quarta-feira, fevereiro 17, 2021

Redes sociais: Na fronteira da liberdade de expressão

 


Trump não é o único famoso banido do Twitter. Devem as redes sociais decidir quem pode ou não publicar? John Adams, segundo Presidente dos Estados Unidos, escreveu o seguinte nas margens do “Ensaio de Um Quadro Histórico do Espírito Humano”, do filósofo francês Marquês de Condorcet, no capítulo sobre os benefícios de uma imprensa livre: “Já se propagou mais informação falsa na imprensa nos últimos dez anos do que nos 100 antes de 1798.” Os jornais eram extensões dos comícios e serviam declaradamente para denegrir oponentes ou até anunciar a morte de algum, como aconteceu a Thomas Jefferson, estava ele bem vivo. A desinformação tem séculos e a descrença nos meios de comunicação também.

Muitos defensores do controlo das redes sociais acreditam que a invasão do Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, a 6 de janeiro deste ano, foi desencadeada ou fortemente incentivada por conteúdo publicado no Twitter pelo então ainda Presidente. Donald Trump está a ser julgado no Senado por incitação à insurreição e foi permanentemente banido do Twitter (e do Facebook, Instagram, Snapchat, entre outras redes sociais) a 8 de janeiro. No discurso desse dia, repetiu pela enésima vez a mentira de que as eleições presidenciais foram uma fraude, pediu “uma marcha até ao Capitólio” e instou os seus apoiantes a mostrarem “força” na luta pelo país que desejam.

A liberdade de expressão acaba onde começa a incitação, mas onde fica a linha? Para Courtney Radsch, autora do livro “Ciberativismo e Jornalismo Cidadão no Egipto: Dissidência e Mudança Política” e ativista pela liberdade de expressão, a fronteira é a liberdade de escolha das próprias plataformas: “Twitter, Facebook, YouTube, todas estas redes floresceram nos Estados Unidos, num ambiente onde a defesa da liberdade de expressão está muito enraizada. Mas são plataformas privadas, podem gerir quem lhes acede, e é bom que assim seja, porque não queremos que ‘The New York Times’, o Expresso ou a Fox News sejam obrigados a publicar isto ou aquilo, ou banidos de publicar conteúdo. Não queremos que um fórum para amantes de gatos seja obrigado a aceitar fotografias de cães.”

Já Andrew Hutchinson, editor da página de análise de comportamento nas redes sociais “Social Media Today”, nota que “a expressão não é totalmente livre em lado nenhum” e que “na nossa vida normal há linhas que não podemos e não devemos cruzar”. A liberdade de expressão “não significa dizer o que se quer”, até porque, “dada a potencial amplificação da mensagem fornecida pelo alcance das redes sociais, o cuidado é necessário”, diz.

O problema é que as redes sociais existem num espaço ambíguo, veem-se a si mesmas e vendem-se como espaços 100% abertos, qual púlpito num jardim público, mas fazem a curadoria própria de um editor de jornal: dão destaque a umas coisas e menos a outras, amplificam um conteúdo e não outro, e a razão para isso é também “tradicional”: chama-se publicidade. “O problema é o conteúdo que circula ou o facto de agora ser tão visível e difundido? Sempre houve discurso de ódio, ameaças e bullying, mas não tinha oportunidade de se tornar uma corrente de opinião tão forte. Só que o design da nossa tecnologia fortalece esses discursos. Mais likes é mais publicidade”, diz Radsch.

Vários estudos mostram que, sobretudo no Facebook, é o conteúdo com opiniões mais extremadas que aparece quase sempre nos dez primeiros lugares em termos de interação (comentários, partilhas e likes).

Ao mesmo tempo, é preciso cuidado com o que se controla. Conceitos como discurso de ódio, incitação ou assédio digital mudam de país para país. Naqueles onde as redes sociais são, muitas vezes, a única via de acesso a alguma informação não previamente sancionada por crivo político, o cuidado tem de ser redobrado. “Os exageros das leis de controlo dos media por governos autoritários deve servir de aviso claro contra a regulamentação de informação em qualquer parte do mundo”, defende Radsch.

INÚMERAS EXCOMUNHÕES

A exclusão de personalidades acontece no Twitter quase desde os primórdios, apesar de quase nunca ter sido notícia. Entre 2010 e 2021 a lista de purgas excede a centena, se contarmos apenas indivíduos. Alguns exemplos: em 2011 a plataforma suspendeu permanentemente a conta da atriz e cantora americana Courtney Love por acusações de difamação (agora tem outra conta); em 2015 a página de George Zimmerman, julgado pelo assassínio do jovem negro Trayvon Martin, mas absolvido ao ter alegado em tribunal que agira em legítima defesa, foi retirada do ar porque Zimmerman publicou fotografias de mulheres com quem terá tido relações sexuais, para se vingar delas; em maio de 2016 John Rivello, ativista pró-Trump, ficou com acesso vedado à rede depois de ter enviado vídeos com luzes fortes a Kurt Alexander Eichenwald, jornalista de investigação epilético.

A lista é longa. Em agosto de 2017 a bloguista e ativista católica Elizabeth Johnston foi suspensa temporariamente por criticar um artigo da revista “Teen Vogue” que defendia o sexo anal entre jovens; em 2018 a conta dos ativistas de extrema-esquerda Antifa em Washington foi banida por ter divulgado a morada de Tucker Carlson, jornalista da Fox News e apoiante de Trump. Já em 2020 o ministro do petróleo iraniano, Bijan Namdar Zangeneh, foi expulso para nunca mais voltar, por alegadamente se ter feito passar por outras pessoas, o que é contra as regras do Twitter.

Há países onde as redes sociais são a única via de acesso a informação não previamente sancionada por crivo político

Se Trump foi banido, porque não Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil, que participa em manifestações de apoio à ditadura, incita à violência contra “bandidos”, duvida da eficácia da vacina contra a covid-19 e semeou dúvidas sobre o sistema eleitoral do Brasil? E Ali Khamenei, líder supremo do Irão, que frequentemente exige a destruição do Estado de Israel e nem permite à sua população aceder às redes sociais onde está presente? “Estas plataformas são norte-americanas e a pressão está aqui, é simples e entronca noutro grande problema, o monopólio que uma ou duas redes têm na esfera pública. Quando há um ambiente diversificado, com muitas opções, torna-se menos importante uma não estar acessível a determinada pessoa. Se um político saltar para uma rede nova, logo terá jornalistas e seguidores a acompanhá-lo”, explica Radsch. Frisa a importância de algumas redes em regimes onde o Estado controla a produção da informação: “O Facebook é equivalente à totalidade da internet em países como as Filipinas ou Myanmar, por isso torna-se problemático dizer ‘bom, os privados que decidam o que quiserem’, já que esta fonte de informação é essencial para formar opiniões”. Nem esses governos nem os privados podem ser deixados a operar sozinhos.

A solução? Regulamentação transparente. “O Facebook criou um Conselho de Supervisão independente, composto por especialistas em várias áreas, que irá analisar casos em que a equipa de moderação do Facebook tomou medidas sobre conteúdo e o utilizador discordou. É o caminho a seguir: a decisão caber a um grupo não associado ao resultado financeiro da rede. Isto pode não ser simples em países menos democráticos, mas é uma forma de uniformizar a abordagem”, diz Hutchinson.

Para Radsch, o fundamental é ver além do conteúdo e criar organismos reguladores, mas para garantir que as redes não usem os dados de qualquer forma. “Não podem ser apenas as plataformas a decidir que dados são armazenados de cada pessoa. Tem de haver regulamentação para se entender o que é coligido, empacotado e vendido aos anunciantes. É o modelo de negócio que permite microatingir certos indivíduos com anúncios que os radicaliza ainda mais.”

NÚMEROS

- 50% dos jovens de países europeus analisados pelo instituto Pew dizem só ler notícias através das redes sociais

- 71% dos cidadãos dos EUA recorrem às redes sociais como fonte de notícias, mesmo que 59% digam que o que leem é “significativamente impreciso”

- 93% dos portugueses usaram a rede social YouTube pelo menos uma vez por mês em 2020 (estudo “We Are Social”) (Expresso, texto da jornalista ANA FRANÇA)

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