terça-feira, abril 20, 2021

Mercado mundial de vacinas ainda em construção

 

Quando, em outubro de 2019, a biotecnológica alemã BioNTech captou 150 milhões de dólares com a dispersão de parte do seu capital no Nasdaq, os seus fundadores, que haviam criado a empresa em 2008, estariam longe de adivinhar que pouco mais de um ano depois a empresa estaria a valer em bolsa quase dez vezes o valor de entrada naquela praça norte-americana. E recentemente as contas de 2020 da BioNTech confirmaram que a pandemia deu à empresa um impulso ímpar. A faturação anual da biotecnológica com sede em Mainz mais do que quadruplicou. E das receitas comerciais, de €303 milhões, a “fatia de leão” veio das vacinas para a covid-19: €270 milhões.

Desses €270 milhões, menos de um décimo (precisamente €20,6 milhões) veio das vendas diretas de vacinas para a covid-19 no mercado doméstico alemão. A maior parte da faturação resultou da parceria firmada com a norte-americana Pfizer, uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo, que aproveitou a especialização da BioNTech para dar resposta ao desafio global da vacinação.


Só no quarto trimestre de 2020 a BioNTech registou um lucro de €367 milhões, comparando com perdas de €58 milhões em igual período do ano anterior, o que mostra o poder de fogo que a vacina para a covid-19 teve para a biotecnológica alemã, em grande parte alavancada na aliança com a gigante Pfizer. Esta não seria, aliás, a única parceria empresarial à boleia da vacinação para a covid-19. Também a francesa Sanofi se juntou à britânica GSK, por exemplo. Tal como a alemã CureVac firmou parcerias com a Bayer e a GSK. A pandemia evidenciou, como nunca, a necessidade de cooperação entre companhias farmacêuticas. Permitiu encurtar dos convencionais 15 anos para apenas um o período de desenvolvimento e ensaios de novos produtos, pese embora várias das vacinas agora a entrar no mercado continuem a apresentar resultados polémicos, seja pelo nível de eficácia seja pelos efeitos adversos.

O MEU PAÍS PRIMEIRO

O que a pandemia expôs também foi um problema logístico que até hoje, mais de um ano após a primeira vaga, permanece por resolver: a falta de capacidade industrial para fabricar a quantidade de vacinas de que o mundo precisa com urgência.

O ritmo de produção em massa destas vacinas foi sobrestimado. Assumindo que cada vacina exige a administração de duas doses, são necessárias cerca de 11 mil milhões de doses para vacinar 70% da população mundial — o ponto em que se considera possível alcançar a imunidade de grupo. Mas, até à data, apenas 814 milhões de doses foram administradas em 152 países (de acordo com dados recolhidos pela “Bloomberg”), suficientes para vacinar apenas 5% da população mundial.


A ameaça de limitar o comércio internacional de vacinas “tende a prejudicar todos”, diz o economista Pita Barros. 
A vacinação contra a covid-19 é um desafio global, marcado por guerras entre Estados para serem os primeiros compradores, atrasos na distribuição de vacinas e, por vezes, prazos de entrega estipulados em contratos que não são cumpridos. De tal forma, que Bruxelas chegou mesmo a colocar em cima da mesa a hipótese de obrigar os fabricantes a partilharem as patentes e a ameaçar restringir as exportações de vacinas produzidas na UE para países que, como os Estados Unidos (EUA) ou o Reino Unido, têm retido as vacinas produzidas no mercado interno, numa lógica de my country first (‘o meu país primeiro’).


Algo que o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, chegou mesmo a pôr em prática, ao bloquear a exportação para a Austrália de 250 mil vacinas produzidas no país pela AstraZeneca/Oxford. Mas que pode trazer consequências negativas para a população. 
“A ameaça de limitar o comércio internacional de vacinas não é boa ideia em geral. Este tipo de ‘guerras comerciais’ tende a prejudicar todos”, defende o professor catedrático da Nova-SBE Pedro Pita Barros, especializado em Economia da Saúde. “O elemento central aqui é fazer com que as empresas cumpram os contratos que assumiram, em vez procurarem escapatórias. Colocar o problema ao nível das relações entre países implicitamente desresponsabiliza as empresas, o que não deverá suceder.”

QUEBRAR OU NÃO QUEBRAR?

Vários apelos têm surgido no espaço europeu, incluindo em Portugal, para que as patentes sejam quebradas. Muitos referem o facto de estarmos perante um cenário de catástrofe de saúde pública e de as empresas terem contado com financiamento público para o desenvolvimento das vacinas (ainda que as farmacêuticas asseverem que este representa uma pequena parte quando comparado com o seu investimento nas vacinas), criticando os lucros das farmacêuticas à boleia da covid-19. Recentemente, mais de 80 personalidades portuguesas — entre elas o ex-presidente do Infarmed José Aranda da Silva — apelaram para que as vacinas contra a covid-19 sejam consideradas um bem de interesse comum e para que Bruxelas não submeta este processo às leis do mercado.

Mas será que as licenças compulsórias (obrigatórias) ou as expropriações de patentes conseguiriam forçar o cumprimento dos prazos de entrega de vacinas por parte das farmacêuticas? Os especialistas ouvidos pelo Expresso consideram que não, uma vez que não resolveriam os atrasos na produção.


“Mesmo tendo uma licença das empresas titulares das patentes, os Estados teriam que ir bater à mesma porta para a produção da vacina”, explica o advogado especialista em propriedade intelectual António Andrade. “Há muito poucas empresas originadoras de investigação, com capacidade produtiva e tecnológica para produzi-la.” 
A melhor forma de maximizar a produção de vacinas passa pelos acordos comerciais, defendem as farmacêuticas. Para Pita Barros, as licenças compulsórias só resolvem os constrangimentos na entrega de vacinas “se houver possibilidades de licenciamento de produção que não estejam a ser exploradas neste momento”. “Se não houver possibilidade de alargar a produção, a quebra de patente não tem qualquer efeito”, sublinha, acrescentando que o preço, que seria também afetado, não é muito relevante, dados os contratos estabelecidos e o compromisso das empresas em não usarem os direitos de propriedade intelectual para fixarem preços elevados.


Quebrar patentes pode até ser contraproducente. “A patente pressupõe um monopólio que é concedido pelo Estado a uma determinada empresa (que tem o exclusivo da comercialização do medicamento ou vacina), com uma compensação para a comunidade: a divulgação pública da investigação e informação científica e tecnológica associada a esse medicamento ou vacina”, refere o sócio da Abreu Advogados António Andrade. “Com base nessa divulgação, será permitida uma investigação complementar mais rápida e eficiente relativamente a novas estirpes do vírus.” Ao quebrar-se a patente isto poderia perder-se e estar-se-ia a desincentivar a inovação e investigação futuras.

Para os especialistas, a melhor forma de maximizar a produção de vacinas passa pelo licenciamento por parte das empresas que têm os direitos de propriedade intelectual — “incluindo produção fora dos países da UE”, realça Pita Barros. A Sanofi, por exemplo, vai investir €400 milhões nos próximos cinco anos numa unidade de produção de ponta e tecnologia digital em Singapura para reforçar o fabrico de vacinas na região asiática. Mas é preciso apostar também na produção nos países em desenvolvimento, nota o economista, por forma a “assegurar que esses países beneficiam do esforço global de vacinação”.

Estes acordos comerciais já estão, aliás, a ser firmados entre as várias empresas com capacidade produtiva. A Moderna está “a trabalhar com parceiros de produção para disponibilizar a vacina” na Europa, como a Lonza na Suíça, a Rovi em Espanha e a Recipharm em França, adianta a empresa. A Sanofi Pasteur — embora ainda tenha as suas duas vacinas em fase de desenvolvimento clínico — cedeu as instalações de produção em Frankfurt à BioNTech e a fábrica em Marcy l’Etoile, em França, à Janssen, indica a diretora-geral da Sanofi Portugal, Helena Freitas. Já a Pfizer tem estabelecido parcerias externas para a produção e distribuição da sua vacina junto de outras empresas, como a Sanofi e a Novartis.

“O objetivo inicialmente fixado para a nossa produção, que era de 1100 milhões de doses para 2021, foi rapidamente ampliado para 1300 milhões”, diz Paulo Teixeira, diretor-geral da Pfizer Portugal. “Fruto das alterações à nossa produção e ao estabelecimento de parceiras elevámos a nossa meta para 2000 milhões de doses para o ano de 2021 e mais recentemente anunciámos que este objetivo foi ampliado para 2,5 mil milhões.” (Expresso, texto dos jornalistas MARIA JOÃO BOURBON e MIGUEL PRADO e infografia de SOFIA MIGUEL ROSA)

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