terça-feira, abril 20, 2021

Médicos lusodescendentes formados na Venezuela: Portugal não os quer, Itália e Espanha aproveitam

 

Impedidos de exercer medicina em Portugal, alguns lusovenezuelanos agarram as oportunidades que lhe oferecem outros países da União Europeia. Laura, que trabalhava num lar, foi para Itália tratar de doentes de covid-19 e acabou por exercer a sua especialidade. “Causa uma certa dor que no nosso país, para onde viemos a pensar em maiores oportunidades, o processo de reconhecimento dos nossos diplomas seja tão lento, demorado e até difícil”, lamenta. Christian, que em Portugal trabalha na construção civil, está a tratar da papelada para começar a trabalhar em Espanha.

A pandemia abriu a janela da esperança a dezenas de profissionais de saúde formados na Venezuela que desesperam por ver reconhecidas as suas valências académicas em Portugal. Mas essa expectativa não tem passado de ilusão. Alguns médicos — que ganham a vida a trabalhar na construção, em fábricas ou a fazer limpezas — têm-se virado para outros países europeus para exercerem a profissão que os apaixona e para a qual se sentem competentes.

É o caso de Laura Domínguez, médica neonatologista nascida na Venezuela há 52 anos, filha de pai português e a viver em Oiã, no distrito de Aveiro, desde outubro de 2019. Sem hipótese de exercer medicina em Portugal, está desde há semanas a trabalhar em Itália. “Cheguei a Itália para ajudar a lidar com a covid-19, mas quando viram que sou pediatra colocaram-me num serviço de neonatologia”, diz ao Expresso. “Estou muito grata porque, neste momento, estou a exercer a minha especialidade. Deram-me a oportunidade que Portugal não me deu.”

Laura faz parte de um grupo de 18 profissionais de saúde formados na Venezuela que correspondeu a um apelo da associação “Venezuela: A pequena Veneza”, criada em 2017 e sedeada em Roma, cujo nome alude à origem etimológica do nome do país sul-americano. Reforçou o dispositivo médico nos hospitais italianos. De Portugal foram quatro, de Espanha outros quatro, os restantes já viviam em Itália.

Foram contratados pela administração regional de Molise, região que tem muitos habitantes emigrados na Venezuela e que também acolhe uma expressiva comunidade venezuelana. Sem homologação académica reconhecida, ficaram aptos a exercer graças a uma derrogação temporária da obrigação do reconhecimento do título académico obtido no estrangeiro a profissionais de saúde (Artigo 13 do decreto “Cura Itália”, de 17 de março de 2020), no quadro do estado de emergência. “Não é uma homologação direta per se, é uma situação excecional”, esclarece Laura. “Mas pode abrir portas, face às necessidades.”

À ESPERA DAS PROVAS

Esta lusovenezuelana trabalha num hospital público em Campobasso, no sul de Itália. Tem contrato inicial de um mês, renovável em função da evolução da pandemia e dos recursos disponíveis para contratar pessoal. Laura está disposta a continuar o tempo que for preciso. “Em Portugal, só vou começar a fazer as provas em novembro, tenho muito tempo de espera. Há uma prova em novembro, outra em janeiro, depois outra em março… Quando me der conta, estamos em 2023 e o processo ainda não terminou.”

Para trabalhar em Itália, só teve de enviar documentação comprovativa da sua formação. “No trabalho não estou sozinha, estou com uma equipa médica que observa os meus procedimentos e avalia o meu trabalho. Em Portugal, podia também estar a ser acompanhada por outros médicos.”

Os 16 anos de experiência acumulados a trabalhar no público e no privado, em Caracas, levam-na a responder ao desafio em Itália com confiança. O principal obstáculo é a língua. “Mas muitas pessoas com quem trabalho aqui falam espanhol e inglês, e eu defendo-me nessas línguas. Mas estou a estudar italiano. Muitos médicos que estão aqui são ítalo-venezuelanos. Apoiamo-nos todos. A medicina é um trabalho em equipa. Estou feliz, é uma experiência boa e bonita.”

A DIFICULDADE DAS PROVAS

Laura Domínguez saiu da Venezuela com a filha adolescente, uma irmã e duas sobrinhas. Chegada a Portugal, começou a trabalhar em lares, onde fez de tudo um pouco e aproveitou para desenferrujar o português. A meio do ano passado, iniciou o processo de homologação do seu diploma na Universidade de Coimbra. “Pensava que tinha de apresentar-me a provas em novembro de 2020, mas disseram-me que era só em novembro de 2021.”

Com tanto tempo de espera, decidiu ir à luta. “Queria saber como era trabalhar num sistema de saúde da Europa. Aqui estou, fui muito bem recebida e sinto-me segura. Tem sido uma experiência excelente. Gostava que tivesse acontecido em Portugal…”, lamenta.

“Compreendo e concordo que os nossos documentos tenham de ser analisados, há que verificar que a pessoa é efetivamente médica. Mas com uma pandemia tão difícil em Portugal, as portas fecharam-se-nos. Acho que não confiam em nós, pensam que não somos médicos… os meus colegas que fizeram as provas dizem que são muito difíceis, e estão convencidos de que a ideia é não reconhecer o título...”

É o caso de Christian de Abreu, médico lusodescendente de 37 anos que vive em Esposende, no distrito de Braga, e que o Expresso entrevistou há sensivelmente um ano, quando ainda aguardava pelas provas. Já as fez: foi aprovado na de português e reprovou na prova escrita de conhecimentos de medicina. “A prova é feita não para médicos de clínica geral, mas para especialistas. Existe não para avaliar os médicos, mas para chumbá-los.”

Christian poderá repetir a prova em janeiro de 2022, mas não ficou à espera dessa oportunidade para organizar a vida. Presentemente, está a tratar da papelada em Vigo (Galiza) para exercer medicina em Espanha, o que espera que aconteça em breve.

IR QUATRO VEZES A VIGO NUMA SEMANA

O processo junto do Ministério da Educação e Formação Profissional já foi concluído. Agora, Christian está a tratar dos requisitos exigidos pelo Colégio Médico de Pontevedra. “Em Espanha, a burocracia reside no processo para arranjar trabalho, não no reconhecimento no grau”, diz. “Para os venezuelanos que vivem em Espanha o processo é muito mais rápido, os portugueses são estrangeiros.”

Christian realizou a primeira viagem a Espanha a 30 de outubro de 2020. Desde então, chegou a ir quatro vezes a Vigo na mesma semana. Quando começar a trabalhar em Espanha, continuará a viver em Portugal e a percorrer diariamente mais de 100 quilómetros para os dois lados. Nada que o preocupe, habituado que estava a distâncias muito maiores na Venezuela.

Por acordo entre os membros da União Europeia, um médico reconhecido por um Estado-membro pode exercer noutro país da UE se tiver exercido a profissão nesse país durante três anos. Mesmo perante essa possibilidade, o regresso de Christian a Portugal não é uma garantia, já que em Espanha os ordenados são mais altos.

Neste vaivém através da fronteira ibérica, o lusovenezuelano não esquece reações à sua situação. Numa das viagens, a 5 de fevereiro passado, deu boleia a quatro médicos na sua situação para irem tratar de burocracias numa agência tributária na Galiza. “Seguíamos cinco, no meu carro. Quando regressávamos, na fronteira, um agente do Serviço de Estrangeiros e Fronteira [SEF] interpelou-nos. Ficou muito surpreendido por haver médicos a atravessar a fronteira, com tanta necessidade deles em Portugal.”

Outra reação que o marcou aconteceu em Tui, onde fora abrir conta bancária, um requisito obrigatório para poder celebrar um contrato de trabalho. “A gestora do Caixa Bank não percebia por que razão um médico que podia exercer em Espanha trabalhava nas obras em Portugal. Tiveram de verificar que o meu nome era correto e que não estava a mentir.”

“É uma vergonha, mas esse é o meu trabalho em Portugal. Preciso de comer e os meus filhos também.” Talvez por ainda não ter realizado provas, Laura Domínguez projeta um futuro como médica em Portugal. “Sou portuguesa. O meu pai ensinou-me a gostar de Portugal, a minha filha está em Portugal, quero voltar e exercer medicina em Portugal.”

Enquanto isso não é possível, aproveita ao máximo a experiência em Itália. “Queria que Portugal nos desse uma oportunidade destas, nem que fosse só para tratar de doentes de covid. Causa uma certa dor que no nosso país, para onde viemos a pensar em maiores oportunidades, o processo de reconhecimento dos nossos diplomas seja tão lento, demorado e até difícil. Vou fazer as provas, vou lutar por trabalhar em Portugal. Mas enquanto espero, para mim, é muito melhor trabalhar no que sei fazer.” (Expresso, texto da jornalista Margarida Mota)

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