Passámos
um fim-de-semana juntos em que me fizeste esquecer que eras o meu herói. Quando
acabou fiquei com dois heróis: com o Leonard Cohen das canções e com o Leonard
Cohen em carne e osso. Embebedámo-nos
com Bloody Marys e, a certa altura, tu reparaste que eu tinha a mania de
desdizer o que tinha acabado de dizer. Eu disse-te que era um tique português.
Primeiro afirma-se um disparate ou uma verdade. Depois continua-se “E, no
entanto…”
“And
yet!”, gritaste, “the two greatest words in any language!” Depois desataste a
dar exemplos. A uma mulher que te amava e queria casar contigo: “I love you…
AND YET… I cannot marry you this year”. Ao barman: “Bem sei que já bebi a minha
conta… AND YET… apetece-me outro Bloody Mary”.
Prometemos
escrever um ao outro. Quando eu falhei mandaste-me um telegrama com duas palavras
e três pontos: “AND YET…”
Depois
da notícia quase funerária no New Yorker fizeste questão de aparecer em Los
Angeles a dizer que, quando disseste que estavas pronto para morrer, estavas a
ser dramático. Fizeste-nos rir. Prometeste viver até aos 120 anos.
Prometeste-nos mais dois álbuns de canções.
Mentiroso!
Sempre foste o mais sublime dos mentirosos. Nem era preciso mentires: eu
julgava que ias viver para sempre, como sempre tinhas vivido. Agora morreste e
obrigas-me a escrever estas palavras lavadas em lágrimas. AND YET… E, no
entanto, tiveste uma vida feliz. Fizeste o que querias. Amaste e foste amado.
Trabalhaste nas canções mais bonitas e elevadas do nosso tempo. Já há mais de
60 anos que andaste a falar com Deus, a preparar o teu caminho. Foste um pecador
de primeira AND YET… E, no entanto, algo me diz que vais ser muito bem recebido
no reino dos céus, se fôr para aí que combinaste ir.
Deixaste-nos.
Avisaste muitas vezes que nos ias deixar. Deixar tornou-se a tua especialidade.
Ninguém se despedia tão bem como tu. Ninguém dava à sola tão depressa como tu,
tão bem vestido, com sapatos feitos para percorrer as grandes distâncias do
amor e da vida.
Partiste
e, no entanto, continuas cá. Eu vi o tamanho do teu caderno gigante, cheio de
versos e desenhos. Espero bem que haja centenas de canções que tu julgaste que
ainda não estavam prontas, mas que estão.
Agora
que morreste escusamos essas canções de serem perfeitas, como aquelas que
escreveste e cantaste enquanto eras vivo. Enquanto eras vivo - estas palavras
ainda custam mais a escrever do que a simples palavra “morreste”.
Sabes
porquê? Aposto que ainda sabes mais, aí no lugar onde estás, na Tower of Song.
Porque “morreste” ainda é uma coisa que tu fizeste. Morreste, sacana. É uma
coisa de que podemos acusar-te; é um verbo que podemos atirar-te à cara. Em
contrapartida “enquanto eras vivo” já pertence a um passado em que já fizeste
tudo o que tinhas para fazer, incluíndo morrer.
Uma
pessoa tem de morrer. E até a morrer foste um senhor. Pouco antes de morrer -
sabemos agora - percorreste o mundo para cantar as tuas canções a quem quisesse
ver-te a cantá-las. E melhor do que em qualquer outra altura da tua vida. Tu
foste daqueles que melhoram à medida que se aproximam da morte. Aproximaste-te
devagarinho, sem ser a medo, como se a morte fosse a última mulher.
Cantaste-lhe a canção do bandido - nunca ninguém será capaz de cantá-la melhor
do que tu - a ver se ela ia na tua cantiga. Deitaste-te com ela na esperança
que ela te esquecesse. And yet e, no entanto (aqui sinto-te a sorrir) ela deu
cabo de ti à mesma.
Toda
a vida dançaste com Deus e com a morte – às vezes eram mulheres, outras vezes
professores – e algumas dessas vezes acabaram como canções, divinas de amor e
de vida, escritas por quem conheceu a alegria e a tristeza de amar e viver e
viver e amar.
Morreste,
Leonard Cohen e, no entanto, continuas vivíssimo para quem já morreu. Hoje de
manhã, quando ouvi You Want It Darker, como faço todas as manhãs desde que saiu
o álbum, pensei que ia chorar, por ser a primeira vez que o ouvi sabendo que
estavas morto. Mas não chorei. As canções fizeram o que sempre fizeram:
encheram-me de força, abriram-me ao medo e à beleza de estar vivo.
Adeus,
Leonard Cohen, dizemos nós como se não soubéssemos que já lá estás (texto deopinião de MIGUEL ESTEVES CARDOSO, Público com a devida vénia)
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