domingo, março 05, 2023

Como Costa quis montar uma “central de comunicação”

Depois do erro inicial, Costa recuou: secretário de Estado-adjunto faz a “comunicação política”, mas gabinete de comunicação tem 15 pessoas para passar a mensagem. A profissionalização da comunicação com recurso a técnicas especializadas semelhantes às que se praticam nos departamentos comerciais e criativos de marcas e empresas era um desejo antigo de António Costa. A primeira tentativa de o fazer foi em 2016, quando recrutou o diretor de comunicação comercial do Millennium BCP, Mário São Vicente, que sairia um ano depois sem cumprir a missão. Costa arrumou a ideia por uns anos, mas voltaria a tentar em junho passado, quando foi buscar João Cepeda ao grupo Time Out Market com o argumento de que, com maioria absoluta, a pressão mediática sobre o Governo ia ser gigante.

A ideia, dizia o gabinete do primeiro-ministro em maio, era preencher uma falha na orgânica inicial do Executivo. “Com a extinção da Secretaria de Estado-adjunta do primeiro-ministro, deixou de haver quem coordenasse e articulasse a comunicação do Governo”, entendia-se em São Bento. A coordenação interna do Governo estaria, de forma implícita, no superministério de Mariana Vieira da Silva, mas “criou-se a expectativa” de que o gabinete de comunicação, criado em junho, iria resolver os problemas criados pela dificuldade de os vários gabinetes chegarem ao primeiro-ministro. Mas não correu da melhor forma. O novo diretor de comunicação fez apenas uma reunião inicial e por via digital com os assessores de imprensa, onde vincou que não tinha pretensões de ser o ‘chefe dos assessores’, mas que queria, sim, uniformizar a imagem e “profissionalizar” a comunicação do Governo como um todo. O resultado foi o que se sabe. Internamente houve uma certa dose de “ceticismo” em relação àquele “corpo estranho”, os gabinetes não sabiam a quem reportar e, mediaticamente, os “casos e casinhos”, demissões e semidemissões, sucediam-se uns atrás dos outros.

UM OPEN SPACE NO N.º1 DE SÃO BENTO

O erro foi assumido pelo primeiro-ministro que, três meses depois de ter nomeado João Cepeda (com um vencimento apenas abaixo do chefe de gabinete) para o lugar, repôs a figura de secretário de Estado-adjunto, primeiro com Miguel Alves, depois com António Mendonça Mendes, para tratar da “coordenação” e da iniciativa política. “Coordenação política é fazer com que as portas abram e para isso é preciso força política, porque os ministérios têm necessidades diárias de articulação com o topo e o primeiro-ministro não pode dar atenção a tudo”, diz ao Expresso o diretor de comunicação, João Cepeda, que nega que algum dia tenha sido mandatado para fazer essa parte. “Não vim para cá fazer política”, diz. Certo é que, nas primeiras semanas, depois de reuniões iniciais de passagem de pasta com o anterior secretário de Estado-adjunto, acompanhou Costa em todas as deslocações pelo país e fora dele, para se inteirar dos dossiês. Passou a ter lugar no núcleo restrito de coordenação política e delineou um plano de comunicação que passava, em primeiro lugar, pela constituição de uma equipa.

Encarregado de melhorar a imagem do Governo, que teve um arranque manchado por erros de coordenação, com duas demissões no primeiro ano de legislatura e uma ideia consagrada de que o primeiro-ministro estava “cansado”, uma das primeiras medidas do gabinete de comunicação foi mudar o aspeto visual dos briefings do Conselho de Ministros. “Um Governo sentado é um Governo cansado”, logo, há que pôr os ministros a falar de pé, como acontece nas instituições europeias.

GOVERNO EM PÉ

Ao que o Expresso apurou, no desenho inicial estava prevista a contratação de duas pessoas da sua confiança: João Pedro Oliveira e João Morgado Fernandes, que foi assessor em três antigos governos socialistas. Ao grupo dos Joões, como é informalmente chamado, foram-se juntando outros recursos, alguns já existentes em serviços dispersos do Governo, outros contratados para integrar a equipa. No total, foram contratadas “cerca de dez” pessoas em regime de contratação pública através do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (Ceger), a que se juntam outros que já tinham sido nomeados pelo gabinete do primeiro-ministro no anterior Governo para desempenhar funções de vídeo, multimédia e redes sociais, o que perfaz um total de cerca de 15 pessoas a trabalhar na “comunicação das políticas” do Governo e na “simplificação” da mensagem que chega às pessoas, tanto através do portal do Governo como das redes sociais. À exceção de Cepeda, que tem gabinete na residência oficial do primeiro-ministro, para trabalhar lado a lado com Mendonça Mendes, os restantes estão num open space no segundo andar do n.º 1 da Rua de São Bento, do outro lado da estrada da residência oficial do primeiro-ministro.

O SONHO DAS REDES

As últimas contratações foram feitas já no mês de janeiro, altura em que o gabinete de Mendonça Mendes assentou arraiais e a divisão de tarefas ficou consolidada. “Há uma dimensão política e uma operacional”, diz fonte do Governo, explicando a divisão. O entendimento parece consensual: “Um tem a iniciativa política e faz comunicação política, o outro comunica as políticas desenhadas.” Foi o que aconteceu, por exemplo, no recente pacote Mais Habitação. Primeiro houve decisão política entre o primeiro-ministro e o Ministério da Habitação, depois envolveu-se o gabinete de comunicação e o secretario de Estado-adjunto no brainstorming de preparação das medidas. Na divisão de tarefas, o gabinete de Mendonça Mendes ficou com a preparação do documento que iria para consulta pública e com o conteúdo da intervenção de Costa, o gabinete de Cepeda ficaria com o desenho do “conceito”, que vai desde nome, logótipo, passando pela preparação visual dos documentos, criação do microsite sobre o tema e simplificação da mensagem nas redes sociais. A ideia é “profissionalizar a comunicação”, admite, à semelhança do que é feito em todos os países da Europa e do mundo ocidental, do qual provavelmente apenas Portugal é a exceção. O Palácio da Moncloa, por exemplo, residência oficial do Governo em Espanha, tem “um edifício inteiro para o gabinete de comunicação”. E de França nem se fala: a equipa por trás de Emmanuel Macron é “uma das melhores da Europa” e está presente em todas as plataformas, do Instagram ao TikTok.

Já em maio, quando confirmou a nova posição, Cepeda dizia ao Expresso que o objetivo era pensar “a presença do Governo nas redes e nas plataformas digitais”, tentando estabelecer uma relação mais direta com os portugueses. “Estamos no futuro, as pessoas têm a expectativa de que se fale diretamente para elas”, diz, assumindo que ainda faltam ao Governo ferramentas de recolha de dados e de medição de métricas que já existem no mundo empresarial. É esse trabalho de comunicação direta que a equipa do n.º1 tem feito, a começar pelo Instagram (ver imagens acima), onde os vídeos das ministras do Trabalho e da Habitação a explicar, de forma simples, a agenda do trabalho digno ou as medidas da habitação tiveram muito mais audiência do que o habitual na página do Governo. O mesmo para os vídeos de promoção do PRR, com excertos de cada ministro no terreno, ou para as publicações do Governo a explicar medidas com recurso a slogans publicitários (“Rendas elevadas têm apoios à altura”, por exemplo). O plano é também pôr os redatores, videógrafos e designers da equipa a fazer “pequenas reportagens” de casos positivos do PRR no portal do Governo. “Não é propaganda, é mostrar o que o Governo está a fazer bem”, explica-se no gabinete.

O PRIMEIRO TESTE

A primeira tentativa de criar um “Gabinete de Informação e Comunicação” (GIC) coube ao curto Governo de Pedro Santana Lopes, em 2004, quando aprovou em Conselho de Ministros um decreto para a criação do GIC, que seria, segundo se lê no comunicado da altura, “um serviço central de coordenação (...) com atribuições e competências transversais a toda a atividade governativa em matéria de informação e comunicação”. O organismo estaria sob a tutela do ministro da Presidência, Nuno Morais Sarmento, e teria “autonomia administrativa” e um orçamento anual de €2 milhões. Mas a ideia não sairia do papel, com o Presidente da República Jorge Sampaio a vetar o decreto. O PS foi muito crítico: “O PS espera que o Governo abandone as suas tentações de controlo da comunicação social e se concentre na obrigação de governar para resolver os problemas do país”, diria Pedro Silva Pereira.

A comparação é rejeitada em São Bento, desde logo porque o atual gabinete de comunicação não tem orçamento próprio, mas também porque “na altura havia a ideia de uniformizar e centralizar tudo”. Em todo o caso, o propósito de centralizar na mesma equipa recursos já existentes está lá: “É como a mudança do Governo para o edifício da Caixa Geral de Depósitos, o princípio é o mesmo”, diz-se em São Bento. Por outro lado, “não se trata de controlar quem fala com jornalistas e quem não fala”. Em 20 anos, o mundo mudou, mas o medo da “central de comunicação” ficou e condicionaria os vários Governos de lá para cá. Foi essa “nuvem” que fez com que nunca se tenha avançado para uma estrutura profissional, admite-se. Agora é que é? (Expresso, texto da jornalista RITA DINIS)

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