sábado, abril 24, 2021

Porque acreditamos em teorias da conspiração ou em 'fake news'

 

A tendência para encontrar explicações que se encaixem naquilo que já pensamos sobre o mundo, mesmo contra a evidência factual, é um elemento essencial. Outro é a construção da identidade pessoal a partir de certas posições que tomamos As vacinas contra a covid-19 são uma forma de implementar chips minúsculos a partir das quais as pessoas passam a estar controladas à distância. Ou são uma forma de esterilizar negros (ou muçulmanos, nos países muçulmanos). Também poderão ser simplesmente uma forma de a indústria farmacêutica ganhar dinheiro, após ter inventado uma pandemia falsa que convenceu o mundo inteiro de que as vacinas eram necessárias, com a cumplicidade dos governos e de muitos cientistas que estão dentro do negócio

Esta breve amostra das teorias da conspiração antivacina não é novidade, e há outras atualmente a correr. Vem a propósito lembrar que esse tipo de pensamento, frequentemente associado a momentos de angústia coletiva, se insere numa tradição longa de séculos, que tem normalmente os seus momentos de apogeu em fases de angústia coletiva. Há vinte anos, as teorias eram sobre o 11 de Setembro (foi obra dos judeus ou nunca existiu, conforme as teorias. A primeira era provada pelo facto de nenhum judeu ter ido trabalhar para o World Trade Center naquele dia fatal; a segunda, pela óbvia implausibilidade de as torres caírem daquela maneira, ou de aviões abrirem buracos como aqueles que vimos na televisão...).

Pouco antes, tinha havido as teorias sobre a morte da princesa Diana (obra de poderes ocultos que quiseram impedir que ela apoiasse os palestinianos; ou talvez do agora falecido príncipe Filipe, segundo garantia Mohamed al-Fayed, pai do namorado da princesa, Dodi al-Fayed, que morrera juntamente com ela no suposto acidente em Paris).

Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e as décadas de 70/80, com a Guerra Fria, a guerra do Vietname e as sucessivas convulsões sociais que abalaram muitos países, não tinham faltado conspirações para todos os gostos: da CIA, da China e da Rússia, para só citar alguns atores habituais. Muitas delas apareceram em filmes com titulos como "Os Três Dias do Condor" e "O Candidato da Manchúria". Os inimigos estavam em todo o lado, e cada pessoa tinha o seu predileto.

Além da CIA, da China e da Rússia, havia outros que eram de sempre, entre eles a maçonaria e os judeus. Estes gozam a trágica distinção de serem uma vítima ancestral de teorias da conspiração, desde os velhos mitos que os acusavam de matar crianças cristãs para usar o sangue delas em rituais até aos Protocolos de Sião, um documento que presumia confirmar um plano secreto de judeus dele para dominar o mundo.

Esse texto, na verdade, foi obra da polícia czarista russa, o que mostra que às vezes a Rússia e outros países estão mesmo por trás de conspirações bem reais. Podem é não ser aquelas que se julga.

UM FENÓMENO DA MODERNIDADE

Embora as teorias da conspiração sejam muito antigas, é a partir do Iluminismo, paradoxalmente, que elas começam realmente a florescer, como consequência de se ter passado a pensar que é o Homem, e não Deus, o principal responsável pelo que acontece no mundo - e que existe uma racionalidade essencial nas coisas que é tarefa do Homem descobrir.

"É a própria condição da modernidade que as torna (às teorias da conspiração) particularmente atraentes", escreveu Max Read na New York Magazine o ano passado. "Há séculos que vivemos num mundo cada vez mais conectado e interdependente, governado por arranjos instáveis e em mutação de instituições burocráticas e mercados livres. Em teoria, este mundo, é dirigido pela agência humana; na prática, a agência particular de cada indivíduo é fortemente limitada e com frequência irrelevante.

"Para pessoas a atravessar uma crise financeira ruinosa ou alterações climáticas devastadoras - ou mesmo mudanças sociais rápidas que não têm efeito material nas suas vidas", continua Read, "pode ser difícil entender uma cascata de eventos que parecem não ter nenhuma cadeia causal evidente, ou mesmo autores humanos identificáveis. Como se justifica um mundo que somos supostos dominar, mas é tão complexo que o seu funcionamento parece essencialmente opaco? Aí entra a teoria da conspiração".

Alguém disse que o que caracteriza as teorias da conspiração é a atribuição de intencionalidade, de um ato humano deliberado, a algo que muito provavelmente foi produto do acaso ou até da negligência. Também desempenha um papel a ideia intuitiva de um evento muito importante ter uma causa à sua medida, não podendo dever-se a um qualquer acaso ridículo.

O PRECONCEITO DE CONFIRMAÇÃO E OUTRAS DISTORÇÕES

O preconceito mais comum em jogo nas teorias da conspiração, segundo autores, porém, é aquilo a que em inglês se chama 'confirmation bias' (preconceito de confirmação, numa tradução à letra). A expressão refere- se à nossa tendência para encontrar explicações que se encaixam naquilo que já pensamos. Se achamos, por exemplo, que o mundo é dominado por uma determinada classe de pessoas, a nossa tendência será para lhe atribuirmos uma grande variedade de males sem explicação aparente. Ainda que a evidência factual contradiga essa explicação, muitas pessoas não se deixarão demover. O próprio desmentido factual, paradoxalmente, será tomado como confirmação da teoria que desmente literalmente.

Quanto mais profundas forem as nossas convicções, maior será a nossa resistência a versões opostas da realidade. A fé religiosa, as posições políticas de base e os estereótipos sociais são das áreas em que parece ser mais difícil que alguém mude de opinião sobre um assunto. Não é por acaso que uma boa parte dos apoiantes de Trump, por exemplo, continuam a achar que ele na realidade venceu a eleição presidencial de 2020, não obstante todas as evidências em contrário.

Outro fator em jogo, segundo cientistas políticos como Brendan Nyhan, parece ser a forma como as opiniões pessoais jogam com a autoimagem de uma pessoa. E não é só em matéria de política. Se a pessoa se tornou conhecida no seu meio como alguém que tem uma determinada posição, por exemplo, em relação ao valor protetor das máscaras ou o do distanciamento social contra a pandemia, dificilmente essa pessoa mudará de opinião ao fim de muitos meses, independentemente do consenso científico consensual que possa existir na matéria. As convicções em causa tornaram-se um elemento de identidade pessoal, e um laço entre as pessoas que defendem a mesma posição.

UM MECANISMO SEMELHANTE, VÍTIMAS REAIS

Segundo Seth Mnokin, autor de "The Panic Virus", "é difícil demonstrar a alguém que a sua leitura inicial de uma situação - o seu instinto, a sua reação visceral, o seu sentimento - está, de facto, errado (...). Duas pessoas inteligentes e razoáveis que discordam podem estar igualmente certas de que as provas apoiam a sua compreensão dos 'factos'. É neste momento que o 'confirmation bias', o avô de todos os preconceitos cognitivos, entra em jogo - quer dizer, é nesse preciso momento, quando devíamos procurar razões que expliquem podermos estar errados, que começamos a sobrevalorizar qualquer indicação que aponte para estarmos certos".

Mnokin acrescenta: "Isso é a parte da razão por que nos pode ser tão difícil compreender o método científico e aderir a ele. Vai contra a nossa natureza tentar descobrir maneiras de encontrar buracos nos nossos argumentos". O seu livro, que examina como os ativistas antivacina chegam às suas conclusões 'factuais', situa esse fenómeno no contexto de outros tipos de teorias da conspiração. Muitas das quais, tal como o movimento antivacina, acabam por fazer vítimas bastante reais (Expresso, texto do jornalista Luís M. Faria)

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