domingo, fevereiro 15, 2015

Vícios do Poder: do século XIX até hoje

"Ainda não existe data para as próximas legislativas, sabendo-se apenas que decorrerão num dos quatro domingos entre 14 de setembro e 14 de outubro, como está disposto na lei eleitoral. Dificilmente o primeiro, já que é difícil fazer campanha eleitoral em agosto, ou o último, pois o Governo que delas sair terá de apresentar quanto antes a proposta de Orçamento do Estado. Não é improvável que se vote no segundo desses domingos, 27 de setembro, data do 100º aniversário da morte de Ramalho Ortigão. A coincidência seria pouco notada, mas simbólica. Integrado no grupo Os Vencidos da Vida, tal como Antero de Quental, Oliveira Martins e Eça de Queirós, o escritor dividiu com este último a autoria de algumas das crónicas mais implacáveis da literatura portuguesa, reunidas em ‘As Farpas’, sem poupar os políticos do seu tempo. Especialmente violento foi o texto ‘Fracasso do Rotativismo’, no qual Ramalho Ortigão diagnosticou o Portugal dominado pelo Partido Regenerador e Partido Progressista: "O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder, dizendo-se um liberal e outro conservador, segundo o regime inglês, falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática. O jogo permanente dessa rotatividade representativa, com 20 anos de funcionamento automático, desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas, safara todos os cunhos que caracterizavam o sistema." Para muitos dos portugueses que decidirão em 2015 se António Costa passa a primeiro-ministro, ou se Passos Coelho fica no poder, é provável que passe pela cabeça aquilo de que o portuense então se queixou. "Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respetivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos", escreveu Ortigão.
DOIS PARA A DANÇA
Tal como o PSD e o PS foram os partidos mais votados em todas as legislativas desde o 25 de Abril, formando com o CDS-PP o ‘arco da governação’ – todos os executivos foram chefiados por social-democratas ou socialistas, tirando os provisórios e os três governos de iniciativa presidencial –, o Rotativismo da segunda metade do século XIX fundou-se na alternância entre o Partido Regenerador e do Partido Progressista, expoentes da direita e da esquerda monárquicas. Após um longo período de guerra civil e tensão latente, a Regeneração começou com a insurreição militar que culminou no regime fundado na Carta Constitucional de 1826 e no Acto Adicional de 1852. O marechal Saldanha voltou a presidir ao governo, durante cinco anos, mas logo se destacou o ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, Fontes Pereira de Melo. "Acima do cavalo da diligência está o tramway, acima deste a locomotiva, e acima de tudo o progresso", dizia o arauto da modernização. O Rotativismo puro e duro veio com o Pacto da Granja, fusão dos Históricos e Reformistas em 1876, unificados no Partido Progressista. A partir daí ficou mais fluida a passagem entre dois blocos, que só terminou com o fim da monarquia. "Era como um centrão muito alargado, que convergia e concordava nas grandes opções políticas, como o desenvolvimento de Portugal, a aproximação à Europa e reformas que não pusessem em causa a burguesia e a monarquia constitucional", explica à ‘Domingo’ o professor universitário e historiador José Miguel Sardica. Em sua opinião, o Rotativismo foi "uma tentativa de olear a mecânica liberal e introduzir uma certa alternância que não era uma alternativa". A troca de um Regenerador, como Fontes Pereira de Melo ou Rodrigues Sampaio, por um Progressista, como Braamcamp, surtia efeitos bastante limitados. "O centro-esquerda viveu o mesmo dilema de hoje: na oposição podia ter retórica mais avançada, mas a responsabilidade política, falta de meios financeiros e compromissos internacionais levavam-no a moderar o discurso quando chegava ao poder." Também historiador e professor universitário, o colunista do CM Luciano Amaral realça que o sistema eleitoral era muito diferente. E não só pela fraude generalizada ou pela existência de círculos uninominais. "O rei tinha mais poder do que o Presidente da República. Demitia o Governo, nomeava outro, e o Governo nomeado ganhava as eleições". A semelhança em relação à atualidade é o "caráter razoavelmente idêntico dos dois partidos centrais". Com a direita radical fora de combate, tal como agora, só no extremo da esquerda havia alternativa. "O Partido Republicano era promovido por Regeneradores para minar os Progressistas", diz Luciano Amaral, referindo-se a algumas candidaturas de adversários da monarquia que foram promovidas pelo centro-direita. "A esquerda monárquica usava a ameaça republicana para se agigantar. Se não fossem chamados para o governo, deixavam passar o rumor de que não se importavam que a república viesse", contrapõe Sardica. Quanto ao "Rotativismo de hoje", entre PS e PSD, Sardica admite que "é uma almofada sólida para manter o ‘status quo’", mas "pode também ser fraqueza, pois torna o sistema autofágico". Seja como for, Luciano Amaral defende que "não existe um político que domine o sistema como Fontes dominou durante muitas décadas". Nem Cavaco Silva.
ILUSTRE DE RAMIRES
O deputado mais ilustre da literatura portuguesa do século XIX é Calisto Elói de Silos de Benevides de Barbuda, o fidalgo trasmontano protagonista de ‘A Queda dum Anjo’, romance que Camilo Castelo Branco dedicou em 1866 a Rodrigues Sampaio, futuro ministro e presidente do Conselho, do Partido Regenerador, como Fontes Pereira de Melo, a quem dedicou a segunda edição de ‘Amor de Perdição’. No entanto, a ‘queda’ descrita por Camilo é a de um miguelista rural e moralista corrompido pelo liberalismo citadino e debochado. O romance que melhor retrata o Rotativismo é de Eça de Queirós. E não ‘Os Maias’, de 1888, ainda que as declarações do banqueiro Cohen pudessem aparecer num jornal económico de 2015 – "A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país...", explicava uma personagem para quem a única ocupação dos governos era "cobrar o imposto e fazer o empréstimo" –, mas sim ‘A Ilustre Casa de Ramires’, escrito em 1900. Gonçalo Mendes Ramires, descendente de uma família nobre mais antiga do que Portugal, "inclinado para os Regeneradores, porque a Regeneração lhe representava tradicionalmente ideias de conservantismo, de elegância culta e de generosidade", dá por si candidato a deputado pelo imaginário círculo de Vila-Clara nas listas do Partido Histórico. "Portugal é uma fazenda, uma bela fazenda, possuída por uma parceria. Como vocês sabem há parcerias comerciais e parcerias rurais. Esta de Lisboa é uma parceria política, que governa a herdade chamada Portugal", explicava aos próximos. A vontade de ir para São Bento leva-o a reaproximar-se de um ex-amigo que desrespeitara a sua irmã para ocupar um círculo, vago pela morte do ex-titular. "Você quer entrar na Política? Quer. Então, pelos Históricos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionais, ambos são cristãos... A questão é entrar, é furar", aconselhara-lhe voz amiga. Certo de que "durante três, quatro anos, os Regeneradores não trepavam ao Governo", o ilustre Ramires ruma a Lisboa, com eleição garantida por uma mistura de caciquismo e carisma pessoal. Mas depois arrepende-se, e parte para Moçambique. Também o livro póstumo ‘O Conde de Abranhos’ tem um deputado trasmontano, que nega cometer "uma grande traição" ao mudar-se para a bancada da oposição. "Havia entre os Reformadores e os Nacionais ideais opostos? Abandonava Alípio Abranhos ideias queridas, para ir, por interesses grosseiros, defender ideias detestadas? Não. As ideias que servia entre os Reformadores, iria servi-las entre os Nacionais", lê-se no romance de Eça de Queirós. É caso para dizer que mudam-se nomes dos partidos mas não as vontades" (texto do jornalista do Correio da Manhã, Leonardo Ralha, com a devida vénia)