terça-feira, dezembro 20, 2016

Jornalismo em crise: salários baixos, precarização e abandono da profissão

Inquérito a 806 jornalistas de todo o país mostra que grande parte ganha menos de 1000 euros mensais. Quase um quarto diz sofrer pressões das administrações e direcções no decorrer do trabalho. Os jornalistas têm salários baixos, muitos têm vínculos precários e abandonam a profissão cedo. Estas são algumas das conclusões de um inquérito a jornalistas portugueses feito por João Miranda, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, no âmbito de uma tese de doutoramento. O estudo, desenvolvido em 2015, contou com respostas de 806 profissionais de todo o país. Existem em Portugal mais de sete mil repórteres, segundo o Sindicato dos Jornalistas. Os resultados do inquérito que vão ser apresentados hoje, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), mostram que mais de metade dos jornalistas recebe menos de 1000 euros por mês.
Aliás, 56,3% diz auferir 1000 euros ou menos brutos por mês, ou seja, valores líquidos ainda mais baixos que não incluem impostos nem descontos. “Estamos a falar de vencimentos bastante baixos, na sua generalidade”, refere João Miranda, que é também professor na FLUC e doutorando com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). O investigador diz que estes indicadores são “preocupantes”. No escalão dos que recebem menos de mil euros, o grupo mais significativo é o dos que recebem entre 601 e 900 euros, com 22,1% dos inquiridos a declarar essa quantia. Há ainda “uma percentagem relevante (7,3%) que refere receber abaixo do que era o salário mínimo quando foi desenvolvido o inquérito”. Com melhores remunerações, há 19,1% que declaram receber entre 1001 e 1500 euros e 24,6% que indicam mais de 1500 euros brutos como rendimento mensal. Sobre o vínculo laboral, apenas metade tem um contrato sem termo, uma situação que o investigador classifica como “igualmente preocupante”. “Todos os outros encontram-se contratados em lógicas próximas da precariedade, ou seja, com vínculos que não garantem estabilidade”, afirma. O estudo revela ainda que 19,8% dos inquiridos se encontra em regime de prestação de serviços (“recibos verdes”) e 5,2% trabalha também naquele regime mas com avença, recebendo um montante mensal fixo. O investigador sublinha que um cruzamento de dados permite concluir que dos 19,8% que trabalham em prestação de serviços 34,5% recebem um valor fixo apesar de não terem qualquer contrato de avença, sendo que 63,5% dependem do número de peças ou caracteres que produzem.
E a ética?
Os dados sobre o vencimento e vínculo contratual dos jornalistas em Portugal ganham relevância quando 54,9% dos inquiridos entendem que a sua situação laboral afecta o desempenho do seu trabalho e 28,9% consideram que esta afecta o cumprimento dos preceitos éticos e deontológicos no desempenho da profissão. “Estamos a falar de um quarto da profissão a concordar com essa ideia. Não deixa de ser preocupante”, comenta. Outro cruzamento de indicadores permite observar que a ideia de que a situação laboral afecta o desempenho no trabalho obtém “concordância sobretudo entre os prestadores de serviços”, explica João Miranda. A dificuldade em encontrar facilmente um novo emprego como jornalista também reúne consenso, com 77,3% dos inquiridos a concordarem ou a concordarem totalmente com esta ideia. A maior parte dos jornalistas está há 24 ou menos anos na profissão. A partir dos 25 anos o número de profissionais desce. O docente diz que “esta é uma profissão muito jovem, que é abandonada relativamente cedo, o que pode ser explicado por alguma precarização da própria profissão”. Quase um quarto dos jornalistas que responderam ao inquérito entende que é alvo de pressões da administração empresarial no decorrer do seu trabalho. São 23,8% a “concordarem” ou a “concordarem totalmente” com esta ideia. Os resultados não são muito diferentes quando a origem das pressões provém da direcção editorial e a percentagem sobe para 26,2%. Sobre pressões externas, a percentagem é ainda mais expressiva, chegando aos 35,7%. No entanto, o inquérito não especifica o tipo de pressões, nem das internas, nem das externas. Para tentar compreender melhor os resultados, João Miranda cruzou os dados com o tipo de vínculo, género e idade, mas refere que esta é uma questão “transversal”.
Alteração dos trabalhos dos jornalistas

Mas a alteração dos trabalhos sem o consentimento dos jornalistas é um fenómeno “sem grande expressão”, observa o investigador do CEIS20, com a situação a registar-se “sempre” em 1,8% das respostas, “muitas vezes” em 3,1% e “frequentemente” em 4,4%. As alterações não autorizadas do conteúdo noticioso são efectuadas em grande parte pelos editores (59,6%) ou pela direcção (33%). O docente da FLUC considera que os resultados contrariam uma ideia de “burocratização generalizada no trabalho jornalístico”, com recurso a notas de agência e pouco contacto com fontes, embora se possa “encontrar algumas tendências nesse sentido”. Segundo a investigação, 59,4% dos jornalistas contactam pessoalmente com as fontes na produção de peças “sempre” ou “muitas vezes” e apenas 13,4% referem que o fazem “nunca” ou “raramente”. A utilização de notas de agência como única fonte de notícias não é uma prática dominante. Também quase um quarto (24,2%) assume que nunca ou raramente sai da redacção para tratar matérias. Já 12,4% diz fazê-lo “sempre”, 28,8% fá-lo “muitas vezes” e 34,6% afirma sair da redacção em trabalho “frequentemente” (texto do jornalista do Público, CAMILO SOLDADO)

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