A Conferência Episcopal Portuguesa fez um inquérito nacional e conclui que a Igreja precisa de mudar. O casamento dos padres, a igualdade de género e a aceitação da comunidade LGTBi+ são as novidades. Os mais conservadores não concordam com as conclusões e propõem uma ‘perspetiva diferente’. Um autêntico vendaval, que pretende abrir as janelas da Igreja e afastar todo o pó existente, deixando apenas os alicerces, é o melhor retrato do documento elaborado pela Conferência Episcopal Portuguesa, para fiéis que se identificam com o Relatório de Portugal. Usando uma linguagem mais coloquial, a Igreja portuguesa, dando seguimento a um pedido do Papa Francisco, fez um inquérito a nível nacional para apurar o que é preciso fazer para ser mais inclusiva e estar de acordo com os tempos que vivemos. As conclusões desse estudo, publicado em agosto, estão a dividir a Igreja por falarem em questões fraturantes, uma palavra tão em voga. O que chocou a ala mais conservadora foram os capítulos dedicados à inclusão, ao fim do celibato dos sacerdotes e à igualdade da mulher em relação ao homem.
Mas
vamos ao texto do Relatório de Portugal, que conclui que do mesmo «resulta
claro que todos querem uma Igreja renovada, mais amiga dos necessitados, mais
santa e mais evangélica, que propicie o envolvimento de todos». Diga-se que os
inquéritos efetuados pelas dioceses que se mostraram disponíveis foram
trabalhados, entre outros, por Juan Ambrosio, assistente convidado na Faculdade
de Teologia da Universidade Católica. O que também não agradou aos
conservadores...
Uma
das conclusões a que os relatores do documento chegaram é que há um divórcio
claro entre crentes e não crentes, existindo a ideia de «uma Igreja espiritual
e humanamente pouco inclusiva e acolhedora, discriminando quem não está
integrado ou não vive de acordo com a moral cristã, isto é, divorciados,
recasados e pessoas com diferentes orientações sexuais, identidades e
expressões de género (grupo LGBTQi+), que coloca em segundo plano as pessoas
com deficiência, os mais pobres, os marginalizados e, consequentemente,
desprotegidos, privilegiando atitudes assistencialistas nas situações de
pobreza e institucionalização nos grupos mais vulneráveis».
Como
já se percebeu, o relatório faz críticas ao estado atual da Igreja portuguesa e
sugere que se alterem comportamentos para contrariar «uma Igreja pouco
disponível para discutir de forma aberta e descomplexada a possibilidade de
tornar opcional o celibato dos sacerdotes e a ordenação de homens casados e das
mulheres, e ainda muito presa a um modelo teórica e doutrinalmente assente numa
conceção tradicional e assimétrica que concebe o humano a partir do masculino».
Que a
Igreja precisa de mudar depois dos escândalos sexuais e da diminuição de fiéis,
torna-se claro, mas a autocrítica no documento é uma constante, explicando-se o
que é preciso mudar, já que assistimos a «uma Igreja que comunica de forma
deficiente para dentro e para fora, reagindo mais do que propondo, mais
informativa do que comunicativa. E, por isso, a perceção sobre a comunicação da
Igreja é divergente: uns consideram-na bem-sucedida do ponto de vista
informativo, mas com pouco alcance, além de ser demasiado reativa, não
sugerindo uma agenda diferente, de acordo com os critérios e a linguagem do
Evangelho; uma Igreja onde o ecumenismo e o diálogo com outras instâncias da
sociedade continuam a ser insuficientes, revelando-se nalguns casos uma enorme ignorância
em relação às outras religiões, e mesmo às confissões cristãs, e onde não há
audácia no estabelecimento de pontes entre crentes e não crentes».
O documento termina com a declaração de que «o mundo precisa de uma ‘Igreja em saída’, que rejeite a divisão entre crentes e não crentes, que olhe para a humanidade e lhe ofereça mais do que uma doutrina ou uma estratégia, uma experiência de salvação, um ‘golpe de dom’ que atenda ao grito da humanidade e da natureza». Como facilmente se percebe, o Relatório de Portugal teve o efeito de um verdadeiro terramoto na Igreja. Os seus defensores dizem que, finalmente, «o Papa Francisco chegou à Igreja portuguesa. O futuro é incluirmos as pessoas e não excluirmos. O mundo mudou e a Igreja não pode continuar a ser um espaço de medo e de segregação», diz ao Nascer do SOL fonte eclesiástica. Ideia literalmente oposta tem a ala considerada mais conservadora, embora não gostem da adjetivação.
Relatório
falso
Como
seria de esperar, os católicos mais conservadores não se identificam com as
conclusões deste relatório, que dizem corresponder a uma ínfima parte dos
crentes. Na internet e na comunicação social são muitos os que se mostram
revoltados com este olhar. João Pedro Vieira, por exemplo, escreveu no
Observador uma ‘Carta de jovens aos bispos portugueses’, onde dá conta que as
conclusões do Relatório de Portugal estão longe de ser acertadas.
«Entristece-nos saber que o relatório não tem em conta a experiência de um
grande número de batizados que contradiz as conclusões apresentadas,
nomeadamente os frutos dos movimentos católicos juvenis». Antes de apontar
cinco pontos divergentes, o autor escreve: «Sentimo-nos profundamente
interpelados pelo pendor negativista e pela duvidosa generalização de algumas
das conclusões do citado relatório». João Pedro Vieira elabora depois cinco
pontos que deixaram os jovens com dúvidas: 1. A representatividade eclesial do
relatório; 2. A forma de (se) ver a Igreja; 3. O tom negativo do documento; 4.
A celebração da liturgia como louvor a Deus e a não ‘funcionalização’ do
sacerdócio; 5. A linguagem dúbia do documento. E é aqui que revela o que os
separa do documento oficial.
Já os
padres Ricardo Figueiredo e Duarte da Cunha elaboraram um documento com o nome
‘Uma outra perspetiva sobre a Igreja em Portugal’, com o objetivo, «não de
criar tensões, mas de contribuir com seriedade para um exercício de diálogo e
pareceu-nos que os relatórios diocesanos tinham algo mais profundo que quisemos
especificar», disse ao Nascer do SOL o padre Duarte da Cunha.
O
relatório arranca com uma afirmação forte: «Pareceu-nos que, por razões que não
sabemos, esse relatório não corresponde ao que estava nas sínteses diocesanas».
Discordando da metodologia, os padres escrevem: «O que se pretendia com o
processo sinodal era dinamizar as comunidades para uma avaliação dos desafios
em estilo sinodal e não o estudo completo do que é, do que diz ser e do que faz
a Igreja em Portugal: para tal seria necessário um estudo de outra envergadura.
Algumas sínteses diocesanas assinalam os números de participantes no processo
sinodal, que se pode dizer que é diminuto em relação ao número de católicos,
representando, em média, a partir do que se pode apurar, uma participação de
1,14% dos católicos».
Os
padres dizem também que «por vezes é fácil querer uma renovação da Igreja, mais
difícil é querer a própria conversão, que implica mudanças na própria vida»,
acrescentando que «torna-se necessário renovar a imagem da Igreja: apesar de
todos os pecados cometidos, ela tem futuro, é portadora de uma mensagem
essencial para os dias de hoje, e está disponível para exercer a missão. À
Igreja cabe testemunhar a presença libertadora e redentora de Jesus Cristo
vivo, hoje como ontem». Quanto ao casamento dos sacerdotes, os dois padres
fazem uma leitura diferente das sínteses diocesanas apresentada pela
Conferência Episcopal Portuguesa. «É preciso reforçar a necessidade da
santificação dos sacerdotes para mostrar o sacerdócio como caminho feliz de
santificação e o celibato como identificação com Cristo». Já quanto à questão
dos divorciados e dos gays, escrevem: «Algumas sínteses dizem que seria
importante uma melhor adequação do anúncio da fé às necessidades do ser humano.
Outras há em que são feitas diversas propostas que, por vezes, ignoram a antropologia,
a moral ou outros aspetos da doutrina católica, como, por exemplo, o pedido de
admissão à comunhão sacramental de divorciados recasados, a aceitação das
uniões entre pessoas do mesmo sexo, a ordenação de mulheres, etc., o que desde
logo sinaliza a necessidade de formação. Neste sentido, podem destacar-se
vários aspetos em que é necessário revitalizar a formação humana, intelectual e
espiritual dos católicos em geral: política, economia, ecologia, cultura. Ainda
a respeito da formação cristã chamou-se a atenção para a necessidade de um
esforço para, com a graça de Deus, se conseguir ter maior coerência entre o que
se ensina e o que se vive».
Sendo
mais claros, acrescentam: «A Igreja é uma realidade que está neste mundo e que
pode ser sociologicamente pensada e, nessa sua dimensão, pode reformar-se
sempre para ser mais clara a refletir Jesus Cristo, mas a sua natureza não se
reduz ao que é deste mundo. Isso também tem implicações na forma como cada
cristão vive a sua fé».
Os
autores do documento terminam dizendo: «Pretendemos, em espírito sinodal e com
fraterna liberdade, discordar da forma e até do conteúdo do ‘Relatório de
Portugal’ apresentado pela equipa sinodal da Conferência Episcopal Portuguesa,
porque francamente nos pareceu que não faz justiça ao que as dioceses disseram.
Propomos uma perspetiva diferente a respeito da Igreja em Portugal. Como é dito
a respeito das sínteses diocesanas no material enviado pelo secretariado romano
para o Sínodo dos Bispos, acreditamos que também este relatório pode ser usado
‘como pedra de toque para o percurso’ que, enquanto discípulos missionários de
Cristo, somos chamados a percorrer na Igreja em Portugal. O presente relatório
foi enviado a todos os Bispos da Conferência Episcopal Portuguesa».
E são estas duas realidades, entre outras, que estarão em jogo nos próximos tempos. Se a Igreja portuguesa seguirá o caminho da alemã, holandesa ou belga, mais abertas às novas realidades, ou se vão manter as tradições, não havendo dúvidas quanto às diferenças entre os casais casados ou recasados, quanto aos padres celibatários ou não, quanto as gays se serão aceites de pleno direito ou não. Há quem diga que podemos estar perante outra grande cisão na Igreja católica, que os mais conservadores acreditam que se está a aproximar do Protestantismo. Já os defensores do Relatório de Portugal, onde se inclui o cardeal patriarca D. Manuel Clemente, acreditam que o caminho da Igreja é o da inclusão, seguindo as máximas de que ‘quem nunca pecou que atire a primeira pedra’ ou o filho pródigo à casa volta, numa alusão a todos aqueles que têm sido excluídos da vida religiosa. A Jornada Mundial da Juventude será o palco da luta destas duas correntes, sendo que o Papa, diz-se, está do lado dos renovadores (Sol, texto do jornalista Vítor Rainho)
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