domingo, março 05, 2023

Opinião alheia: A liberdade de imprensa está mesmo a morrer?

Eu bem tentei, fartei-me de dedilhar nas caixas de pesquisa dos sites dos principais jornais e televisões portugueses, mas, até às 18 horas de ontem, quando comecei a escrever este texto, não encontrei uma única referência a esta notícia: passa um ano desde que o jornalista espanhol Pablo Gonzaléz foi preso na Polónia, suspeito de espionagem para a Rússia.

Desde esse dia 28 de fevereiro de 2022 González cumpre uma detenção que a Federação Internacional e Europeia de Jornalistas considera ser "um ataque à liberdade de imprensa e à democracia". "É inaceitável que um estado-membro da União Europeia detenha um jornalista de forma tão arbitrária", concluiu o último comunicado dessa organização, emitido ontem, e que a imprensa portuguesa não citou.

Fui ver os grandes jornais espanhóis.

El Pais: nada. El Mundo: nada. ABC: nada. La Razón: nada. La Vanguardia: peça grande. Público de Espanha (jornal digital para quem González trabalhava): peça grande, mantida todo o dia no topo da primeira página do site.

Leio então o que dizem os artigos dos jornais espanhóis que abordaram o assunto e onde se fala também de algumas intervenções no parlamento espanhol.

González só teve direito a receber a visita da mãe dos seus filhos em novembro, nove meses depois da prisão. Os três filhos foram proibidos de visitá-lo. A prisão preventiva já foi renovada quatro vezes e, na Polónia, isso pode ser feito eternamente, enquanto a investigação durar (que bela democracia!).

As cartas que lhe são enviadas de Espanha demoram em média três meses a serem entregues. O repórter está sozinho dentro de uma pequena cela, 23 horas por dia, diz-se mal alimentado e sem aquecimento ou roupas suficientemente quentes.

A Amnistia Internacional pediu ontem a sua libertação imediata até um julgamento justo e fala em "tratamento desumano" por parte da justiça polaca.

A associação Repórteres Sem Fronteiras, através da sua vice-presidente Edith Rodriguez, apontou o dedo à Polónia: "ou concretizam as acusações, ou libertam-no".

E que acusações, afinal, são essas?

A Agência de Segurança Interna da Polónia (a ABW) entrou, na madrugada de 28 de fevereiro de 2022, no quarto de um hotel na cidade fronteiriça de Przemyśl, onde González pernoitava no intervalo das reportagens que fazia sobre a fuga de milhares de ucranianos para a Polónia. Disseram-lhe que era um espião e que podia apanhar 10 anos de cadeia.

A 4 de março o Tribunal Regional de Rzeszów formalizou o inquérito por suspeitas do repórter ser agente da Diretoria Principal de Inteligência do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação Russa (GRU) e de espiar para Moscovo.

A investigação decorre desde então e, até agora, as provas conhecidas da alegada espionagem são dois cartões de débito de dois bancos russos e dois passaportes, um espanhol e outro russo, com dois nomes diferentes.

González explica os dois passaportes por ter dupla nacionalidade. Por isso, no passaporte russo está o seu nome em russo e, no espanhol, o seu nome em espanhol.

O repórter nasceu na Rússia, é filho de pais russos que se divorciaram. A mãe foi viver com ele para Espanha e obteve para os dois a nacionalidade espanhola quando González tinha 9 anos, alterando o apelido russo Pavel para a sua tradução espanhola, Pablo.

A dualidade de critérios com que passámos a viver leva-me a fazer esta acusação de consciência tranquila, pela certeza da sua justeza: não faltariam (e muito bem) inúmeras notícias indignadas em Portugal e Espanha se a prisão deste jornalista tivesse acontecido, exatamente nas mesmas circunstâncias, na Rússia, na China, em Cuba, na Venezuela, na Coreia do Norte, no Irão, na Síria, no Qatar ou em qualquer outro país que não pertença, não seja protegido, não forneça energia barata ou não obedeça ao chamado "ocidente alargado".

Provavelmente a Assembleia da República portuguesa já teria aprovado um voto de solidariedade para com o jornalista, em Espanha organizar-se-iam manifestações frente a embaixadas, a Comissão Europeia teria protestado contra tal "inaceitável atentado à liberdade de expressão", os Estados Unidos da América teriam comunicado que este é mais um exemplo que justifica o seu desígnio no século XXI - fazer guerra em nome da democracia "baseada em regras" contra as autocracias do mundo.

Como a arbitrariedade repressiva se passa num país da União Europeia, González está quase esquecido, repetindo-se o que acontece desde 2012 com Julian Assange, nessa outra pátria autoproclamada dos grandes valores da liberdade, a Inglaterra.

A guerra na Ucrânia é mais uma etapa de um processo que, aos poucos, passo a passo, está a matar a liberdade de imprensa no "ocidente democrático" (DN de Lisboa, texto do jornalista Pedro Tadeu)

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