“A sala do cinema Arsenal, em Potsdamer Platz, está
cheia. Esta não é a estreia oficial do filme A Troika: Poder sem controlo, do
jornalista Harald Schumann, realizado por Árpád Bondy. Essa será, oficialmente,
na terça-feira, quando o canal Arte, que co-produziu o trabalho com a estação
pública alemã ARD, transmitir o resultado de mais de um ano de investigação e
entrevistas. Sábado, 21, foi apenas o dia do primeiro visionamento para “amigos
e família”.
Ali, a dois passos do moderno edifício de cinemas – um
gigantesco e envidraçado Sony Center –, erguia-se o muro de Berlim. Ainda
restam algumas placas de cimento na praça, que já era uma das mais movimentadas
do mundo no início do século XX. O muro agora é apenas uma cicatriz no
alcatrão, duas linhas paralelas que serpenteiam pelas ruas, mais ou menos
despercebidas, até que o betão irrompe, descontinuado, aqui ou acolá, como
cenário para as fotos dos turistas. O resto das pedras foram levadas, como
recordação. Berlim virou a página. E é isso que os cerca de duzentos convidados
de Harald e Árpád estão aqui a fazer.
Ao longo do último ano, Harald, que é um dos mais
reconhecidos jornalistas de investigação alemães, com livros que vendem mais de
um milhão de exemplares, e um outro documentário, sobre bancos, no curriculum,
viajou de Lisboa para Atenas, de Nicosia para Dublin, de Frankfurt para
Washington. Entrevistou mais de trinta pessoas, de Yannis Varoufakis a obscuros
burocratas da troika. Quando começou, a troika não era, como o muro, uma
recordação ou uma cicatriz. Estava em plena actividade.
Quando, na última semana, terminou a montagem
definitiva do documentário, o Eurogrupo parecia ter declarado o óbito desta
associação informal da Comissão Europeia com o Banco Central Europeu e o Fundo
Monetário Internacional, destinada a intervir nos países que deixaram de poder
refinanciar as suas dívidas depois do pânico gerado pela crise financeira de
2008. Na sexta-feira à noite, Harald deu por terminado o trabalho. E o
Eurogrupo chegou a acordo para uma extensão dos empréstimos à Grécia, pela
primeira vez sem a chancela da troika.
Timing perfeito para a estreia, sublinhado pela grande
ovação no final. Harald subiu, timidamente, ao palco para agradecer, com Bondy.
E explicou o que leva um alemão a querer saber o que maioria das instituições
europeias ignoraram durante quase quatro anos: Como foi possível que “um
pequeno grupo de funcionários não-eleitos recebesse o poder de mudar
radicalmente alguns países?” “Só no final de 2013, em véspera de eleições, o
Parlamento Europeu decidiu investigar. Durante três anos ninguém quis saber…”
As respostas que Schumann encontrou são
surpreendentes. Thomas Wieser, Presidente do Grupo de Trabalho do Eurogrupo, é
um desses funcionários que poucos conhecem. Austríaco com gosto por gravatas
pouco convencionais, é ele quem coordena os dossiês que, nas cimeiras dos
ministros das Finanças da zona Euro, acabam por redundar em decisões políticas.
Wiesel olha com um ar desconfiado para a câmara de
Schumann, mas ensaia uma resposta: “Todas as acções que foram tomadas nos
países sob assistência não tiveram lugar dentro do quadro legislativo normal da
União Europeia.” Este reconhecimento não é um sinal de arrependimento, contudo.
Wieser acredita que esse “estado de excepção” legal se justificou.
Mesmo se isso levou a situações tão impensáveis como a
que é descrita no filme pelo ex-ministro grego da Reforma Administrativa. Antonis
Manitakis era o responsável da pasta no último Governo da Nova Democracia, de
Antonis Samaras. Certa noite, “às 11 horas”, recebe uma chamada do chefe do FMI
em Atenas (que também esteve em Portugal), o dinamarquês Paul Thomson. Ouviu
uma voz ríspida do outro lado: “Depende de si se a Grécia recebe o próximo
empréstimo de 8 mil milhões de euros:” Manitakis afirma, indignado: “Fui
chantageado. Ele queria medo e submissão. Deu-me a sensação, nas reuniões que
tivemos, que eu representava um país não apenas em dificuldades, financeiras,
mas basicamente corrupto.”
Não se julgue que isto é uma questão de choque
político ou ideológico. A ex-ministra do Trabalho, que agora é a presidente
não-executiva do Banco da Grécia, conta uma história semelhante. Loika Katseli
mostra um e-mail, que recebeu da troika, onde se lê, a propósito de uma
proposta de lei que o Governo grego pretendia aprovar: “Cara ministra, pedimos
desculpa, mas a sua proposta é inaceitável. A lei deve ser escrita do modo que
se segue…” E lá aparecia uma nova redacção, minuciosa da lei. Com um pequeno
problema: não era no sentido que o Governo, eleito, pretendia…
O pior que pode acontecer a um país é cair mãos de
burocratas internacionais”, lamenta Paulo Nogueira Baptista, director-executivo
do FMI, em Washington. Este brasileiro tem assento no “conselho dos 24” que
comanda os destinos do Fundo, e reconhece que a participação da instituição no
processo grego “foi um momento mau do FMI”. Não só porque tudo foi “pouco
transparente”, mas também porque “nos ambientes protegidos de Washington e de
Bruxelas” ninguém consegue “sentir os problemas dos países” sob intervenção.
Uma das entrevistas mais curiosas, e que despertou
gargalhadas na assistência no cinema Arsenal, foi dada por um desses
“burocratas”, Albert Jaeger, também austríaco, representante do FMI na troika
portuguesa. O clímax aconteceu com uma pergunta simples de Schumann: “Porque
está escrito no memorando português que o BPN tem de ser vendido no prazo
máximo de um mês?” Resposta, sorridente: “Sobre esse assunto eu preferia não
comentar casos específicos.”
Jaeger tem o papel de redimir a seriedade do
documentário com momentos cómicos. Schumann pergunta-lhe por que razão insiste
a troika em mexer na legislação laboral portuguesa e em baixar os salários. “Na
situação em que Portugal se encontra, tem de aumentar a competitividade. Muitas
das reformas laborais foram muito úteis para a competitividade da economia.”
Porém, os maiores beneficiários dessas medidas, os
empresários portugueses, desmentem Jaeger no minuto seguinte. António Saraiva,
da CIP, explica a Schumann que “os salários em Portugal não são elevados. Os
salários baixos fazem parte de um modelo de desenvolvimento ultrapassado. Num
inquérito aos nossos empresários, a reforma laboral aparece em sétimo lugar das
suas prioridades. A troika limitou-se a ouvir-nos, mas pouco fez. Acho que
deveria ter a nossa opinião em consideração.”
Paul Krugman, economista, resume o problema a
Schumann: “Se nós somos Angela Merkel, tomamos decisões que afectam gregos e
portugueses, mas só respondemos aos eleitores alemães…”
Estes eleitores alemães, aqui presentes em Potsdamer
Platz, sorriem. E os eleitores dos países sob intervenção, quando tiverem a
tentação de tomar a parte pelo todo também podem sorrir, quando descobrirem que
Harald Schumann, que é grande-repórter do diário Der Tagesspiegel, tem como
editora a filha do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Shauble” (texto do
jornalista do Publico, Paulo Pena, com a devida vénia)