O que é que apareceu primeiro na Venezuela, a crise económica, humanitária ou política? A drástica deterioração das condições de vida da população e a deriva autoritária do regime do Presidente Nicolás Maduro estão tão intimamente iligadas que é difícil separar os dois fenómenos. Como dizem os comentadores, nenhum Governo consegue evitar a contestação social quando a inflação chega aos 700% e quase 90% da população declara não ter dinheiro suficiente para comprar alimentos. E, concordam os economistas, não há adrenalina capaz de ressuscitar um sistema económico arrasado e que, tal como o político, assenta na repressão.
O país com as maiores reservas petrolíferas do mundo atravessa uma das piores crises económicas da sua história. Com o tecido produtivo paralisado, um sistema cambial e de fixação de preços artificial, e o maior rácio de dívida/exportações (e correspondente encargo com juros) do mundo, a viabilidade económica e financeira do país não está garantida nas condições actuais – isto é, se o preço do crude se mantiver na casa dos 40 dólares por barril. As reservas, que serviram para subsidiar importações e exportações, e sustentar a dívida, estão a esgotar-se, deixando a pairar a ameaça da bancarrota.
“Uma estratégia de recuperação teria de envolver uma significativa reforma política, que permitisse a reintrodução dos mecanismos de mercado, além de uma reestruturação da dívida e de um pacote de assistência financeira internacional – um programa de resgate”, considera Ricardo Hausmann, o antigo ministro venezuelano do Planeamento que agora dirige o Centro para o Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
A dependência económica da indústria petrolífera não é uma realidade recente na Venezuela: foi assim desde o início do século XX, levando os economistas a classificar o país como um dos casos paradigmáticos da chamada “doença holandesa”, que explica o impacto nefasto de um aumento súbito de riqueza baseado na exportação de uma matéria-prima: desindustrialização e declínio económico. Como avisou Juan Pablo Pérez Alfonso, antigo ministro venezuelano e um dos fundadores da OPEC, o petróleo pode ser uma praga: muito dinheiro, mal gerido, pode destruir em vez de salvar um país.
Durante um século, o desenvolvimento da Venezuela foi associado a políticas populistas sustentadas nas receitas do petróleo. O país experimentou períodos de euforia e expansão sempre que o valor do crude esteve em alta – que foi o ciclo que se iniciou quando Hugo Chávez, o fundador da actual doutrina do Governo venezuelano, chegou ao poder em 1999. A sua receita, não sendo especialmente inovadora, tinha uma componente de redistribuição e justiça social, através de subsídios e programas que reduziram a taxa de pobreza dos 53% para os 29% em 2012.
Mas as suas políticas aprofundaram os desequilíbrios da economia venezuelana. Expropriações de terras, nacionalizações, controlos de capitais, fixação de preços, subsídios às importações contribuíram para um brutal enfraquecimento da economia, diminuição da produtividade, criação de um mercado negro paralelo e um sistema de corrupção que se manifesta em todo o aparelho de Estado. A exportação de petróleo passou a garantir 95% das receitas do país, 25% do Produto Interno Bruto.
Como assinala Hausmann, numa entrevista ao Council on Foreign Relations, “a política macroeconómica [de Chávez] sextuplicou a dívida pública externa durante o boom petrolífero de 2004-2013. Em 2012, quando o preço do crude estava nos cem dólares por barril, o défice do sector público era equivalente a 17,5%, ou seja, o Estado estava a gastar como se o barril de petróleo valesse 200 dólares." A dívida acumulada levou a Venezuela a perder o acesso ao mercado da dívida em 2013 e o preço do petróleo colapsou um ano depois.
Sem liquidez para suportar uma dívida externa de 140 mil milhões de dólares, financiar as importações e os preços controlados, a escassez de bens essenciais foi uma das primeiras manifestações da crise. As importações caíram 75% face a 2012, incluindo as de farinha de trigo, que levaram a medidas de emergência como as nacionalizações forçadas de cadeias de distribuição ou das padarias. Segundo as projecções do Fundo Monetário Internacional, um em quatro venezuelanos está sem trabalho.
Em 2016, o PIB encolheu 18%; a projecção do FMI é que em 2017 caia mais 12% e esteja no fundo da lista dos países da América Latina em 2022. Em 2018, a recessão poderá atingir os 4,1% do PIB, e a inflação disparar para 2000%. “Se as condições de vida continuarem a deteriorar-se, a crise humanitária pode ficar totalmente fora de controlo, aumentando o fluxo de migrantes”, alertou esta semana o director do FMI para o hemisfério ocidental, Alejandro Werner.
Os últimos três anos de escassez fizeram regressar doenças que tinham sido eliminadas, como a malária. Em dois anos, a mortalidade infantil aumentou 30% e a materna disparou para 65%, dizem os números do Governo. Um inquérito da Fundação Bengoa mostra que em 2016 três em quatro venezuelanos perderam peso por carências alimentares – em média nove quilos. A malnutrição atinge 30% das crianças em idade escolar.
O Governo deixou de publicar dados sobre a pobreza em 2015, mas um estudo conduzido por três universidades aponta para uma taxa de 82% em 2016.
Pode ser a batalha pela sobrevivência diária, entre a pobreza e falta de oportunidades, que explique a elevada taxa de violência, que em 2016 registou 28.479 homicídios (91,8 mortes por cada cem mil habitantes). Ou a debandada desesperada da população: no ano passado, mais 150 mil pessoas reforçaram a diáspora venezuelana, tradicionalmente um país de acolhimento de imigrantes. Ou o ambiente de conflitualidade que por sua vez alimenta a fractura e divisão política – mais uma vez, a dúvida é saber o que foi primeiro, o ovo ou a galinha (texto da jornalista do Público, RITA SIZA, com a devida venia)
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