O petróleo está a viver uma semana histórica.
Mas o que pagamos pela gasolina e pelo gasóleo é uma realidade diferente.
Porque cada litro de combustível tem lá dentro os custos escondidos de anos de
estudos sísmicos, da perfuração dos poços, da refinação e dos salários de quem
trabalha nesta indústria. Não se espante, por isso, se uma quebra vertiginosa
no preço do petróleo tiver um impacto modesto na sua carteira. Entre muitos
consumidores vem sendo habitual a sensação de que as gasolineiras são mais
rápidas a subir os preços do que a descer. E, com as quedas históricas do
petróleo desta semana, muitos se questionarão sobre se também os preços de
venda ao público da gasolina e do gasóleo terão quedas históricas. O tema gera
perplexidade. Mas do poço de petróleo até ao tanque do nosso carro vai um longo
caminho. É esse percurso que agora fazemos.
O mercado dos combustíveis tem as suas
especificidades, mas não é, afinal de contas, tão diferente de outros mercados:
aquilo que o consumidor paga pelo que leva para casa é um somatório de custos
(e impostos) que vai muito além do custo da matéria-prima ou do consumível.
Quando compramos uma garrafa de água no supermercado pagamos muito mais pelo
plástico que levamos do que pela água que está lá dentro.
Quando compramos fruta e legumes, estaremos a
pagar o preço justo? O que uma grande superfície nos cobra por um quilo de
maçãs ou de batatas vai cobrir não só os custos dos produtores (que incorporam
o cultivo, a rega, a mão-de-obra, entre outras rubricas), mas também o preço de
transportar os produtos até ao ponto de venda, os custos operacionais da
superfície comercial (os supermercados pagam uma renda pelo espaço que ocupam,
assumem custos com a energia e a refrigeração e, claro, suportam custos com os
funcionários).
Do mesmo modo, quando pagamos uma mensalidade
fixa pela nossa fatura de telecomunicações estamos a cobrir um conjunto de
custos que as operadoras suportam para que possamos falar minutos ilimitados ao
telefone, ver as nossas séries preferidas e navegar na Internet praticamente
sem limites. Na fatura da eletricidade o que pagamos por cada kilowatt hora
(kWh) não é apenas o custo da produção dos eletrões numa central hidroelétrica,
num parque eólico ou numa central a gás: o custo para o consumidor final
contempla diversos outros encargos, como, por exemplo, o preço das redes que
transportam essa energia pelo país.
O mercado dos combustíveis não escapa a essa
regra: o preço final de venda ao público é um somatório de custos. E é aí que
está a chave para perceber que a variação percentual dos preços nas bombas de
gasolina a cada semana é bem menor do que a variação da matéria-prima que lhes
dá origem.
A título ilustrativo, por cada euro que
estamos a abastecer de gasolina, 72 cêntimos são impostos (ISP e IVA), 11
cêntimos são a cotação da gasolina, 3 cêntimos são o custo de lhe adicionar
biocombustível e 14 cêntimos servem para cobrir o custo de armazenagem e
transporte até à estação de serviço, além do custo de operação dessa estação de
serviço (energia, manutenção, empregados) e a margem de lucro do seu dono.
A cadeia de valor dos combustíveis é dispersa
geograficamente, mas relativamente fácil de compreender. Comecemos pelo início.
EXPLORAÇÃO: DOS POÇOS SECOS AO OURO NEGRO
Muitas petrolíferas já começaram a investir em
energias renováveis para diversificar o seu negócio, mas ainda é na produção de
petróleo (e gás natural) que fazem mais dinheiro. São investimentos avultados,
mas o retorno é apelativo. E da mesma forma que o desenvolvimento de um
medicamento inovador leva uma década (ou mais) até chegar ao mercado, o
petróleo também tem um longo ciclo de prospeção antes de começar a ser de facto
explorado.
Vamos a um exemplo prático. O campo Lula, no
Brasil, é hoje o projeto mais produtivo da Galp Energia. O consórcio de que a
Galp faz parte começou a extrair petróleo naquela localização a 2 de maio de
2009. E tudo começou no ano 2000, quando esse consórcio (liderado pela
Petrobras) ganhou em leilão o direito a explorar o bloco BMS11. Em 2001 o
consórcio fez um primeiro estudo sísmico a 3 dimensões e só em 2006 furou o
primeiro poço, encontrando petróleo numa camada geológica conhecida como
pré-sal (debaixo de uma espessa camada de sal), debaixo de uma profundidade de
água de 2 mil metros. Foi uma das maiores descobertas de petróleo de sempre no
Brasil. O campo, que durante a exploração tinha o nome Tupi, arrancou com a
produção comercial em 2009 e foi rebaptizado como Lula (não por causa do então
presidente do Brasil, mas porque é tradição no Brasil que os campos
petrolíferos assumam nomes de moluscos e outros animais marinhos).
A prospeção é uma das etapas mais exigentes.
Consome elevados recursos económicos, exige tempo e implica riscos (além dos
ambientais, também o risco de… não haver petróleo). Primeiro as petrolíferas
fazem estudos sísmicos (sem perfuração), para avaliar se a formação das rochas
no subsolo é suscetível de ter acumulações de hidrocarbonetos. Se desses
estudos se concluir que há formações com reservatórios, as empresas avançam
para a perfuração. Durante meses recolhem amostras. Pode haver reservatórios e
não haver petróleo (são poços secos e custam milhões nas contas das
petrolíferas). Mas se houver as empresas irão estudar a qualidade do produto e
a quantidade, para avaliar se é um projeto comercialmente viável, ou se mais
vale deixar o pouco petróleo encontrado no subsolo.
Sendo comercialmente viável, as empresas
submetem às entidades competentes em cada país o seu plano de exploração. Os
contratos desde cedo prevêem as condições em que essa exploração será feita e
as contrapartidas para o Estado (“royalties”, impostos, compromissos de incorporação
nacional, entre outras). Depois, a exploração pode levar uma década, duas
décadas ou mais, dependendo de cada caso e dos volumes existentes.
Na cadeia de valor, a exploração é uma das
áreas mais interessantes para as petrolíferas: embora tenham de investir largas
somas na prospeção (correndo o risco de encontrar poços secos e perder
dinheiro), o que exige balanços robustos e acesso a fontes de financiamento, as
petrolíferas que de facto encontrem os recursos conseguem uma fonte de receitas
estável e previsível ao longo de vários anos. Embora o preço do crude seja
muito volátil, as petrolíferas podem proteger-se parcialmente dessa
volatilidade contratando futuros.
Lembra-se quando escrevemos que por cada euro
de gasolina na bomba apenas 11 cêntimos pagam a matéria-prima? Pois esses 11
cêntimos têm de cobrir não apenas o preço da exploração petrolífera mas todos
os outros custos da cadeia de valor, incluindo os que se seguem.
REFINAÇÃO: A QUÍMICA NO MEIO DA CADEIA
Extraído o petróleo, ele pode ser armazenado
ou seguir imediatamente para a refinação. O transporte pode ocorrer por
oleoduto ou através de navios petroleiros, que levam o “ouro negro” até às
instalações, espalhadas um pouco por todo o mundo, onde o petróleo é
transformado para poder ser consumido, seja na forma de gasolina e gasóleo,
combustível de aviação, lubrificantes, gases, benzeno, betumes, plástico, entre
outros.
Nas suas unidades de “hydrocracking”, as
refinarias partem as moléculas dos hidrocarbonetos em moléculas mais simples,
injetando hidrogénio a alta pressão, e daí resultando produtos como o gasóleo e
o “jet” (combustível de aviação). Nas unidades de “cracking” catalítico, as
refinarias também partem os hidrocarbonetos em moléculas mais simples, com
recurso a catalisadores, daí resultando, entre outros refinados, a gasolina.
As refinarias são consumidores intensivos de
energia e têm elevados custos de operação e manutenção. E são também fontes
mais instáveis de receita para as companhias petrolíferas. Por vezes operam com
margens negativas (ou seja, têm de vender os refinados mais baratos do que lhes
custa produzi-los) e por vezes com margens positivas.
Novamente um exemplo que nos é próximo, a
Galp. Neste primeiro trimestre de 2020 a empresa reportou um aumento do
processamento de matérias-primas em Sines e Matosinhos (a atividade cresceu 18%
face ao ano passado e 1% face ao trimestre anterior), mas a sua margem de
refinação encolheu 19% face ao ano passado e 43% face ao trimestre anterior,
para 1,9 dólares por barril.
As margens de refinação variam de empresa para
empresa, refletindo os respetivos custos de aquisição do petróleo e as próprias
características da refinaria (há produtos com maior valor acrescentado do que
outros).
A refinação é uma área também sensível para a
indústria petrolífera. Na última década várias refinarias encerraram na Europa
por falta de competitividade face a outras refinarias de fora do Velho
Continente. As empresas do sector dizem-se discriminadas pela política
ambiental europeia, colocando elevados encargos ao sector petrolífero, que as
concorrentes de outras regiões do globo não enfrentam.
DISTRIBUIÇÃO: O FIM DO NEGÓCIO, O PRINCÍPIO DA
INDIGNAÇÃO
A última parte da cadeia petrolífera é a
distribuição dos refinados até ao consumidor final. Hoje fortemente abalada
pela queda do consumo resultante da pandemia, a comercialização de combustíveis
é muitas vezes vista como um exemplo de cartelização, ao mesmo tempo que é uma
das áreas mais transparentes de toda a cadeia de valor: em Portugal os preços
de venda ao público são normalmente atualizados todas as semanas, publicados na
Internet, comparados com os de outros países. Mas isso não trava a indignação
de quem sente que os preços sobem mais do que descem, para encher os cofres das
petrolíferas.
Em Portugal Continental há 3145 postos de
combustíveis. O maior operador é a Galp, com 729 postos. Seguem-se a Repsol
(460), BP (446), Cepsa (267), Prio (208), OZ (17) e Rubis (2). Há ainda 731
postos independentes e 285 postos de hipermercados.
A capilaridade da rede é grande (tal como
sucede nas farmácias), o que implica uma logística calibrada para fornecer
todos os pontos de venda sem falhas. Em 2019 as greves dos motoristas de
matérias perigosas puseram em causa a distribuição de combustíveis. Não porque
o país não os tivesse, mas porque não havia quem conduzisse os camiões-cisterna
dos parques de combustíveis para as bombas. Dada a pulverização de postos pelo
país, seria economicamente inviável substituir o transporte rodoviário até aos
postos por oleodutos.
Ora, por cada litro de gasolina que
abastecemos na bomba 14% servem para pagar os custos de armazenagem,
distribuição e comercialização. Ou seja, com a gasolina a 1,25 euros por litro,
por cada litro que adquirimos estamos a suportar 17,9 cêntimos que servem para
cobrir a logística final dos refinados, o trabalho de quem a opera (nos parques
de combustíveis, na condução dos camiões-cisterna e no atendimento nas estações
de serviço) e a margem de lucro das empresas que trabalham nesta parte final da
cadeia de valor.
MAS… SE O PETRÓLEO ESTÁ NEGATIVO, PARA ONDE
VAI O DINHEIRO?
Em rigor, o petróleo esteve dois dias com
preços negativos. Já não está. A queda histórica da passada segunda-feira levou
o petróleo WTI – West Texas Intermediate para valores negativos, pela primeira
vez. Mas é importante notar que o WTI é apenas uma de muitas cotações do
petróleo. O “brent”, referência na Europa, nunca resvalou para cotações
negativas. Esta quarta-feira os futuros de junho do WTI já estavam nos 14
dólares por barril e os do “brent” em 20 dólares. Na semana passada a cotação
do “brent” desceu de 31 para 28 dólares por barril.
Assim, não só as cotações negativas se
circunscreveram ao WTI e por um período limitado de tempo, como a cotação que
está na base da indústria petrolífera europeia teve uma queda bem menos
acentuada. Mas considerando ainda a queda do WTI para terreno negativo: para
onde foi o dinheiro?
Não sabemos ao certo quem tinha os futuros de
maio do WTI que foram vendidos a preços negativos. Seja quem for que os vendeu,
esteve disposto a pagar a terceiros para se livrar da obrigação de adquirir
volumes físicos de petróleo num momento em que a capacidade de armazenagem
daquele tipo de petróleo está praticamente esgotada. Terão ganho, neste
processo, os investidores com capacidade para receber fisicamente o petróleo e
armazená-lo.
QUEDA HISTÓRICA NO CRUDE, UNS CÊNTIMOS A MENOS
NA BOMBA?
Outra perplexidade que esta semana deixará a
muitos consumidores é a hipótese de, perante tamanho colapso da matéria-prima,
podermos vir a ter na próxima semana uma redução de apenas alguns cêntimos por
cada litro abastecido de gasolina ou gasóleo.
Ainda é cedo para projetar a variação dos
preços finais da próxima semana, que será calculada pelas gasolineiras na
sexta-feira, considerando a variação da cotação internacional da gasolina e do
gasóleo desta semana face à anterior. Se, por um lado, os preços do petróleo já
estão a recuperar (tanto no WTI como no “brent”) e os dos refinados também, por
outro lado, a composição do preço de venda ao público em Portugal mostra que a
cotação destes produtos tem um peso minoritário no preço que pagamos.
Conforme mostram os dados coletados pela
Comissão Europeia no seu Weekly Oil Bulletin e divulgados pela Apetro, a cotação
da gasolina pesa apenas 11% no preço final deste produto (já que 72% são
impostos, 3% biocombustível e 14% logística). No gasóleo a cotação pesa 19% (os
impostos pesam 61%, o biocombustível 5% e a logística 16%).
Assim, qualquer que seja a variação da cotação
dos refinados ao longo da semana (para cima ou para baixo), ela apenas fará
variar uma parcela minoritária da fatura que o consumidor português paga na
estação de serviço (11% na gasolina, 19% no gasóleo) (Expresso, texto do
jornalista Miguel Prado)
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