segunda-feira, maio 03, 2021

Venezuela: A guerra na fronteira com a Colômbia onde cabem forças de segurança nacionais, ex-FARC, narcotráfico, tortura e locais em fuga


Relatório da Human Rights Watch denuncia "abusos aberrantes" por parte das forças de segurança da Venezuela contra a população em Apure, um dos estados mais pobres da Venezuela, uma região abandonada pelo regime onde grupos guerrilheiros penetraram e engordam a influência.

A guerra, que faz o que as guerras fazem, mudou-se para Apure, um dos estados mais pobres da Venezuela, há mais de um mês, alimentada pelo conflito e conivência com “grupos irregulares”, sobretudo forças dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Há grupos armados colombianos e um venezuelano a operar por ali, junto à fronteira colombiana, sedentos de dominar as rotas e o chão a favor da circulação de droga e outras mercadorias ilícitas. A Human Rights Watch (HRW) denunciou, na segunda-feira, “abusos aberrantes” por parte do exército venezuelano naquela região. Pelo menos 6000 residentes já fugiram para o outro lado da linha que divide os dois países.

A ofensiva das forças venezuelanas contra os tais grupos irregulares começou a 21 de março. Testemunham-se aviões militares a sobrevoar a zona, outros veículos de guerra a calcar a terra e armas pesadas a levantar pó. Na quarta-feira, o Ministério da Defesa da Venezuela deu conta de várias baixas entre os militares, após “batalhas sangrentas”. Alguns vídeos nas redes sociais, cuja veracidade não foi verificada, mostram cadáveres de tropas venezuelanas espalhados numa área de vegetação. Terão havido também várias detenções, que supostamente estão a oferecer ao regime “informação valiosa”. O comunicado do Ministério da Defesa dizia ainda que os confrontos continuariam e que até se intensificariam, com o fim “neutralizar qualquer reduto destes deliquentes”, até ser garantida a sua “total expulsão e derrota definitiva”.

No documento da ONG Human Rights Watch podem ler-se menções a execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, torturas de distintas naturezas e ainda julgamentos de civis em tribunais militares. Segundo relatos recolhidos, as forças venezuelanas associadas aos “abusos aberrantes” são as Forças de Ações Especiais da Polícia Nacional Bolivariana, a Guarda Nacional Bolivariana e o Comando Nacional Anti-extorsão e Sequestro.

“O que documentámos em Apure são violações dos direitos humanos gravíssimas cometidas por forças de segurança venezuelanas, no contexto do que eles chamam ‘uma ofensiva contra os grupos armados ilegais'”, diz ao Expresso fonte daquela organização. “A realidade é que, em Apure ou noutros lugares da fronteira da Venezuela, operam abertamente vários grupos armados ilegais, incluindo o ELN [Exército de Libertação Nacional] e algumas dissidências das FARC.”

E continua: “O que se está a passar agora, em Apure, desde 21 de março, é que as autoridades venezuelanas estão a ir contra o que parece ser uma das dissidências da FARC para favorecer outra dissidência e manter o controlo e os vínculos sobre as atividades ilegais naquela zona. A consequência é a de as pessoas estarem a fugir de Apure, com muitíssimo medo. Há 300, 400 pessoas deslocadas internamente, na Venezuela, e outras 5800, que foram para a Colômbia, estando agora em albergues em Arauca, do lado colombiano, outras estão em casa de familiares ou quintas nas zonas rurais”. A situação, seja nos albergues ou até em acampamentos, cria outro desafio em contexto de crise sanitária, já que não é possível manter o distanciamento social. “As autoridades locais e as agências humanitárias estão a tentar dar alguma assistência humanitária, mas não é suficiente”, lamenta.

A HRW, denuncia “abusos” na cidade de La Victoria e nas zonas rurais perto daí, fez inúmeras entrevistas a locais. As execuções extrajudiciais são talvez o facto mais impactante desta história, alerta a fonte daquela organização. Foram feitas análises forenses, há fotografias dos corpos e poucas dúvidas: não serão vítimas de confrontos, mas sim de execuções. A fonte daquela entidade menciona os “testemunhos de tortura com um nível de insanidade e abuso que não deixa de doer, ainda que se oiça reiteradamente em distintos casos”, uma realidade que fez andar algumas investigações internacionais de organismos importantes, nomeadamente do conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Carlos Pérez e Diego (nomes fictícios), de 28 e 14 anos, contaram àquela organização que foram levados para casas diferentes por 15 agentes das Forças de Ações Especiais da Polícia Nacional Bolivariana e que, de joelhos e depois de interrogados sobre eventuais ligações às organizações de guerrilheiros, foram pontapeados nas costas e obrigados a comer terra. Carlos chegou a ter uma arma apontada ao pescoço e ouviu o fatal gatilho a ser pressionado, mas a pistola estava descarregada.

No dia 25 de março, as Forças de Ações Especiais entraram na quinta onde Pablo Ramírez (nome fictício) e a família vivem e trabalham, numa zona rural de La Victoria. Depois de lhe espetarem uma navalha num dos dedos da mão, usaram um alicate para o puxar e torcer. “Senti que o iam partir”, admitiu à HRW, depois de ser ameaçado de morte. Pablo revelou ainda que ameaçaram levar-lhe o filho de cinco anos, assim como cortar a barriga da mulher, grávida de cinco meses, para arrancar de lá o bebé.

Não são casos isolados, trata-se de uma prática sistemática, lamenta a fonte da HRW. “O mais triste é isso”. A esperança na mudança, desabafa, vive meramente na ação da comunidade internacional, visto que na Venezuela “o poder judicial é um apêndice do poder executivo”.

O diretor do Centro de Investigaciones Populares e professor da Universidade Central da Venezuela, Alexander Campos, entende que a principal causa para o drama em Apure vive na “falta de domínio efetivo de território”. Ou seja, “a origem do que está a acontecer ali é o Estado venezuelano, por distintos factores e distintas razões, estar a perder o domínio do território. Agora, em nosso entender, o principal responsável da perda desse domínio é precisamente o Estado encarregado de manter esse domínio, pois vive numa permanente convivência ideológica e delinquente com os distintos atores violentos que ali estão presentes”.

Uma reportagem do “New York Times” (NYT), publicada na segunda-feira, 26 de abril, dá força à tese. O título conta história: “Grupos terroristas instalam-se na Venezuela enquanto cresce a anarquia”. O artigo fala de territórios de “um país em caos” ocupados e manejados por “criminosos e insurgentes”. Um grupo referido por aquele diário norte-americano, “considerado terrorista pelos Estados Unidos e União Europeia”, olha pela população, entrega àquela gente água potável, oferecem-lhes consultas médicas e servem de mediadores em disputas de terras ou divórcios ou atuam até como justiceiros perante ladrões de gado. Vão ganhando influência, legitimidade, perante uma população abandonada e esfarrapada na dignidade. Afinal, o colapso do país permitiu que estes grupos se instalassem e ocupassem cada vez mais terras desta área abandonada pelo regime. Um dos testemunhos ouvidos pelo “NYT” foi o de um líder indígena, que revelou surpreendentemente que os insurgentes deram-lhes “estabilidade”. Mais: “Trouxeram a paz”.

Alexander Campos esboça um complexo xadrez de influência ali na região, mencionando vários grupos - “são bastantes” -, intenções e confrontos e conivência das forças militares venezuelanas. De acordo com o documento da HRW, os grupos presentes em Arauca e Apure vão desde o já mencionado Exército de Libertação Nacional (ELN), uma guerrilha formada na Colômbia, nos anos 60, ao Frente Décimo Martín Villa e Segunda Marquetalia, duas forças que surgiram das desmanteladas FARC, que ocorreu sobretudo em 2016, após os acordos de paz. Mas não só guerrilheiros ou grupos venezuelanos operam ali: as Forças Patrióticas de Libertação Nacional, um grupo venezuelano criado nos anos 90, também fareja na zona.

Muita pólvora e sangue depois, o que conseguem realmente é manejar as atividades ilegais “sem qualquer impedimento”, explica o investigador, justificando-o com a “pacificação e regularização da convivência que ali está”. Ou seja, é uma história em marcha, mutável, que fala ao sabor do vento e da bala, do poder. “Operam ali fundamentalmente para controlo das atividades ilícitas de distintos calibres, fundamentalmente o contrabando de droga e minerais preciosos, até gasolina e esse tipo de coisas. Como aliados ideológicos dos políticos do regime, estão ali para levar adiante o negócio, mas estão também para servir o regime de sustento.”

Alexander Campos não sabe dizer quando começou o conflito na fronteira, já que o Estado venezuelano nunca teve pleno domínio da fronteira, principalmente da colombiana, pois é muito grande. Apesar de haver muitos atores violentos, “havia poucos conflitos abertos até à entrada deste regime militar venezuelano”, esclarece.

Este investigador vê o Governo como “um sócio com os seus compinchas”, pois atuam “para favorecer a ala guerrilheira”, em Apure. Isto é, “está claríssimo que está a libertar o caminho para eles penetrarem livremente e tenham o negócio. Estão a atuar como cúmplices, para além disso estão a atuar com toda a brutalidade possível”.

Se a este investigador preocupa sobretudo a urgência humanitária que é semeada debaixo dos pés de insurgentes e forças venezuelanas, a nível político o que teme é a criação de “um corredor” que poderá abrir caminho para a engorda da influência de uma facção das FARC, obtendo carta branca para o narcotráfico. Mais: Campos receia que este capítulo da história possa levar a uma guerra “muito mais aberta” com a Colômbia. E isso, garante, “teria dimensões horrorosas” (Expresso, texto do jornalista Hugo Tavares da Silva)

Sem comentários: