O jornalismo como
comédia. “O Grande Escândalo” (“His Girl Friday”, 1940) é uma sátira de certos
meios jornalísticos, mas fundamentalmente uma das chamadas screwball comedies,
com os seus diálogos a cem à hora, uma das melhores, realizada por Howard
Hawks, que tem no cadastro outros grandes exemplares do género, como – antes –
“Twentieth Century” (“Século XX”, 1934) e “Bringing up baby” (“Duas feras”,
1938) ou – depois – “Monkey Business” (“A culpa foi do macaco”, 1952 – entra
Marylin Monroe). Foi a segunda adaptação ao cinema de uma peça célebre de Ben
Hecht e Charles Mac Arthur, estreada em 1928, com a particularidade da troca de
sexo de um dos protagonistas.
Ben Hecht é – como
se costuma dizer – um dos mais bem guardados segredos do cinema americano.
Escreveu peças de teatro de grande êxito, como esta ou o “Twentieth Century”
acima referido e dezenas de filmes (entre os quais “Scarface” (1931), do mesmo
Hawks, em que colaboraram, salvo erro, pela primeira vez). Na primeira
distribuição de Óscares’ foi um dos premiados, pelo argumento de “Underworld”,
de Josef von Sterberg.
Já tinha nessa
altura uma longa carreira de jornalista, que começara praticamente de calções:
a sua autobiografia A Child of the Century (1954) é um extraordinário retrato
da América dos jornais e do cinema da primeira metade do século XX. Realizou
vários filmes, nalguns casos em colaboração com o grande diretor de fotografia
Lee Garmes. Deve haver na história do cinema americano poucos homens associados
a tantos realizadores, actores e filmes importantes como ele (foi também um
célebre “médico” de argumentos, muitas vezes anónimo, como em “E Tudo o Vento
Levou” – mas assinou, por exemplo, o argumento de um dos melhores filmes de Hitchcock,
“Difamação” (“Notorious”, 1946).
Tinha nascido no
século XIX. Morreu em 1964. Com o título original, “The Front Page”, a peça
teve uma nova versão cinematográfica em 1974, realizada por um Billy Wilder,
que não estava nos seus melhores dias. Peço desculpa de me ter alargado,
deixei-me levar pelo entusiasmo.
“O Mundo a Seus
Pés”, realizado por
Orson Welles
O jornalismo como
poder. “O Mundo a Seus Pés” (“Citizen Kane”, 1941) é um dos 14 grandes filmes
sobre jornais que o Telegraph de Londres escolheu. Já se disse tudo o que há a
dizer sobre aquele que foi durante cinco dezenas de anos “o melhor filme de
todos os tempos”. Mas nem sempre nos lembramos que a obra-prima de Orson Welles
tem com protagonista um magnate da imprensa. O Telegraph escolhe para referência
o seguinte diálogo:
O chefe de
redação: “A nossa função não é relatar coscuvilhices de donas de casa. Se nos
interessasse esse género de coisa, Mr. Kane, dava para enchermos o jornal duas
vezes todos os dias.”
Kane: “Mr. Carter,
é esse género de coisas que nos vai interessar daqui por diante.”
Há outro célebre
diálogo no filme, um tanto mais inquietante e talvez não menos actual. O
repórter enviado para cobrir a guerra de Cuba queixa-se de não ter nada que
fazer: “Não há guerra.” Kane manda-lhe dizer que não se preocupe: “O senhor
forneça os poemas em prosa que eu forneço a guerra.”
“A Verdade
Triunfou”, realizado por
Henry Hathaway
O jornalista como
justiceiro. “A Verdade Triunfou” (“Call Northside 777”, 1948) é um dos filmes
menos conhecidos desta lista (tão pouco conhecido como um dos outros bons
filmes selecionados pelo Telegraph, o muito mais negro “Defence of the Realm”,
“Em defesa da Nação”, 1985, que – sem querer plagiar o Telegraph – conta com
duas grandes interpretações, de Gabriel Byrne e do subestimado Denholm
Elliott). O título português diz tudo: o jornalista como cavaleiro andante
pronto a defender a viúva e o órfão, paladino das grandes causas da Justiça ou,
singelamente, sem medo das palavras, da verdade – um motivo que se repetirá quase
sempre daqui por diante.
Já não estamos a
lidar com os rapazes (e raparigas) estouvados, mais ou menos cínicos, os bons
malandros dos tempos boémios de Ben Hecht ou do Clark Gable do duo
“social-democrata” Frank Capra-Robert Riskin de “Uma Noite Aconteceu” (1931) e
a sua epopeia da reconciliação das “classes”. O realizador é Henry Hathaway, um
velho routier (dizia-se assim quando falávamos francês) do cinema de Hollywood.
O denodado jornalista é (quem melhor?) James Stewart.
A história é
praticamente a mesma do mais recente “Um Crime Real” (“True Crime”, 1999) de
Clint Eastwood. O finalmente enfadonho “All the President’s Men” (“Os Homens do
Presidente”, 1974), de Alan J. Pakula, que nunca resistiu a uma boa causa
“progressista”, ou “The Killing Fields” (“Terra Sangrenta”, 1984), de Roland
Joffé, que tinha o mérito de mostrar, de caminho o que foi a libertação
comunista do Camboja, ou mesmo o morno “O Jornal” (“The Paper”, 1994), de Ron
Howard (mas tem Robert Duvall), estão todos mais ou menos nessa linha do
jornalista como herói. Ou, ainda, o recente “The Fifth Estate” (Assange da
Wikileaks e o jornal The Guardian) ou “O caso Spotlight”, que se estreia agora.
Como, embora só incidentalmente, “A queda de um corpo” (“The Harder They Fall”,
1956), último papel de Humphrey Bogart, que já fora um diretor de jornal sans
peur et sans reproche – mais um herói – em “Deadline USA” (“A Última Ameaça”,
escrito e dirigido por Richard Brooks, 1952).
“Mentira maldita”, realizado por
Alexander Mackendrick
O jornalista como canalha.
“Mentira Maldita” (“Sweet Smell of Success”, 1957) não é um filme perfeito –
mas é um dos grandes filmes do cinema americano, realizado por um inglês (é uma
maneira de dizer, era um escocês nascido nos Estados Unidos), Alexander
Mackendrick. Mackendrick teve uma carreira curiosa: começou, como realizador de
longas-metragens, na grande escola dos Ealing Studios da Londres do pós-guerra,
onde dirigiu um filme que é a quinta-essência do humor negro “britânico” desse
tempo, sem um passo em falso: “O Quinteto era de Cordas” (“The Lady Killers”,
1955, assassinado mais recentemente num remake dos irmãos Coen – porquê? – os
mesmos que acertaram em cheio, nessa veia, em “Fargo” e “Burn After Reading”).
Tirando o notável
“A High Wind in Jamaica” (“Tempestade sobre a Jamaica”, 1965) e as comédias
anteriores aos Lady Killers, quase não fez filmes e nenhum muito digno de nota.
No fim dos anos 60 voltou definitivamente para os Estados Unidos e dedicou-se
ao ensino do cinema no California Institute of the Arts, até morrer, em 1993.
Em 2004, foram publicadas as suas notas On film-making (An introduction to the
craft of the director), organizadas por Paul Cronin e com um prefácio de Martin
Scorsese.
“Mentira maldita”
tem no argumento dois pesos pesados, o dramaturgo Clifford Odets e o romancista
e guionista Ernest Lehman (recomendo a leitura das páginas dedicadas ao filme
em On film-making). Muito bem escrito e dirigido, com uma fotografia pasmosa de
James Wong Howe, as extraordinárias interpretações de Burt Lancaster – num
papel fora do vulgar para ele, até então – e Tony Curtis, no papel dramático da
sua vida, bem como de todo o elenco, é um filme que tem de se ver. Até “Mentira
Maldita” o retrato emblemático do jornalista sem escrúpulos fora, em 1951, o
filme de Billy Wilder, “Ace in the Hole” (“O Grande Carnaval”), com Kirk
Douglas e a injustamente esquecida Jan Sterling, mas a sua grandiloquência
apesar de tudo não está ao nível da secura e justeza de tom do filme de
Mackendrick.
“O Ano de Todos os
Perigos”,realizado por
Peter Weir
O jornalista como
australiano. Em “O Ano de Todos os Perigos” (“The Year of Living Dangerously”,
1982) temos um juvenil Mel Gibson, uma Sigourney Weaver em todo o seu
esplendor, um filme difícil de esquecer – por mim, pelo menos – com a estranha
Linda Hunt a representar um personagem de homem, o ambiente impecavelmente
recreado dos correspondentes estrangeiros numa convincente Indonésia sob
Sukarno. Um galã australiano no princípio da sua carreira internacional, um
realizador australiano, Peter Weir, que chamara a atenção com “Piquenique em
Hanging Rock” e “Gallipoli”, um afloramento da invasão do cinema anglo-saxónico
pelos talentos de down under, da Austrália e da Nova Zelândia, como os
realizadores Peter Jackson (“O Senhor dos Anéis”) ou Bruce Beresford (de
“Breaker Morant”, “Justiça de Guerra”, 1980, a “Driving Miss Daisy”, “Miss
Daisy”, 1989, quatro Óscares), Tony Colette ou Nicole Kidman, etc.
“Debaixo de fogo”, realizado por
Roger Spottiswoode
O jornalista como
revolucionário inconsciente e desorganizado. Nicarágua: como de boas intenções
está o inferno cheio, um jornalista que cai na tentação de tomar partido,
colabora numa fraude jornalística para ajudar os rebeldes comunistas porque o
indignam a política dos Estados Unidos no sul do continente e o repugnante
tirano Somoza – e mente, como acusa os americanos e o governo somocista de
fazer – e contribui com a sua sentimental violação da deontologia profissional
para o triunfo da ditadura sandinista. Em “Debaixo de Fogo” (“Under Fire”, 1983),
temos um elenco capitaneado pelo sempre enorme Gene Hackman, com Nick Nolte (no
papel do fotógrafo “de guerra”) e uma excelente Joanna Cassidy. E dois
personagens secundários memoráveis: os que interpretam Jean-Louis Trintignant e
Ed Harris. A música fantástica da banda sonora é de Jerry Goldsmith.
O ambiente dos
correspondentes estrangeiros desenhado mais uma vez com mão de mestre (embora o
realizador canadiano Roger Spottiswoode esteja longe de se poder considerar um
mestre, mas fez o razoável “Air America”, 1980, e um 007 mais que decente,
“Tomorrow Never Dies”, “O Amanhã Nunca Morre”, 1997, com o melhor James Bond
depois de Sean Connery, Pierce Brosnan). O filme não aparece muito nas short
lists de bons filmes sobre jornalistas mas merecia lá estar.
Miguel Freitas da
Costa foi cronista no Expresso, no Público, no Diário Económico e no DN, entre
outras publicações. Foi director editorial da Guimarães Editores e
secretário-geral da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. É tradutor (Observador)
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