quarta-feira, janeiro 02, 2013

Opinião: "Um sinal de alerta ao jornalismo"

"Quantos jornalistas, por preguiça ou incapacidade, alimentam a dependência em notícias já redigidas, oriundas de gabinetes ministeriais ou partidários? Artur Baptista da Silva foi entrevistado, escutado e imposto ao público como figura de referência. As suas intervenções ajudaram a formar a opinião pública. Nada de estranho, não fosse Baptista um impostor. Mas é, e jornalistas consagrados com carreiras imaculadas caíram na sua armadilha. A culpa não é de um só. É de todos. Baptista existiu porque houve quem quisesse acreditar nele. E foram muitos. Olhando para trás, para tudo o que sobre ele foi publicado antes de desvendada a mentira, é impossível deixar de assinalar o caricato, se não o ridículo, da situação. É, de resto, aí que se concentra o debate. De facto, em Portugal, nada é tão destrutivo para a imagem pública como o ridículo. Mas, se no centro do ruído que se instalou, só o ridículo agitou consciências, não é sobre ele, como nunca é, que repousa a utilidade deste debate.
O embuste de Baptista é-nos útil por ser duplo. Está, primeiro, na sua identidade e está, depois, nos seus argumentos. A utilidade está no segundo, que expõe uma prática perniciosa do jornalismo português. Tudo o que Baptista afirmara, mesmo sendo mentira, foi válido até ser desmascarada a sua identidade. Agora, deixou de o ser. O que mudou? Não foram os dados, que ninguém verificou, mas a sua autoridade enquanto especialista. O que retirar disto? Pelo menos, duas coisas. Em primeiro, que no país, em particular nas suas elites, se continua a alimentar uma espécie de saloiice intelectual, para a qual os argumentos de autoridade valem mais do que os factos. A justeza das palavras, das evidências e até dos dados estatísticos depende cada vez menos da realidade e cada vez mais de quem os profere. Em segundo, como consequência de se preferir o relativismo aos factos, que nas redacções se cultiva uma desresponsabilização face às falsidades publicadas. Desde que assinadas por qualquer personalidade, associação ou sindicato, as informações são publicadas, legitimadas e discutidas. A sua verificação é facultativa. Assim, se quanto à identidade a fraude de Baptista é original, no que verdadeiramente importa, o caso não constitui, infelizmente, novidade. Exemplos há muitos. Entre os mais recentes, a polémica acerca das alegadas propinas no ensino secundário. Bastou um meio de comunicação atribuir a Passos Coelho afirmações que ele não proferira e, por toda a imprensa, o que à partida era falso foi longamente comentado e analisado como verdadeiro. O esclarecimento veio depois. Tarde de mais, como explica José Queirós, provedor do leitor do jornal “Público” (2012.12.09).
É preciso dizê-lo: temos razões para duvidar da relação entre o jornalismo e os factos. Quantos dados de sindicatos são publicados sem qualquer escrutínio, minando o debate, ao serviço de interesses corporativos? Quantos jornalistas, por preguiça ou incapacidade, alimentam a dependência em notícias já redigidas, oriundas de gabinetes ministeriais ou partidários? Quantas direcções de jornais não incentivam os seus cronistas a preferirem a polémica sobre o pensamento construtivo, para ganhar a guerra das audiências? E qual o impacto de tudo isto para a qualidade da informação que chega ao público? As respostas são, no mínimo, inquietantes. No que importa, Baptista não é novidade. Mas é um oportuno sinal de alerta. Agora que 2012 acaba e o difícil 2013 começa, com o debate da “refundação do Estado” à espreita, a lição que nos deixa é valiosa: para superar estes tempos difíceis, vamos precisar de um jornalismo mais exigente. Com os outros e consigo próprio" (texto do investigador Alexandre Homem Cristo, no Jornal I com a devida vénia)