"Chamaram-lhe "o livro proibido". O epíteto indicia mais que ironia: se o autor, eventualmente incapaz, não sabe que o que escreveu e deu à estampa é criminoso e portanto proibido, a editora, decerto juridicamente acolitada, não pode ignorar. E se mesmo assim avançou foi porque, sopesando riscos e vantagens, achou que compensava.
Entendamo-nos: há muita gente que está a afetar muito escândalo e choque com o crime de Saraiva e da Gradiva mas vai salivar a ler. É da natureza humana, como quando há desastres e gente atropelada por comboios e se formam filas de curiosos; é como as encostas repletas de mirones à espera dos afogados depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. Desde que sejam de outros a dor, os mortos e as vísceras até dá para tirar fotos e partilhar no Facebook.
É com isso que Saraiva e a Gradiva - a Gradiva, editora que acreditava séria, tendo feito nome a publicar ensaios e livros técnicos - contam: com o impulso voyeurista e necrófilo. E, claro, com a ideia de que "os políticos" e "as figuras públicas" têm de se submeter a todas as devassas. Com a ideia de que "merecem", "se puseram a jeito"; com a ideia "que mal tem?" ou "já toda a gente sabia."
As pessoas foram-se habituando a pensar assim: é isso a cultura tabloide, a cultura do boato e da insinuação, das revistas ditas "cor-de-rosa", a cultura que faz crer que toda a gente tem "o direito" de saber da vida privada e íntima dos "poderosos", comentá-la, ter opinião sobre ela, numa espécie de vingança, de compensação, de ajuste de contas. O terreno estava preparado. Tão preparado que um ex primeiro-ministro aceitou - e reiterou a aceitação, mesmo depois de confrontado pelo DN com algumas das passagens mais repelentes - apresentar o crime. Dar a cara por ele. Ser cúmplice, coadjuvante, membro da quadrilha.
Como combater isto? Como reagir? O mais terrível é que para denunciar o crime é preciso dizer, nem que seja de raspão, porque é que é crime. O que lá está. Porque é que é nojo, pestilência, asco. E isso penaliza aqueles - ou a sua memória, no caso dos mortos, e portanto os seus próximos sobrevivos - de cuja vida íntima se fala, cujas alegadas confidências se revelam. Até ao proceder nos tribunais contra este atentado será preciso invocar o que sobre si ou sobre o familiar morto se diz - estão a ver a perversidade? É que é esta a natureza deste crime: não há forma de combatê-lo que não passe por difundi-lo, por repeti-lo, e assim reiterá-lo e permitir-lhe o triunfo. Como se quem denuncia o roubo da sua casa fosse obrigado a abri-la a toda a gente e a dessa forma permitir que lhe tirem o que os primeiros ladrões não levaram. Como se alguém que foi violado fosse forçado, para fazer queixa, a novas e sucessivas violações.
Todos os que até agora denunciaram, com as melhores da intenções e imbuídos da mais justa indignação, o crime de Saraiva e da Gradiva tiveram de dar elementos para que quem lê possa ter uma ideia da gravidade do crime. Para convencer, sensibilizar, alertar. Posso escrever este texto sem detalhes nem exemplos porque houve quem o fizesse. Mas sei que, mesmo sem eles, poderá ainda assim ser publicidade. Serve para quê, então, escrever isto? Não era melhor o silêncio? Não era melhor a indiferença? A dúvida é legítima. Só posso dizer o que me leva a escrever: quero estar do lado certo da batalha. Quero frisar, anunciar, bradar que isto que Saraiva e a sua editora fizeram é crime. E que é, apesar de tanto do género já ter sido publicado, o passar de uma fronteira. Nunca antes, à exceção de um episódio com imagens vídeo de sexo dadas à estampa numa revista de número único, há uns 30 anos, se foi tão longe na deliberação da devassa gratuita da intimidade, sem qualquer outro objetivo que não o de devassar, ferir e lucrar com isso.
Escrevo para dizer isto: não se enganem, ou estão contra eles ou estão com eles. Esta é uma daquelas situações em que há mal e bem, claramente definidos, e é preciso escolher. Cada livro comprado é uma vitória do mal; como cada história partilhada, cada sorrizinho com as 'revelações', cada piadola sobre o que ali vem. Tentem imaginar que é com vocês; que é a vossa mãe cujas alegadas revelações íntimas ali foram vertidas, que foram inconfidências de um amigo, de um irmão, que ali foram parar. Há naquele livro revelações sórdidas sobre pessoas que desprezo, que desconsidero, que acho até execráveis. Mas nisto, aqui, quero estar, estou, do lado delas. Neste combate, estarei sempre do lado de quem é exposto na sua intimidade, enxovalhado, de quem vê palavras suas em alegadas conversas privadas reproduzidas para lucro - não esquecer, estes calhordas querem ganhar dinheiro -, de quem é ferido pela venalidade amoral das 'revelações'.
Esta publicação pôs-nos no limiar de uma nova era. É connosco se damos o passo em frente ou defendemos, até ao último, a muralha. Para que as trevas não vençam (texto da jornalista Fernanda Câncio no DN-Lisboa com a devida vénia)
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