sábado, abril 25, 2020

Do furo à bomba: o que pagamos pelos combustíveis

O petróleo está a viver uma semana histórica. Mas o que pagamos pela gasolina e pelo gasóleo é uma realidade diferente. Porque cada litro de combustível tem lá dentro os custos escondidos de anos de estudos sísmicos, da perfuração dos poços, da refinação e dos salários de quem trabalha nesta indústria. Não se espante, por isso, se uma quebra vertiginosa no preço do petróleo tiver um impacto modesto na sua carteira. Entre muitos consumidores vem sendo habitual a sensação de que as gasolineiras são mais rápidas a subir os preços do que a descer. E, com as quedas históricas do petróleo desta semana, muitos se questionarão sobre se também os preços de venda ao público da gasolina e do gasóleo terão quedas históricas. O tema gera perplexidade. Mas do poço de petróleo até ao tanque do nosso carro vai um longo caminho. É esse percurso que agora fazemos.
O mercado dos combustíveis tem as suas especificidades, mas não é, afinal de contas, tão diferente de outros mercados: aquilo que o consumidor paga pelo que leva para casa é um somatório de custos (e impostos) que vai muito além do custo da matéria-prima ou do consumível. Quando compramos uma garrafa de água no supermercado pagamos muito mais pelo plástico que levamos do que pela água que está lá dentro.

Quando compramos fruta e legumes, estaremos a pagar o preço justo? O que uma grande superfície nos cobra por um quilo de maçãs ou de batatas vai cobrir não só os custos dos produtores (que incorporam o cultivo, a rega, a mão-de-obra, entre outras rubricas), mas também o preço de transportar os produtos até ao ponto de venda, os custos operacionais da superfície comercial (os supermercados pagam uma renda pelo espaço que ocupam, assumem custos com a energia e a refrigeração e, claro, suportam custos com os funcionários).
Do mesmo modo, quando pagamos uma mensalidade fixa pela nossa fatura de telecomunicações estamos a cobrir um conjunto de custos que as operadoras suportam para que possamos falar minutos ilimitados ao telefone, ver as nossas séries preferidas e navegar na Internet praticamente sem limites. Na fatura da eletricidade o que pagamos por cada kilowatt hora (kWh) não é apenas o custo da produção dos eletrões numa central hidroelétrica, num parque eólico ou numa central a gás: o custo para o consumidor final contempla diversos outros encargos, como, por exemplo, o preço das redes que transportam essa energia pelo país.
O mercado dos combustíveis não escapa a essa regra: o preço final de venda ao público é um somatório de custos. E é aí que está a chave para perceber que a variação percentual dos preços nas bombas de gasolina a cada semana é bem menor do que a variação da matéria-prima que lhes dá origem.
A título ilustrativo, por cada euro que estamos a abastecer de gasolina, 72 cêntimos são impostos (ISP e IVA), 11 cêntimos são a cotação da gasolina, 3 cêntimos são o custo de lhe adicionar biocombustível e 14 cêntimos servem para cobrir o custo de armazenagem e transporte até à estação de serviço, além do custo de operação dessa estação de serviço (energia, manutenção, empregados) e a margem de lucro do seu dono.
A cadeia de valor dos combustíveis é dispersa geograficamente, mas relativamente fácil de compreender. Comecemos pelo início.
EXPLORAÇÃO: DOS POÇOS SECOS AO OURO NEGRO
Muitas petrolíferas já começaram a investir em energias renováveis para diversificar o seu negócio, mas ainda é na produção de petróleo (e gás natural) que fazem mais dinheiro. São investimentos avultados, mas o retorno é apelativo. E da mesma forma que o desenvolvimento de um medicamento inovador leva uma década (ou mais) até chegar ao mercado, o petróleo também tem um longo ciclo de prospeção antes de começar a ser de facto explorado.
Vamos a um exemplo prático. O campo Lula, no Brasil, é hoje o projeto mais produtivo da Galp Energia. O consórcio de que a Galp faz parte começou a extrair petróleo naquela localização a 2 de maio de 2009. E tudo começou no ano 2000, quando esse consórcio (liderado pela Petrobras) ganhou em leilão o direito a explorar o bloco BMS11. Em 2001 o consórcio fez um primeiro estudo sísmico a 3 dimensões e só em 2006 furou o primeiro poço, encontrando petróleo numa camada geológica conhecida como pré-sal (debaixo de uma espessa camada de sal), debaixo de uma profundidade de água de 2 mil metros. Foi uma das maiores descobertas de petróleo de sempre no Brasil. O campo, que durante a exploração tinha o nome Tupi, arrancou com a produção comercial em 2009 e foi rebaptizado como Lula (não por causa do então presidente do Brasil, mas porque é tradição no Brasil que os campos petrolíferos assumam nomes de moluscos e outros animais marinhos).
A prospeção é uma das etapas mais exigentes. Consome elevados recursos económicos, exige tempo e implica riscos (além dos ambientais, também o risco de… não haver petróleo). Primeiro as petrolíferas fazem estudos sísmicos (sem perfuração), para avaliar se a formação das rochas no subsolo é suscetível de ter acumulações de hidrocarbonetos. Se desses estudos se concluir que há formações com reservatórios, as empresas avançam para a perfuração. Durante meses recolhem amostras. Pode haver reservatórios e não haver petróleo (são poços secos e custam milhões nas contas das petrolíferas). Mas se houver as empresas irão estudar a qualidade do produto e a quantidade, para avaliar se é um projeto comercialmente viável, ou se mais vale deixar o pouco petróleo encontrado no subsolo.
Sendo comercialmente viável, as empresas submetem às entidades competentes em cada país o seu plano de exploração. Os contratos desde cedo prevêem as condições em que essa exploração será feita e as contrapartidas para o Estado (“royalties”, impostos, compromissos de incorporação nacional, entre outras). Depois, a exploração pode levar uma década, duas décadas ou mais, dependendo de cada caso e dos volumes existentes.
Na cadeia de valor, a exploração é uma das áreas mais interessantes para as petrolíferas: embora tenham de investir largas somas na prospeção (correndo o risco de encontrar poços secos e perder dinheiro), o que exige balanços robustos e acesso a fontes de financiamento, as petrolíferas que de facto encontrem os recursos conseguem uma fonte de receitas estável e previsível ao longo de vários anos. Embora o preço do crude seja muito volátil, as petrolíferas podem proteger-se parcialmente dessa volatilidade contratando futuros.
Lembra-se quando escrevemos que por cada euro de gasolina na bomba apenas 11 cêntimos pagam a matéria-prima? Pois esses 11 cêntimos têm de cobrir não apenas o preço da exploração petrolífera mas todos os outros custos da cadeia de valor, incluindo os que se seguem.
REFINAÇÃO: A QUÍMICA NO MEIO DA CADEIA
Extraído o petróleo, ele pode ser armazenado ou seguir imediatamente para a refinação. O transporte pode ocorrer por oleoduto ou através de navios petroleiros, que levam o “ouro negro” até às instalações, espalhadas um pouco por todo o mundo, onde o petróleo é transformado para poder ser consumido, seja na forma de gasolina e gasóleo, combustível de aviação, lubrificantes, gases, benzeno, betumes, plástico, entre outros.
Nas suas unidades de “hydrocracking”, as refinarias partem as moléculas dos hidrocarbonetos em moléculas mais simples, injetando hidrogénio a alta pressão, e daí resultando produtos como o gasóleo e o “jet” (combustível de aviação). Nas unidades de “cracking” catalítico, as refinarias também partem os hidrocarbonetos em moléculas mais simples, com recurso a catalisadores, daí resultando, entre outros refinados, a gasolina.
As refinarias são consumidores intensivos de energia e têm elevados custos de operação e manutenção. E são também fontes mais instáveis de receita para as companhias petrolíferas. Por vezes operam com margens negativas (ou seja, têm de vender os refinados mais baratos do que lhes custa produzi-los) e por vezes com margens positivas.
Novamente um exemplo que nos é próximo, a Galp. Neste primeiro trimestre de 2020 a empresa reportou um aumento do processamento de matérias-primas em Sines e Matosinhos (a atividade cresceu 18% face ao ano passado e 1% face ao trimestre anterior), mas a sua margem de refinação encolheu 19% face ao ano passado e 43% face ao trimestre anterior, para 1,9 dólares por barril.
As margens de refinação variam de empresa para empresa, refletindo os respetivos custos de aquisição do petróleo e as próprias características da refinaria (há produtos com maior valor acrescentado do que outros).
A refinação é uma área também sensível para a indústria petrolífera. Na última década várias refinarias encerraram na Europa por falta de competitividade face a outras refinarias de fora do Velho Continente. As empresas do sector dizem-se discriminadas pela política ambiental europeia, colocando elevados encargos ao sector petrolífero, que as concorrentes de outras regiões do globo não enfrentam.
DISTRIBUIÇÃO: O FIM DO NEGÓCIO, O PRINCÍPIO DA INDIGNAÇÃO
A última parte da cadeia petrolífera é a distribuição dos refinados até ao consumidor final. Hoje fortemente abalada pela queda do consumo resultante da pandemia, a comercialização de combustíveis é muitas vezes vista como um exemplo de cartelização, ao mesmo tempo que é uma das áreas mais transparentes de toda a cadeia de valor: em Portugal os preços de venda ao público são normalmente atualizados todas as semanas, publicados na Internet, comparados com os de outros países. Mas isso não trava a indignação de quem sente que os preços sobem mais do que descem, para encher os cofres das petrolíferas.
Em Portugal Continental há 3145 postos de combustíveis. O maior operador é a Galp, com 729 postos. Seguem-se a Repsol (460), BP (446), Cepsa (267), Prio (208), OZ (17) e Rubis (2). Há ainda 731 postos independentes e 285 postos de hipermercados.
A capilaridade da rede é grande (tal como sucede nas farmácias), o que implica uma logística calibrada para fornecer todos os pontos de venda sem falhas. Em 2019 as greves dos motoristas de matérias perigosas puseram em causa a distribuição de combustíveis. Não porque o país não os tivesse, mas porque não havia quem conduzisse os camiões-cisterna dos parques de combustíveis para as bombas. Dada a pulverização de postos pelo país, seria economicamente inviável substituir o transporte rodoviário até aos postos por oleodutos.
Ora, por cada litro de gasolina que abastecemos na bomba 14% servem para pagar os custos de armazenagem, distribuição e comercialização. Ou seja, com a gasolina a 1,25 euros por litro, por cada litro que adquirimos estamos a suportar 17,9 cêntimos que servem para cobrir a logística final dos refinados, o trabalho de quem a opera (nos parques de combustíveis, na condução dos camiões-cisterna e no atendimento nas estações de serviço) e a margem de lucro das empresas que trabalham nesta parte final da cadeia de valor.
MAS… SE O PETRÓLEO ESTÁ NEGATIVO, PARA ONDE VAI O DINHEIRO?
Em rigor, o petróleo esteve dois dias com preços negativos. Já não está. A queda histórica da passada segunda-feira levou o petróleo WTI – West Texas Intermediate para valores negativos, pela primeira vez. Mas é importante notar que o WTI é apenas uma de muitas cotações do petróleo. O “brent”, referência na Europa, nunca resvalou para cotações negativas. Esta quarta-feira os futuros de junho do WTI já estavam nos 14 dólares por barril e os do “brent” em 20 dólares. Na semana passada a cotação do “brent” desceu de 31 para 28 dólares por barril.
Assim, não só as cotações negativas se circunscreveram ao WTI e por um período limitado de tempo, como a cotação que está na base da indústria petrolífera europeia teve uma queda bem menos acentuada. Mas considerando ainda a queda do WTI para terreno negativo: para onde foi o dinheiro?
Não sabemos ao certo quem tinha os futuros de maio do WTI que foram vendidos a preços negativos. Seja quem for que os vendeu, esteve disposto a pagar a terceiros para se livrar da obrigação de adquirir volumes físicos de petróleo num momento em que a capacidade de armazenagem daquele tipo de petróleo está praticamente esgotada. Terão ganho, neste processo, os investidores com capacidade para receber fisicamente o petróleo e armazená-lo.
QUEDA HISTÓRICA NO CRUDE, UNS CÊNTIMOS A MENOS NA BOMBA?
Outra perplexidade que esta semana deixará a muitos consumidores é a hipótese de, perante tamanho colapso da matéria-prima, podermos vir a ter na próxima semana uma redução de apenas alguns cêntimos por cada litro abastecido de gasolina ou gasóleo.
Ainda é cedo para projetar a variação dos preços finais da próxima semana, que será calculada pelas gasolineiras na sexta-feira, considerando a variação da cotação internacional da gasolina e do gasóleo desta semana face à anterior. Se, por um lado, os preços do petróleo já estão a recuperar (tanto no WTI como no “brent”) e os dos refinados também, por outro lado, a composição do preço de venda ao público em Portugal mostra que a cotação destes produtos tem um peso minoritário no preço que pagamos.
Conforme mostram os dados coletados pela Comissão Europeia no seu Weekly Oil Bulletin e divulgados pela Apetro, a cotação da gasolina pesa apenas 11% no preço final deste produto (já que 72% são impostos, 3% biocombustível e 14% logística). No gasóleo a cotação pesa 19% (os impostos pesam 61%, o biocombustível 5% e a logística 16%).
Assim, qualquer que seja a variação da cotação dos refinados ao longo da semana (para cima ou para baixo), ela apenas fará variar uma parcela minoritária da fatura que o consumidor português paga na estação de serviço (11% na gasolina, 19% no gasóleo) (Expresso, texto do jornalista Miguel Prado)

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