domingo, maio 29, 2022

A associação, a fundação, o CCB, os bancos e os tribunais: que mundo é este que o Governo quer cortar com Berardo


Depois de anos de tensão, o ministro da Cultura rompeu com o acordo que desde 2006 unia o Estado a José Berardo. Um acordo que levou à constituição de uma fundação, que vai agora acabar. Isto numa história em que há outra fundação, outra associação e obras de arte que os tribunais ainda vão decidir de quem são. A união tem mais de 15 anos, foram várias entidades a jurar compromisso, mas tudo parece estar perto do fim – e na verdade já muito estava tremido. É este o resumo rápido do que passa na ligação do Estado português a José Berardo. O ministro da Cultura anunciou o fim do protocolo através do qual o Estado ganhou o direito de expor as obras de arte que pertencem ao empresário José Berardo. Ou melhor, podem pertencer, ou podem não pertencer, e quem vai decidir são os tribunais. O protocolo assinado em 2006 tem quatro signatários, sendo que é com base nele que nasce depois um quinto protagonista. É precisamente esse quinto protagonista que agora vai desaparecer.

Mas que atores são estes?

JOSÉ MANUEL RODRIGUES BERARDO

É mais conhecido por Joe Berardo. Empresário, com 77 anos, a viver em Portugal há muitos anos, mas com passagem pela África do Sul. Chegou a ser falado para comprar a SAD do Benfica e foi um dos rostos da guerra de poder no BCP, no verão quente de 2007. Desde aí foi sempre estando pelo país, sobretudo na vertente museológica. Em 2006, chegou a acordo com o Estado para expor a obra que foi colecionando. Financiou-se junto de três grandes bancos (CGD, BCP e BES) para fazer investimentos, sendo que ficaram por pagar quase mil milhões de euros, segundo os cálculos dos bancos. Já Berardo considera que foi ele o enganado pelos bancos, e que estes é que o devem compensar, incluindo por danos morais. Em 2007, chegou a ter contratos para poder gastar mais de mil milhões de euros dos três bancos, que hoje lhe reclamam 962 milhões de euros. Recebeu duas ordens honoríficas por parte do Estado português - é, por isso, comendador.

ASSOCIAÇÃO COLEÇÃO BERARDO

Não é a única associação ligada a Berardo, mas é aquela que é proprietária das obras de arte expostas no Centro Cultural de Belém desde o acordo da primeira década do século XX. Nos financiamentos concedidos pelos bancos, foram os títulos de participação nesta associação – uma espécie de ações – que foram concedidos como garantias. Porém, houve uma operação realizada por Berardo que tirou aos bancos a maioria nessa associação, mesmo que executassem tais garantias, razão pela qual seguiram para tribunal para defender que as obras da associação são a verdadeira garantia dos empréstimos que facultaram. Joe Berardo considera que se não fosse esta coleção ter ido parar ao CCB, os portugueses teriam de ir para grandes capitais ocidentais para verem peças idênticas.

FUNDAÇÃO CENTRO CULTURAL DE BELÉM

É a entidade de direito privado mas com utilidade pública, que gere o edifício museológico localizado em Lisboa. O seu trabalho é de promoção de atividades culturais, de exposições a espetáculos, passando por conferências e atividades educativas. Elísio Summavielle é o presidente. Tem 155 trabalhadores. Depende do Estado no que diz respeito às nomeações dos órgãos sociais, bem como ao financiamento. O BCP e a CGD estão entre as entidades instituidoras da fundação, inicialmente designada Fundação das Descobertas).

MINISTÉRIO DA CULTURA (ESTADO)

Os sucessivos governos têm lidado com este protocolo, mas nenhum dos últimos ministros da Cultura parece avaliar positivamente a união. Se Adão e Silva extinguiu o acordo (que se vence no fim do ano), antes dele já Graça Fonseca preparava uma solução para este imbróglio, até porque foi a sua tutela que impediu que Berardo levasse para fora do país 16 obras de arte. Foi em 2016, já com o Governo de António Costa, que foi renovado o acordo de comodato desenhado dez anos antes. A extensão foi até 2022, e, se não houvesse denúncia de uma das partes, iria renovar-se automaticamente. Mas já desde o Governo de Passos Coelho que havia problemas na ligação com o empresário.

FUNDAÇÃO DE ARTE MODERNA E CONTEMPORÂNEA – COLEÇÃO BERARDO

É a entidade criada para pôr em prática a união entre as quatro entidades acima referidas. Na sua administração estão, entre outros, Joe Berardo e Elísio Summavielle, que preside ao CCB. É esta que vai ser extinta com a denúncia do acordo de comodato das obras de arte, segundo anunciou o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, na semana passada. Tem 27 trabalhadores, que se vão juntar aos 155 funcionários da Fundação CCB, de acordo com o governante. Neste momento, Elísio Summavielle é o fiel depositário das obras de arte cedidas a esta fundação, e que neste momento se encontram arrestadas por decisão judicial, no âmbito do processo movido pela CGD, BCP e Novo Banco. Não podem ser vendidas nem cedidas sem autorização de Summavielle e é neste enquadramento que o Governo acredita ter capacidade para mantê-las sob a gestão do CCB até que venha uma sentença transitada em julgado.

FUNDAÇÃO JOSÉ BERARDO, METALGEST E MOAGENS ASSOCIADAS

São entidades do universo empresarial de Berardo. São a elas que os três bancos (CGD, BCP e Novo Banco) imputam o ressarcimento de 962 milhões de euros, sendo que pretendem que as obras de arte sejam uma das formas de saldar tal dívida. A Fundação fez os investimentos em ações, recusando Berardo que o tenha feito para investimentos especulativos, mas sim para obter dividendos e mais-valias que reverteriam para os fins da fundação.

BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS

Desde 1998 que mantinha uma ligação com entidades da esfera de José Berardo, tendo-as financiado para a compra de ações, sendo que eram estes títulos que eram usados como garantia. Em 2004, começam os financiamentos de maior montante, em que ações continuam a ser garantidos, mas também os títulos da Associação Coleção Berardo. Em 2007, com Paulo Teixeira Pinto à frente do BCP e a iniciar uma guerra contra o seu antecessor e fundador do banco, Jardim Gonçalves, reforça o peso na estrutura acionista. O empresário defende que foi o banco que o aconselhou a fazer investimentos que depois se revelaram ruinosos. Tal como os outros bancos, considera que Berardo fez movimentações para dificultar que os bancos pudessem executar as obras de arte como garantia dos empréstimos por saldar.

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS

O banco público entra na vida de Berardo só em 2007. Para adquirir uma participação até 10%, ao qual o Banco de Portugal de Vítor Constâncio não se opôs, o comendador pede 350 milhões de euros à CGD para financiar a operação. Berardo defende que foi o banco privado, por estar limitado nos financiamentos adicionais que poderia dar a um cliente já tão exposto e que teria como colateral ações do próprio BCP, a aconselhar a Caixa. Tal como os outros bancos, considera que Berardo fez movimentações para dificultar que os bancos pudessem executar as obras de arte como garantia dos empréstimos por saldar.

BANCO ESPÍRITO SANTO

Também o banco de Ricardo Salgado tinha relações já vindas desde os anos 90 com José Berardo. Mas em 2006 foi reforçada a relação com um financiamento que podia ir aos 200 milhões de euros. Hoje em dia, a sua atividade comercial foi transmitida para o Novo Banco, sendo que o BES é apenas uma entidade em liquidação, para tentar permitir alguma recuperação aos credores.

NOVO BANCO

Herdeiro comercial do BES, é o Novo Banco que herda os financiamentos de Berardo, razão pela qual é ele que segue para os tribunais contra o comendador – é aquele que menos reclama, face ao BCP e à CGD. Apesar de o Novo Banco ser o banco onde está o crédito, o BES em liquidação também é apontado como alvo no grande processo que, este mês, foi colocado por José Berardo. Tal como os outros bancos, considera que Berardo fez movimentações para dificultar que os bancos pudessem executar as obras de arte como garantia dos empréstimos por saldar.

TRIBUNAIS

É na justiça que estão inúmeros processos judiciais, ora da autoria das instituições financeiras credoras ou de Berardo e do seu universo empresarial. A principal sentença é relativa à propriedade das quase 900 obras de arte que compõem a coleção Berardo: se a Associação Coleção Berardo, onde foram integradas com as compras do empresário; se os bancos que consideram que elas são suas e que podem ser usadas para reembolso dos créditos. Se não se sabe qual a resposta, outra grande incógnita é quando chegará. Mas é para ela que o ministro da Cultura aponta para decidir com quem é que o Estado (seja qual for o governo) tem de negociar para continuar a manter a fruição pública das pinturas e esculturas que, hoje em dia, ainda estão sob a designação coleção Berardo (Expresso, texto do jornalista Diogo Cavaleiro)

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