José Sócrates transformou-se numa bête noire, mas se o juiz o iliba no dia 9 de abril rebenta uma ‘bomba’ no coração do sistema. Na política e na justiça. O truque tem sido usado em quase todas as eleições. Quando um candidato de direita quer embaraçar um protagonista do PS, leva para a televisão uma fotografia do adversário com José Sócrates: mostrar alguém ao lado de um líder que vivia sustentado por 23 milhões de euros de uma conta em nome de um amigo é uma arma demasiado tentadora para se deixar na gaveta. Crava um dano reputacional. Esta associação tóxica tem sido recorrente em debates eleitorais, parlamentares ou em comícios. E raramente os socialistas defendem o ex-secretário-geral. Mesmo por julgar, Sócrates transformou-se na bête noire da política portuguesa, num símbolo dos piores vícios da classe governante: a vida acima das possibilidades — “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”, escreveram juízes da Relação —, o alegado conluio com negócios, as mentiras e as ocultações, para não falar da bancarrota e do despesismo. Agora, sozinho e com a reputação arruinada, dez anos depois de perder o Governo e sete após o choque da prisão preventiva, está perante mais um momento decisivo: conhecerá o resultado da instrução na próxima sexta-feira, 9 de abril. O juiz Ivo Rosa mantém a acusação do Ministério Público? Ou deixa cair os principais crimes, como a corrupção? Nenhuma decisão será inócua (ver pág. 8). Qualquer decisão terá efeitos sistémicos na política. E José Sócrates reagirá em qualquer dos casos.
Daqui a uma
semana, a Operação Marquês, em que Sócrates é acusado de 31 crimes de corrupção
passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, fraude fiscal
qualificada e falsificação de documento — a par de outros 28 arguidos, como
Ricardo Salgado, Zeinal Bava ou Henrique Granadeiro —, voltará às primeiras
páginas e ocupará horas de comentários televisivos. Dez dias depois, a 19 de
abril, estreia no Opto, o canal de streaming da SIC, “Prisão Domiciliária”,
uma série de ficção sobre um político corrupto que se abastecia de dinheiro
vivo através do seu motorista. Soa familiar? Antes que um ser humano normal
consiga ler as seis mil páginas do despacho de Ivo Rosa, debater-se-á na praça
pública se as alegações da instrução são mais ficção ou realidade ou se a série
televisiva é mais realidade do que ficção. O comentador João Miguel Tavares,
autor do guião, garante ao Expresso (ver Revista E, pág. 59) que não se trata
da história do ex-líder socialista (apesar de algumas tangentes), até porque
“Sócrates é uma personagem tão rica que merecia um documentário” sobre o que
realmente aconteceu, não precisa da ficção para ser um recordista de
audiências.
Socialistas
próximos de Sócrates CREEM que ele voltará à intervenção política se for
ilibado
No mundo real,
“estaremos perante uma ‘bomba’ de extraordinário impacto”, antevê o socialista
João Cravinho, ex-ministro que como deputado na era socrática não conseguiu
levar por diante um plano de combate à corrupção. “O PS não cumpriu”, lamenta.
“Vai haver matéria completamente nova. E seja qual for a decisão, terá uma
enorme repercussão em toda a apreciação pública do caso”, diz Cravinho ao
Expresso. No dia seguinte, nenhuma das duas hipóteses possíveis será boa,
resume o histórico socialista Manuel Alegre: “Se houver julgamento mas não
incidir sobre as acusações mais graves, deixa mal a investigação e o Ministério
Público. Se essas acusações mais graves forem confirmadas, abala ainda mais a
confiança no sistema político.” É uma situação em que se perde seja qual for o
desfecho. A somar aos aspetos negativos, aponta a demora no processo: “Isso
incomoda-me”, critica, citando uma carta com 600 anos, do infante D. Pedro ao
irmão D. Duarte, que aconselhava justiça feita “sem delonga”. Processos
intermináveis — em relação aos quais também tem alertado o Presidente da
República — funcionam como condenação quando a inocência deve ser presumida.
“Não estarei vivo de certeza para ver o fim da Operação Marquês”, acrescenta
Cravinho. Até porque qualquer pronúncia será provisória: se a decisão for
desfavorável à investigação, o Ministério Público deve recorrer para o Tribunal
da Relação. Se for ao contrário, deve ser a defesa a fazê-lo. O show vai
continuar.
“SEM ACUSAÇÃO, É
JUSTIÇA PERVERTIDA”, DIZ ANA GOMES
Com o PS a gerir o
tema com pinças — praticamente em silêncio há três anos —, Ana Gomes faz uma
análise mais tremendista do que os seus camaradas: “Se não der em nada, é a
justiça que se descredibiliza. Será devastador para o país, destruidor da
democracia, e ninguém acreditará em mais nada. Se ele não for acusado, é sinal
de que a justiça foi pervertida”, estabelece a ex-candidata presidencial. Mais
à direita, Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça do PSD, observa o
problema de outra perspetiva: “Se houver matéria criminal, será muito triste
para o país, mas justiça é justiça, seja para o que for”, afirma ao Expresso. E
se a acusação cair? “A justiça sairá sempre bem: se houver, há; se não houver,
não há.”
No fundo, não anda
longe do que António Costa estabeleceu como doutrina para o PS em maio de 2018,
quando José Sócrates se desfiliou do partido perante as reações à descoberta de
que Manuel Pinho era ministro da Economia mas continuava alegadamente pago pelo
BES através de uma offshore: “Se obviamente aqueles factos forem provados,
constituem uma desonra para a democracia. E, se não vierem a ser provados, é
uma boa demonstração de que o sistema de justiça funciona, o que é uma honra
para a nossa democracia.” É uma dupla saída, ao estilo de Costa, que acautela
tudo: se Sócrates cair, o passivo é assumido e o ex-líder ostracizado como
mancha para o partido; se for ilibado, a justiça fez o seu trabalho.
SÓCRATES “NÃO
FICARÁ QUIETO”
Resta saber quais
serão os próximos passos do próprio José Sócrates. Renato Sampaio, um dos
poucos socialistas que se mantém próximo do ex-líder, não só acha que ele “vai
ser ilibado” como isso arrastará parte do partido: “Haverá muita gente no PS a
dizer que nós tínhamos razão”, garante. E antecipa agitação política: “Quem o
conhece sabe que, se ele sai ilibado disto tudo, o PS vai ter um problema novo.
[Sócrates] não ficará quieto.” Para fazer o quê, não se sabe, mas outros
socialistas da órbita do antigo primeiro-ministro que preferem não ser
identificados admitem ao Expresso que “a não acusação será mais problemática a
médio-longo prazo para o PS do que a acusação”, porque Sócrates “não vai ficar
sossegado” e “assumirá certamente novos projetos políticos”. E não é de excluir
que se mova por um certo sentimento de “vingança”, avisa um deles.
Mesmo nesta fase
de indefinição, Sócrates tem estado ativo. Não só “escreve muito”, diz um dos
confidentes que lhe restam, como acompanha a par e passo tudo o que se passa cá
dentro e lá fora. Os seus artigos na imprensa sucedem-se: a defender o
aeroporto em Alcochete, a criticar a gestão política da crise do cidadão
ucraniano assassinado no SEF, a fazer a história da crise financeira para
justificar a necessidade de ajudas europeias de emergência, a alertar para uma
“vaga de degradação política” durante as presidenciais, criticando a
“brutalidade” da extrema-direita e a “maledicência” de Ana Gomes. Política,
muita política, quase sempre em contraponto com o Governo e o PS. Se tentará
fazer um novo caminho, só o futuro o dirá...
INVESTIGAR PARA
INFLUENCIAR A POLÍTICA
Sem arriscar um
prognóstico sobre a decisão de Ivo Rosa, o social-democrata Miguel Poiares
Maduro, jurista e antigo ministro-adjunto de Passos Coelho, dá o contexto para
a possível queda dos crimes mais graves: “Uma parte da magistratura acha muito
difícil a pronúncia por corrupção, se não houver uma contrapartida imediata e
clara.” Muitas vezes, a corrupção pode não ser mais do que uma relação de
dependência, explica.
Um dos magistrados
que fará parte desta categoria mais conservadora será Luís Noronha Nascimento,
o antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que no fim do verão
escreveu um longuíssimo artigo para a revista “O Referencial”, da Associação 25
de Abril, a garantir que as polémicas escutas que mandou destruir, entre José
Sócrates e Armando Vara (que seria condenado a prisão efetiva no processo Face
Oculta e é acusado nesta Operação Marquês), “não interessavam literalmente para
nada” e apenas invadiam “a esfera privada” dos visados.
Sem se referir
diretamente à Operação Marquês, Noronha Nascimento antecipava um cenário em que
o futuro pode trazer “uma surpresa desagradável: a manipulação da investigação
criminal, usada como arma dissimulada de arremesso para influenciar,
condicionar ou infletir as tendências políticas da sociedade”. O magistrado
assumia que, “nos anos seguintes” ao início de funções como presidente do STJ,
solidificou “essa perceção inicial” de a investigação querer interferir
politicamente.
Os argumentos do
juiz jubilado encaixam com algumas reações do próprio José Sócrates à
investigação: no mínimo, o ex-PM já acusou o procurador Rosário Teixeira de se
mover contra si por “motivação pessoal” e comparou o juiz Carlos Alexandre ao
brasileiro Sérgio Moro (que condenou Lula e chegou depois a ministro de
Bolsonaro, sendo agora acusado de ter manipulado a investigação do MP
brasileiro). Muito crítico da Procuradoria, Noronha Nascimento apontou no seu
texto que “o inquérito aceita mal o contraditório do arguido, o seu acesso às
provas, a sua igualdade formal, e não admite que ele possa recorrer de qualquer
ato praticado pelo Ministério Público”. Deixou ainda uma observação: “Perseguir
a oligarquia é bem visto no imaginário que as camadas sociais elaboram a
reboque das mensagens transmitidas na imprensa ou nas redes sociais.”
Mais explícito nas
palavras, Sócrates, que lançou suspeitas de viciação sobre a distribuição do
seu processo a Carlos Alexandre em vez de Ivo Rosa (que chegou a elogiar),
descreveu a sua acusação como uma “alucinação”. E, quando o brasileiro Sérgio
Moro esteve em Lisboa, acusou-o de ser “um ativista disfarçado de juiz”, que só
chegou a ministro por ter detido Lula da Silva. E importou o caso para
Portugal: “Parece que há uma escola internacional que pensa que é possível
instrumentalizar juízes...” Quer Sócrates ser um Lula português e regressar?
FRASES
“Se essas
ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa
democracia. Mas, se não se vierem a confirmar, é a demonstração de que o nosso
sistema de justiça funciona”
António Costa, 3
de maio de 2018
“Se os
comportamentos criminosos de que se fala forem provados, sentir-me-ei não só
embaraçado como traído”
Augusto Santos
Silva, 9 de maio de 2018
“A vergonha é
maior porque era primeiro-ministro. Ficamos entristecidos, até enraivecidos,
com isto”
Carlos César, 2 de
maio de 2018
“A injustiça que a
direção do PS comete comigo, juntando-se à direita política na tentativa de
criminalizar uma governação, ultrapassa os limites do que é aceitável no
convívio pessoal e político”
José Sócrates,
carta de saída do PS, 4 de maio de 2018
“Se não der em
nada, é a justiça que se descredibiliza. Será devastador para o país,
destruidor da democracia, e ninguém acreditará em mais nada”
Ana Gomes,
socialista, ex-candidata presidencial
“Se houver
julgamento sem as acusações mais graves, deixa mal a investigação. Se as
acusações mais graves forem confirmadas, abala ainda mais a confiança no
sistema político”
Manuel Alegre,
militante histórico do PS (Expresso, texto do jornalista VÍTOR MATOS)
Sem comentários:
Enviar um comentário