domingo, março 05, 2023

A Indiferença, segundo Sá Carneiro

O jornal Nascer do SOL publicou, no lançamento do V Volume dos textos políticos de Francisco Sá Carneiro (promovido pelo Instituto Sá Carneiro em colaboração com a Editora Alteia) um inédito do fundador e antigo líder do PPD-PSD e que deveria ter sido publicado no Povo Livre, mas acabou por não ser. «Na vida política, um evento é capaz de desencadear reações em cadeia, capaz de definir o legado dos seus líderes, esculpir a história das organizações partidárias, quando não mesmo o rumo de toda uma nação», afirma a eurodeputada e presidente do Instituto Sá Carneiro, Maria da Graça Carvalho, ao falar sobre este volume, intitulado A Ausência de Liderança, que se centra nos tempos da crise interna que leva Sá Carneiro a afastar-se da presidência do partido. Para João Montenegro, vice-presidente do Instituto, o facto de Sá Carneiro ter encabeçado as cinco listas que concorreram ao Conselho Nacional foi «um ato de nobreza política e inegável altruismo», uma vez que a sua continuidade no Conselho Nacional «simboliza apenas o seu interesse pelo partido e a continuação da sua militância».

Indiferença

1. Nesta crise que se vai instalando tem sido gabada a serenidade e maturidade dos portugueses, a calma e o civismo com que aguardam o seu desfecho.

Ora a verdade é que a serenidade, o civismo e a calma são meras aparências que os políticos e alguma imprensa gostam de invocar como sinais e ornamentos da ‘jovem democracia portuguesa’.

O que na realidade há, perante a crise e tudo quanto a ela tem dado lugar, é uma enorme e profunda indiferença.

Indiferença que radica em crescente descrença e se liga ao conformismo tradicional dos portugueses.

Quanto mais os políticos e os responsáveis falam, menos as pessoas neles acreditam. E têm razão. Há anos que ouvimos as mesmas pessoas dizerem de modo mais ou menos solene e pomposo as mesmas coisas, sem que nada se modifique. Há quem, a intervalos. enumere as questões e faça afirmações perentórias de mudança. As coisas vão piorando, mas os discursos vão-se sucedendo, enquanto leis essenciais não são postas em vigor e outras não se aplicam; nada de fundamental se modifica.

Há quem, demagogicamente, faça promessas, dê garantias, averbe a si próprio vitórias. Os factos vão, nesse caso, desmentindo os discursos, mas já quase ninguém reage.

Formam-se por aí, desde madrugada, extensas bichas para o leite e os jornais aludem às importações que dele fazemos, sob o eco das palavras do primeiro-ministro: «Hoje não precisamos de importar, porque já produzimos leite suficiente para o consumo nacional» – discurso de 7-6-77.

Podiam multiplicar-se os exemplos, mas não é necessário. Desde o ‘grande empréstimo’ às relações com Angola o rol é incomensurável. As pessoas sabem e sentem na carne que as estão constantemente a enganar, que lhes impingem fartas doses de demagogia bem tecida com mentira e falso otimismo. Sabem também que lhes ocultam factos essenciais, quem nem aos órgãos de soberania são revelados. Vão-se perguntando, às vezes, porque não se publica a carta de intenções dirigida pelo Governo ao FMI? Porque se não divulgam as razões da demissão do Governador do Banco Central? Porque se oculta o verdadeiro estado de um país em que já há fome e no qual poderemos ver ressurgir a sopa dos pobres, como bem recordou o bispo do Porto?

2. Se isto é assim, e é muito pior, bem se compreende que as pessoas não acreditem, encolham os ombros e se fiquem pela indiferença; ela não é virtude, mas serve de defesa.

O que se passou, no Natal com os emigrantes afetados pela greve da TAP é um triste mas elucidativo exemplo do estado a que o país chegou.

Emigrantes são tema caro às atividades e aos discursos políticos. Como vem sendo hábito, no natal o Sr. Presidente da República confraternizou, em sua casa, com casais de emigrantes.

Entretanto centenas deles passaram vários dias, incluindo o de Natal, nas salas do aeroporto, abandonados, sem alimentação, sem roupa, sem condições de higiene. Valeu-lhes a solidariedade humana de algumas pessoas.

Mas de atuação por parte dos Serviços ou da Secretaria de Estado da Emigração ou do Ministério dos Negócios Estrangeiros nem vislumbre. Ao que parece só o ministro Firmino Miguel se deslocou ao aeroporto.

E toda esta barbaridade decorreu com a mais completa naturalidade e uma total impunidade.

De resto só quem esteve no aeroporto, às vezes horas, cá fora, à espera do desembarque dos passageiros, é que pode avaliar as condições a que se sujeitas eles e suas famílias.

Depois... depois os emigrantes, para além das remessas, servem para festejar o dia das Comunidades, são pretexto de largas e luzidias viagens ao estrangeiro, e deram lugar a que se falasse da diáspora.

Tudo isto, como os transportes públicos e as condições desumanas a que são sujeitos os que deles se utilizam, como a corrupção que mais aumenta quanto mais dela falam as autoridades, como a construção clandestina, já aceite com naturalidade, como as bichas para o leite, são escândalos que já não escandalizam.

Esse é também um inquietante sintoma da degradação coletiva a que chegámos. É por todo o lado, a apatia, a indiferença, o salve-se quem puder.

Em Portugal os cidadãos não estão, sob muitos aspetos, a ser tratados como pessoas. Há um desprezo enorme, que avulta em comportamentos e em discursos, pelos direitos do homem e pelo respeito que é devido aos seres humanos. Não surpreende, por isso, que em face dessa degradação muitos portugueses esqueçam por sua vez a sua dignidade pessoal.

Enquanto os portugueses forem, ou continuarem a ser, manipulados e instrumentalizados, não se pode exigir que cada um tenha de responder pelo futuro da Pátria, como quer a mensagem presidencial.

Para exercer a responsabilidade individual é indispensável que se apurem e exijam responsabilidades pelo estado a que Portugal chegou, pela degradação moral e material que se agrava sob o olhar impassível dos mais grados responsáveis.

É depois necessário que se dê a cada um oportunidades. E elas não existem quando o Estado tudo quer controlar e dominar, quando por toda a parte se instala a burocracia parasitária, impeditiva, sufocante, deformadora.

3. No passado o conformismo dos portugueses manteve-se muitas vezes até estar ultrapassado o ponto de rutura: veio então a guerra ou a ditadura, porque a reação do povo ou do exército não encontrava já estruturas que permitissem evitar a brutalidade.

Esse é o risco que corremos.

Quanto mais intensamente nos apegamos à defesa da democracia mais necessário é dizer, a tempo, a verdade sobre a nossa situação.

Só essa denúncia clara, doa a quem doer, juntamente com a recusa de colaborar na farsa das falsas soluções, pode permitir salvar ainda a democracia.

Não é com lugares comuns idiotas, como o do otimismo dos homens de esquerda, nem com constantes diálogos de surdos, nem com meros acordos de partilha de poder, nem com a sacralização da Constituição ou do Presidente da República que Portugal sairá do fundo do abismo.

Há quem queira manter todo este estado de coisas no qual muita gente, constituída em minoria privilegiada, singra, prospera e faz fortuna. São esses, muitas vezes, os que mais defendem as ‘conquistas da revolução’, que mais esbracejam, que mais esquerdizam. Pudera, eles têm muito a perder. Mas a triste verdade é que parecem ser esses mesmos os que mais influência têm, a ponto de controlarem os jogos do poder.

Nós temos, em Portugal, uma semidemocracia, tutelada pelo Conselho da Revolução, um semi-socialismo amparado na Constituição, um semipresidencialismo, hesitando perante os caminhos de ação, e agora um Governo semiderrubado em vias de recomposição.

Mantendo-se tudo assim, nada vai funcionar e Portugal continuará a afundar-se apesar dos seus oito séculos de história (o Egito tem vários milénios e são conhecidos os seus problemas, não aparecendo por acaso a comparação com um velho Estado do Norte de África, da qual em vários aspetos nos vamos aproximando).

4. O país dos portugueses não parece ser o mesmo da maior parte dos políticos, nem a terra destes a nossa terra.

Isso deve-se em parte a um comportamento que a presente crise agudizou e que pode designar-se por ‘integral-situacionismo’.

A base dessa linha de ação é a manutenção da atual situação. A situação deve manter-se a todo o preço – evitando-se ate novas eleições – mesmo que seja necessário alargar, política e numericamente, o círculo e grupo que dela beneficiam. Os situacionistas caracterizam-se pela tendência para o exclusivismo, procurando aumentar influência e proveitos só para os componentes do seu grupo. Mas quando a situação está em perigo, lançam mão dos grandes meios e abrem um pouco a coutada, aumentando por outro lado a intransigência contra os não situacionistas As medidas de salvação da situação implicam pois partilha de benefícios, por um lado, e intransigência total contra os não colaborantes, por outro.

Pode haver, tem havido e continuará a haver, quem rejeite o situacionismo, defendendo medidas democráticas de salvação nacional em lugar de expedientes de salvação da situação.

Estes discordantes, estes oposicionistas, são uns perturbadores do jogo situacionista e como tal. nas alturas de crise sobretudo, quando a situação periga, têm de ser atacados, neutralizados, silenciados. É então que o integral-situacionismo se revela em toda a sua dimensão: quem não colabora com os situacionistas é reacionário; quem ataca a situação merece sanções severas de leis especiais que o integral-situacionismo está a preparar. Por aí fora é um rosário de fervor situacionista em ebulição, cuja espuma corrosiva não poupa nenhum obstáculo surgido ao exercício do poder.

Em compensação, que mundo de afinidades os situacionistas não descobrem entre si, a unir os neófitos aos experimentados beneficiários. Esbatem-se entre eles os contornos, desvendam-se aproximações insuspeitados, caldeiam-se, entre os opostos, alianças seladas com a espessa linfa do poder.

A ‘imagem’ desempenha nisto tudo um papel importante. O integral-situacionismo exige hoje uma imagem de esquerda, podendo, atualmente, ir até à imagem moderada, civilizada ou europeia.

Para atacar o adversário que não entra no jogo do poder, usa-se criar-lhe uma imagem de direita, que o liquidará. ou uma imagem radical. que o desacreditará.

Para um bom desempenho é indispensável cuidar da imagem, e dar-lhe prioridade sobre quaisquer negócios de Estado.

Nisso há vários matizes, que vão desde nunca se ser sincero, a não se queimar; desde evitar agir a todo o preço, até à arte de dizer sempre convictamente as coisas mais contraditórias. Desde há pouco, por exemplo, parece já ser reacionário atacar a CIA, na qual dentro em pouco, por certo, será bom ter amigos...!

Na questão da imagem é muito importante o período anterior ao 25 de Abril, especialmente no tocante às guerras coloniais. Para se ter uma boa imagem é necessário, neste jogo a que alguns chamam política, ir tanto mais para a esquerda quanto mais empenhado se esteve na guerra.

E no campo civil passa-se mais ou menos o mesmo, dentro, até, de cada um dos partidos.

Quem não cultiva a imagem está, pois, fora do jogo do poder e é sempre qualificado de reacionário, antidemocrata ou fascista (1).

A isto vimos assistindo. O espetáculo prossegue. No palco e na sala em breve já não haverá senão comparsas do jogo de poder. Os portugueses desinteressaram-se, foram-se à vida de costas voltadas à farsa.

Mas fica a impressão que os fios dos marionetas são puxados de fora; subsiste a dúvida se de fora da cena política, se também das fronteiras.

5. Ficava mal escrever hoje mais um artigo sem falar do próximo Governo; seria mesmo uma injustiça, apesar de não se ver por aí grande interesse.

O Governo de salvação nacional ficou adiado para momento mais oportuno.

Parece que vamos ter o 2.° Governo Mário Soares, que assim terá só sido semiderrubado.

Há já, para essa hipótese, uma expressa garantia de continuidade.

Segundo a imprensa, no jantar de confraternização do I Governo o ex-futuro primeiro-ministro Mário Soares declarou:

‹O próximo Governo, ainda da responsabilidade do Partido Socialista. vai continuar, com a mesma coragem, persistência e coerência a obra que já realizámos».

Neste passo singelo e despretensioso o primeiro-ministro dos Governos Mário Soares dá uma dupla garantia:

– a de que o futuro Governo continuará a ser da sua responsabilidade, ou seja socialista:

– a de que ele continuará a obra do I Governo Mário Soares, ou seja socialista.

Assim fica esclarecido o que se entende por um Governo de base socialista.

O Governo de salvação nacional, que muitos não situacionistas consideram urgente e imperativo para a própria sobrevivência do regime democrático, ficou, por decisão presidencial, a aguardar melhor oportunidade. Sem ele não poderão existir medidas ou política de salvação nacional. Do que parece tratar-se agora é de consolidar a situação.

Medeia-se pois um ‘Governo de base socialista com personalidades’ que, neste momento, parece ter possibilidades de êxito graças ao Presidente da República, ao CDS e ao PCP.

Já vimos que a base do 2.° Governo Mário Soares em gestação é a continuidade socialista.

O segundo termo da fórmula não é difícil de descobrir sob as, aparências de novidade.

Ao princípio as personalidades eram independentes, como se vê das declarações do ex-futuro Primeiro-Ministro a ‘Le Monde’. Com mais ou menos palavras era pois ainda a fórmula PS-‘independentes’. Agora serão só personalidades, dizendo-se que podem ser partidárias, ‘ma non troppo’.

E, por isso, das duas uma: ou são ‘independentes’ e estamos como dantes. Ou são partidárias e temos um Governo de coligação envergonhada ou disfarçada, em que o PCP também terá por certo personalidades ‘independentes de esquerda’.

Num caso ou noutro o 2.° Governo Mário Soares irá provavelmente assentar na plataforma dúplice, de que falei há semanas, PS-CDS, e PS-PG.

Se for assim, o essencial é estar na oposição.

E quem não souber ser oposição não entende o que é o PSD e faz uma triste ideia da democracia.

Lisboa, 3 de janeiro de 1978

Francisco Sá Carneiro (artigo escrito a 3 de janeiro de 1978 para o Povo Livre mas não publicado pelo semanário do PPD-PSD)

(1) A este respeito, bem como sobre aspetos anteriores, são essenciais, porque muito exemplificativos, os artigos de ‘Le Monde Diplomatique’ de Dezembro sobre os jogos militares em Portugal e de ‘Le Monde’, edição semanal de 15 a 21 de dezembro (jornal i)

Sem comentários: