O volume de informação cresce a um ritmo imparável, mas a sua
diversidade e fiabilidade podem estar a diminuir, defende o especialista em
ciências da comunicação Dominique Wolton, que lança o alerta: “A informação
está a ser comida por uma ideologia técnica, e é preciso resgatá-la”. Fundador
do Instituto de Ciências da Comunicação do CNRS (Centre National de la
Recherche Scientifique) e director da revista internacional Hermès e da
respectiva colecção de livros de bolso, Les Essentiels d’Hermès, Dominique
Wolton é autor de dezenas de obras sobre os media, o espaço público, a
globalização, ou as relações entre ciência, técnica e sociedade. A mais
recente, Communiquer c’est vivre, acaba de sair em França. Colaborador próximo
do filósofo e politólogo Raymond Aron, Wolton vem construindo há décadas uma
original teoria da comunicação, que procura opor uma abordagem democrática e
humanista à hegemonia do discurso técnico e económico. Convidado do Fórum do
Futuro – um “festival de pensamento”, organizado pelo pelouro da Cultura da
Câmara do Porto que abre esta terça-feira com o cardeal Gianfranco Ravasi,
presidente do Conselho Pontifício para a Cultura –, o investigador estará esta
quinta-feira no Teatro Rivoli (19h), para falar do “desafio de paz e guerra no
século XXI”, e dará no dia seguinte uma palestra em Lisboa, no auditório do
Instituto Superior de Economia e Gestão, sobre o “impacto das redes sociais na
comunicação”. Diz que é preciso travar o fascínio acrítico pelas tecnologias da
informação e defende que a Internet precisa de regras, pois “actualmente é um
faroeste que só serve a tirania económica e financeira”.
Diz que “a velocidade da Internet e das redes sociais está a devorar a
liberdade de informação” e que o jornalismo não deveria mergulhar nessa
voragem. Quer argumentar?
A Internet é óptima para nos exprimirmos, mas expressão não é
informação, é algo muito mais fácil. Separar os dois é função do jornalista.
Ele deve olhar para a Internet como um novo meio de expressão e ter consciência
de que, enquanto canal de informação, exige um trabalho de verificação. A
última coisa de que os jornalistas se podem esquecer é que a informação é algo
de valioso e difícil, que deve ser feito por profissionais.
Defende que a revolução tecnológica aumentou o volume de informação, mas
não a tornou mais diversa, nem reduziu os rumores, que encharcam a Internet e
são frequentemente replicados nas televisões e jornais. É uma fatalidade,
imposta pelo contexto técnico, ou haveria outro caminho?
Não é uma fatalidade. Na verdade, é até uma grande surpresa. Pertenço a
uma tradição democrática favorável ao aumento da informação, e todos nós,
investigadores, jornalistas, políticos, achávamos que mais informação era mais
verdade: toda a luta pela liberdade de informação, desde o século XVII, foi
concebida a partir dessa premissa. Mas ninguém antecipou que o aumento da
velocidade e a pressão da concorrência implicavam riscos, e que a informação em
directo, que julgávamos mais próxima da verdade, podia afinal errar muito,
porque não há tempo para verificar. Também não se pensou que quanto mais
informação existisse, tanto mais rumores teríamos, porque os homens são
complicados e há muita gente que se está nas tintas para a informação
verificada e prefere os rumores e as teorias da conspiração. Outra surpresa foi
a constatação de que todos os canais de informação falam das mesmas coisas ao
mesmo tempo e que a crescente concorrência entre eles não tem servido para
alargar o campo da informação. Dou um exemplo: a construção política da Europa,
esta realidade de 6, 8, 15, 28 países que se entenderam, quando na verdade se
detestam, é talvez a maior utopia da história da humanidade, mas com toda a
informação que hoje circula na Internet parece que já não há curiosidade por
este grande projecto político.
E por que é que isso acontece?
Acontece porque a procura se tornou o critério. E quando nas redacções
não se trata este ou aquele assunto porque não interessa às pessoas, está-se a
trocar a responsabilidade da oferta, que é a grandeza do jornalismo, pela
tirania da procura. Mas o mais grave é não existir um discurso crítico sobre
isto. Estas são questões verdadeiras, que colocam problemas graves ao nível da
deontologia, e até da democracia, mas só por as levantarmos somos vistos como
reaccionários. Uma coisa que me deixa tristíssimo é ver os jornalistas a
passarem horas na Internet, a darem a volta ao computador em vez de darem a
volta ao mundo, quando fariam muito melhor em sair e investigar. É verdade que
sair do jornal três ou quatro dias para investigar é caro, fazer bom jornalismo
é caro, e essa é uma questão política que teremos de enfrentar, porque a
informação está a ser comida por uma ideologia técnica, e é preciso resgatá-la.
Apesar das dificuldades que os jornais de referência ocidentais
enfrentam para assegurar a sua viabilidade financeira, não parece partilhar o
pessimismo mais ou menos consensual que não vê futuro para a imprensa
generalista em papel e desespera de ver surgir, no jornalismo on-line, uma
solução estável e replicável. O que é que o leva a manter o optimismo?
Não sou pessimista porque a história mostra que há altos e baixos, e
acho que o jornalismo tomará consciência de que a abundância de informação não
é por si só um progresso, e que o terreno que essa informação cobre é hoje mais
estreito do que nos anos 80. Os media deixaram de se interessar por uma série
de assuntos importantes, e cada vez dão menos espaço aos pontos de vista
especializados – dos militares, religiosos, empresários, cientistas –, em favor
dessa “peopleização” mundial a que estamos a assistir [neologismo criado a
partir do inglês “people”, que significa “povo” ou “pessoas”, e que os media
costumam usar para designar as suas secções de “celebridades”]. Há uma
fascinação pelas tecnologias de informação que é preciso travar: não é a
tecnologia que faz a informação, são os homens. Eu acho que o jornalismo acabará
por reagir e saberá tirar desta revolução técnica o que ela tem de bom.
Uma das lutas da sua geração foi garantir a existência de uma fronteira
nítida entre o domínio público e a esfera privada. Não receia que esta nova
geração, que cresceu com as redes sociais, venha a ter uma consciência um pouco
mais frágil dos riscos de se permitir que essa fronteira se esfarele?
Lutámos durante séculos até termos, enfim, o direito a uma existência
privada, e agora, com as tecnologias de informação e com o fenómeno da
"peopleização", passamos a vida a publicitar a vida privada. É um
contra-senso. E se esta geração não percebe que é preciso preservar essa
separação, isso é grave, porque essa fronteira foi um verdadeiro campo de
batalha, e conseguir impô-la representou uma grande vitória política. Não é por
hoje ser possível contar seja o que for nas redes sociais, e haver quem o leia,
que devemos fazê-lo. Diante do computador temos uma sensação de liberdade, mas
dever-nos-ia preocupar a contradição entre esse sentimento de liberdade e o
facto de a Internet ser dominada pelo poder económico, financeiro e técnico do
Google, da Apple, do Facebook, da Amazon.
No mundo das redes sociais vive-se uma espécie de igualitarismo, em que
não há fronteiras nem hierarquias e todas as vozes têm o mesmo peso. Quando uma
parte importante do debate público emigrou para esta arena digital, e a sua
lógica contamina cada vez mais os media, está aberto o caminho ao populismo?
Sim, há o risco do populismo. Nas redes sociais toda a gente se exprime
em condições de igualdade, o que é aparentemente democrático, mas, na verdade,
ao abolir-se toda a hierarquia cultural ou intelectual, o que existe é uma
tirania da expressão. O que há a fazer? É preciso que jornalistas, professores,
empresários, políticos, tenham a coragem de dizer que este espaço de expressão
é um progresso, mas que não substitui as competências do político, do militar,
do cientista, do jornalista. O que eles têm a dizer sobre a sociedade não pode
ser posto no mesmo plano do que eu digo sobre mim próprio num qualquer canto do
planeta.
Não é impossível que o aproveitamento da Internet pelo terrorismo e pelo
crime organizado, entre outras ameaças, leve as democracias a ponderar colocar
restrições à sua utilização, como já acontece, por outros motivos, em várias
ditaduras. Parece-lhe defensável?
Este novo espaço de expressão e informação que é a Internet precisa de
uma política, no mesmo sentido em que há uma política para as telecomunicações,
os satélites, a imprensa ou a televisão, com coisas que são permitidas e outras
que não o são. Neste momento, a Internet não tem regras nem limites. É claro
que se deve salvaguardar essa dimensão de liberdade e de emancipação, mas com a
condição de se criar uma política. A grande batalha futura em relação à
Internet não é obviamente acabar com ela, mas estabelecer regras e leis.
Actualmente é um faroeste que só serve a tirania económica e financeira. Há uma
mentira sempre repetida: a que diz que se aplicarmos uma lei à Internet é o fim
da liberdade. Na verdade, é o inverso: é a lei que permite a liberdade, que
protege o fraco, sem ela temos a lei do mais forte, e o mais forte é hoje o
poder financeiro. Falamos da Internet como símbolo de liberdade, quando ela
está ligada aos grandes poderes imperiais do século XXI: Google, Apple,
Facebook, Amazon. É uma contradição que se pode resolver, desde que se aceite
que o progresso técnico é óptimo, mas que agora é preciso introduzir regras
sociais, políticas, culturais.
Tem insistido na distinção entre informação, que designa a mensagem, e
comunicação, que implica uma relação e uma negociação. Pensa que a revolução
global da informação teve tradução no plano da comunicação, que os povos e
culturas do mundo se compreendem e toleram hoje mais do que no passado recente?
Uma das grandes fraquezas da humanidade é que adoramos matar-nos,
detestar-nos e não nos compreendermos uns aos outros. Seria de esperar que
todas essas redes de informação tivessem aumentado a tolerância, mas não é
verdade: o racismo e o ódio ao outro estão de boa saúde. Basta olhar para a
Europa e para o que se passa com os refugiados no Mediterrâneo. Temos uma
aldeia global, mas que é apenas técnica, e essa tecnologia, ao tornar mais
visíveis as diferenças culturais, não só não está a promover a tolerância, como
se arrisca a provocar mais intolerância. É um paradoxo incrível, mas verdadeiro
(Público, texto do jornalista Luis Miguel Queiroz)
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