava um custo anual de financiamento que era o dobro do atual (ver artigo nesta página). Não é difícil descobrir rapidamente as diferenças no mercado da dívida olhando para as curvas dos juros na crise de então e na crise gerada pela covid-10 (ver gráfico).

DEZ ANOS DEPOIS DO RESGATE

Durante cinco semanas, entre as edições de 1 e 30 de abril, o Expresso vai publicar uma série de artigos sobre a década que passou desde o resgate da troika em 2011 e sobre os seus impactos na economia portuguesa. Na dívida, na banca, nas empresas ou no crescimento.

A fuga súbita dos investidores e os cofres vazios obrigaram o então ministro de José Sócrates a admitir numa quarta-feira, a 6 de abril, que chegara a hora de pedir o resgate. Dez anos depois, Leão enfrenta uma recuperação económica difícil, mas não tem de lidar com uma crise de financiamento. A pandemia da covid-19 trouxe-lhe uma prenda no meio da desgraça. Algo com que Teixeira dos Santos na época não podia sequer sonhar. “Desta vez, o pragmatismo impôs-se à ideologia”, diz-nos Mark Blyth, professor na Universidade de Brown, nos Estados Unidos. Os três pilares da troika de então, hoje comportam-se de um modo que ninguém acreditaria há dez anos.


O Banco Central Europeu (BCE) tem um megapacote de compra de dívida pública que vai durar até, pelo menos, daqui a um ano. A Comissão Europeia vai manter a suspensão da aplicação das regras de austeridade orçamental ainda durante o próximo ano e tem uma ‘bazuca’ de €750 mil milhões prometida para financiar o período pós-pandemia. Leão pode até vir a contar com a revisão de algumas regras, admite o economista Eduardo Catroga, autor de “Desenvolver Portugal — Reflexões em Tempos de Pandemia”. “Poderá vir a vingar uma separação mais clara entre défices cíclicos e défices estruturais. Pode haver uma revisão do calendário da redução da dívida pública, alargando-o”, refere. O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) é, agora, o campeão da importância do investimento público. Um dos seus porta-vozes é o ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, um dos expoentes da política de austeridade no período da troika, que é responsável no FMI pelo principal documento de orientações orçamentais, o “Fiscal Monitor”, que em abril vai ser atualizado.

Mesmo com um recorde de dívida em quase 134% do produto interno bruto (PIB), João Leão pagou, pela primeira vez na história, um juro negativo numa colocação de dívida a dez anos em janeiro. Com a subida recente dos juros no mercado, em virtude do contágio norte-americano, é provável que o ministro não repita a proeza. O custo das novas emissões, em todos os prazos, que caiu de 1,1% em 2019 para 0,5% em 2020, já subiu em fevereiro para 0,9%. Mas continua em mínimos históricos.

SOB O SIGNO DE ERROS ALHEIOS...

Ora, há dez anos, recorda Blyth, o autor de “Austeridade — A História de uma Ideia Perigosa”, tudo era ao contrário. O BCE liderado por Jean-Claude Trichet subiu as taxas diretoras e suspendeu as compras de dívida — incluindo a portuguesa – por seis meses (ver pág. seguinte). Bruxelas estava dominada desde 2010 pela “ideologia da austeridade”, diz o académico. O FMI acompanhava essa doutrina inspirada no guru de Harvard, o economista italiano Alberto Alesina (que faleceu em maio do ano passado), por muitos considerado o ‘pai’ da austeridade, apesar de ter recusado o cognome em entrevista ao Expresso.

O ambiente geral em que se movia Teixeira dos Santos, recorda Rui Pedro Esteves, professor no Graduate Institute em Genebra, era um misto “dos erros do BCE sob a liderança de Jean-Claude Trichet e sobretudo de mudança na politica para a contração orçamental”. Portugal, depois da Irlanda, foi o país do euro com o maior grau de austeridade entre 2010 e 2014, segundo um estudo publicado no portal Vox.eu (ver gráfico).

A agravar ainda mais a ideologia, diz Blyth, o FMI calculou mal os efeitos negativos multiplicadores das medidas de austeridade. Um erro que só um ano depois reconheceu. “Foi o FMI que acabou com a austeridade, é bem verdade”, conclui o académico. Mas “a admissão do erro por Olivier Blanchard, então economista-chefe do Fundo, de que tinham subestimado os multiplicadores durante uma recessão, e deste modo contribuído para as políticas de austeridade, chegou já tarde para fazer diferença”, reforça Paul de Grauwe, professor na London School of Economics (LSE). A própria capacidade da União Europeia (UE) para se mover noutra direção era limitada: “A UE não é uma lancha rápida, nem mesmo um petroleiro. É mais um porta-contentores Evergreen que, por vezes, encalha”, ironiza Filipe Garcia, presidente da consultora Informação de Mercados Financeiros.

A situação interna também não era favorável há dez anos, e em parte derivava de erros de política económica do período em que Teixeira dos Santos teve a pasta das Finanças nos Governos de Sócrates. Portugal sofria de vários desequilíbrios com mais de uma década, recorda Ricardo Reis, professor na LSE. Para o colunista do Expresso, havia uma soma negativa de crescimento fraco, défices e dívida em alta e bancos entulhados em dívida pública.

…E VÍTIMA DOS PRÓPRIOS ERROS

Teixeira dos Santos viu o rácio da dívida ultrapassar os 100% do PIB em 2010, e o défice disparar para mais de 11% do PIB, o mais alto em democracia. Num estudo publicado no portal Vox.eu, Portugal apresentava a pior situação em termos de conta externa e a segunda pior, depois da Grécia, em matéria orçamental (ver gráfico). Eduardo Catroga recorda que, já em 2007, Blanchard avisava que “a economia portuguesa está com sérios problemas” num artigo que publicou no “Portuguese Economic Journal”.

A última tentativa de ajustamento orçamental feita por Teixeira dos Santos iria por água abaixo. O PEC4 seria chumbado no Parlamento por uma coligação negativa de toda a oposição, de esquerda e de direita, e o primeiro-ministro José Sócrates pediu a demissão. PEC4 era a sigla para o quarto Plano de Estabilidade e Crescimento, um documento elaborado pelas Finanças, que apresentava medidas de austeridade para os anos de 2011, 2012 e 2013 com vista à redução do défice orçamental. Teixeira dos Santos esperava poupar até €7 mil milhões com as medidas de controlo orçamental para 2011-2013.

Chumbado o PEC, o Governo entrou em gestão, e Teixeira dos Santos precipitou o pedido de resgate, levando Sócrates, nessa noite, a anunciá-lo oficialmente, depois de um Conselho de Ministros extraordinário. “Estávamos a dias do colapso de tesouraria. Não era possível atrasar mais”, conclui Ricardo Reis.

FRASES

“Não era possível atrasar mais o resgate. Os mercados não iam esperar pela democracia”

Ricardo Reis, Professor da London School of Economics, R. Unido

“Os erros do BCE dirigido por Trichet foram a razão da crise da dívida”

Charles Wyplosz, Professor do Graduate Institute, Suíça

2011: O ANO DO RESGATE

12 de janeiro

Portugal coloca dívida a 10 anos pagando juro de 6,7%, perto do limiar vermelho de 7% admitido por Teixeira dos Santos, em entrevista ao Expresso, em outubro do ano anterior

9 de março

Em leilão de dívida a dois anos, Portugal paga 5,993%, no dia em que Cavaco Silva toma posse do seu segundo mandato

23 de março

Toda a oposição no Parlamento rejeita o PEC IV, apresentado pelo Governo. Sócrates pede demissão e Governo entra em gestão

25 de março

BCE suspende compra de dívida pública dos periféricos através do programa SMP, que dura até agosto

1 de abril

Portugal vai ao mercado pela última vez antes do resgate. Paga 5,793% na colocação de dívida a 14 meses. Só volta a realizar leilões de dívida em abril de 2014

6 de abril

”O dia mais longo e difícil” de Teixeira dos Santos, em que o ministro admite em entrevista ao “Jornal de Negócios” que é necessário recorrer a “mecanismos europeus de financiamento”. Nessa noite, Sócrates anuncia pedido de resgate, depois de Conselho de Ministros extraordinário

13 de abril

BCE sobe taxa diretora para 1,25%

5 de maio

Governo aprova memorando do resgate de €78 mil milhões pela troika para três anos. Ecofin aprova resgate a 16

5 de junho

PSD ganha eleições legislativas antecipadas. Governo de coligação PSD/CDS toma posse a 21

5 de julho

Moody’s corta rating de Portugal, para ‘lixo financeiro’

13 de julho

BCE volta a subir taxa diretora, agora para 1,5%

1 de agosto

Governo apresenta Orçamento retificativo, aprovado pela coligação e com abstenção do PS

3 de outubro

Começa a recessão na zona euro. Em Portugal iniciara-se no último trimestre de 2010

28 de outubro

Governo apresenta 2º Orçamento retificativo, aprovado pela coligação e com abstenção do PS

1 de novembro

Mario Draghi assume presidência do BCE. Dia 9 corta taxa diretora para 1,25%. É a primeira medida de retificação da política de Trichet

16 de novembro

Vítor Gaspar declara que irá “mais além” da troika

23 de novembro

Comissão Europeia, presidida por Barroso, lança “Green Paper”, propondo eurobonds. Acaba na gaveta

14 de dezembro

BCE corta taxa diretora para 1%

31 de dezembro

BCE fecha carteira de dívida portuguesa com €22,8 mil milhões de obrigações compradas através do SMP. PIB português (Expresso, texto do jornalista JORGE NASCIMENTO RODRIGUES)

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