“A crise
económica e financeira levou a que pela primeira vez se questionasse seriamente
o Estado-Providência, criado depois de 1974 em Portugal, e que serviços deve
proporcionar a todos. Uma taxa de
mortalidade infantil das mais baixas do mundo e uma esperança média de vida que
cresceu 14 anos nas últimas quatro décadas, ultrapassando a média da OCDE. Os
mesmos quarenta anos em que o número de alunos a frequentar o secundário
cresceu quase 900% e o total de licenciados se multiplicou por vinte. Um
caminho feito já em democracia e enquanto se construía o Estado-Providência.
Mas em tempo de crise que direitos sociais vai o Estado garantir aos
portugueses na saúde e na educação? E deve garantir a todos?
O sociólogo
Filipe Carreira da Silva defende que a intervenção da troika em Portugal marca
a primeira tentativa de reestruturar o Estado-Providência de acordo com princípios
não universalistas. No livro O Futuro do Estado Social, Carreira da Silva
antevê três cenários: ficar tudo na mesma, desmantelamento ou reconfiguração,
advertindo que o cenário do fim do Estado-Providência "é uma realidade que
se impõe nos dias que correm". Com a crise económica e social, a despesa
em educação desceu 5% ao ano desde 2010, quando era de 5,8% do PIB, e os gastos
em saúde desceram de 10,2% para 9,5% do PIB. As maiores ameaças vêm das
políticas neoliberais, dizem os mais críticos do Governo, mas também da própria
evolução da sociedade, com o envelhecimento da população a pôr em causa os
princípios do contrato social, como a solidariedade intergeracional.
Para o
ex-diretor-geral da Saúde, Constantino Sakellarides, um defensor do Serviço
Nacional de Saúde, o universalismo é parte essencial do contrato social e
abdicar dele é pôr em risco todo o sistema, até porque este garante que as
pessoas são tratadas da mesma maneira na doença, quando estão mais vulneráveis.
O sociólogo da Educação Almerindo Afonso defende a mesma lógica: "As
políticas de mercado quer na saúde quer na educação geram uma polarização.
Quando os serviços são para quem não tem nada acabam por se degradar, porque as
pessoas dominam menos a lógica desses serviços."
O economista da
Saúde Miguel Gouveia lembra que os cortes dos últimos anos, embora acentuados,
incidiram "sobretudo nos salários dos profissionais e na despesa com
medicamentos", através da diminuição do preço, e não nos serviços diretos
aos cidadãos. Nos serviços é possível que as restrições orçamentais tenham
contribuído para agravar "o racionamento implícito que sempre fez parte do
SNS". O professor da Católica dá como exemplos de racionamento os cuidados
de saúde dentária, que nunca foram garantidos pelo Estado, ou a dificuldade de
acesso a certos medicamentos.
No entanto,
acredita que retirar serviços que já são garantidos vai ser complicado. "A
definição de um cabaz de serviços, apesar de ter a vantagem de tornar explícito
e portanto mais equitativo este racionamento, não é viável. Há vários países
que tentaram fazer essa discussão e revelou-se politicamente impossível."
O economista acredita também que não é possível aumentar mais as taxas
moderadoras - "quando muito é possível e até desejável rever as isenções",
diz. Isto porque temos uma das maiores taxas de contribuições diretas das
famílias de todos os países da OCDE.
Constantino
Sakellarides teme que mais cortes no SNS acabem por, a longo prazo, degradar o
serviço. "O cenário bom é ter um bom SNS, um bom sector privado e um bom
sector social." Neste caso, um privado que dá resposta, por exemplo, a
aspirações que não estão cobertas pelo contrato social. O mau cenário é o
desmantelamento progressivo do SNS, que "dará origem, com o tempo, a um
território servido por multinacionais da saúde com os centros de decisão em
Nova Iorque e em São Paulo. Porque o sector privado vai acabar por se
internacionalizar e o sector social será condenado ao assistencialismo". É
um regresso ao passado, com outra sofisticação.
Para Miguel
Gouveia, o melhor cenário é a consolidação da rede de hospitais, com
encerramentos, que teria um "pequeno efeito a nível de tempos de
deslocação até unidades mais especializadas", mas ganhos para o País como
um todo, incluindo poupança, que poderia ser canalizada para rede de cuidados
continuados e para a reforma dos cuidados de saúde primários, muito importantes
para uma população envelhecida.
Na educação
também existe o medo de que se siga por um caminho onde há um serviço para quem
tem dinheiro e outro para quem não tem. Almerindo Afonso, professor da
Universidade do Minho, acha que o caminho atual leva a um futuro em que a
escola pública é vista "como um mal necessário", só para os pobres,
ao mesmo tempo que há "a reelitização de algumas escolas e a apologia do
privado". Para o especialista, não estamos perante apenas um problema
orçamental, mas também um "problema ideológico", com um Governo que
"é um híbrido entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo". Não tem
dúvida, no entanto, de que a escola precisa de ser reorganizada e sobretudo
aliviada do excesso de missões que tem neste momento.
Já o presidente
do Conselho Nacional de Educação, David Justino, considera que "a maior
ameaça é a do retrocesso do nível já atingido". Para o ex-ministro do
Governo de Durão Barroso, é necessário "hierarquizar prioridades e centrar
o seu esforço de investimento no que é fundamental", que é "o aumento
da qualidade da educação". O responsável defende que é preciso equacionar
"se tem sentido assegurar alguns dos serviços atualmente oferecidos pelo
sistema de ensino", mas que isso só pode ser feito partindo de um
compromisso entre as forças políticas e os parceiros sociais” (texto de Patrícia
Jesus, DN de Lisboa, com a devida vénia)