sábado, fevereiro 20, 2016

Opinião: "Passos Coelho existe?"

Parece que Passos Coelho se esqueceu, tal como a maior parte do parlamento, de quem ganhou as eleições de 4 de outubro. O único que aparenta recordar-se é Costa, que ainda o trata por primeiro-ministro.
Guardo com carinho a memória do dia em que um investigador liberal se virou para mim em plena igreja e disse: “A única coisa que nos une a todos é o mercado.” Eu sorri de volta; pelo menos, encontrava-me no sítio certo para pedir perdão.
A maior parte dos académicos mais liberais olha para os anos de governação de Pedro Passos Coelho com ceticismo. As reformas foram poucas, queixam-se. Como escrevia João Miguel Tavares, foi um governo que perdeu a grande chance para o português abandonar a mentalidade do Estado-papá. São capazes de ter razão.
Passos Coelho não se livra do rótulo de paradoxo andante. É, muito provavelmente, o líder menos social-democrata que o Partido Social Democrata já teve.

É preciso coragem para se ser político e liberal num país em que a Constituição ainda faz tangente ao socialismo, com uma carga programática de tal modo evidente que se reflete na nomenclatura partidária: os de centro dizem-se de esquerda e os de direita dizem-se de centro.
Mas se Passos tinha de (1) parecer social-democrata, (2) ser liberal, (3) cumprir com o Tribunal Constitucional e (4) fazer o que a troika mandava, sobrou exatamente o quê?
Não deixa de ser irónico que o primeiro-ministro mais liberal da nossa história (dizem) seja aquele que encabeçou o maior aumento de impostos dessa mesma história. Por isto é que me desmanchei a rir quando a oposição e meia dúzia de analistas associaram o executivo passista ao Tea Party norte-americano.
Em que terra é que Rand Paul compactuaria com tanta taxação ao contribuinte? E em que terra é que um libertário criaria um Ministério da Igualdade e faria juras de amor ao Estado social? Na terra do nunca em que ele é Pedro Pan. Mas, sem hesitar, fez isto mesmo. Prestou homenagem ao valor ideológico do adversário.
Para a recandidatura à presidência do partido escolheu como slogan “Social-democracia, sempre!” em mais uma ave-maria às ironias. Cavaco, Sócrates, António Costa, Pacheco Pereira e Sá Carneiro fizeram discursos pela social-democracia. Nenhum deles foi de direita.
Parece que Passos Coelho se esqueceu, tal como a maior parte do parlamento, de quem ganhou as eleições de 4 de outubro. O único que aparenta recordar-se é Costa, que ainda o trata por primeiro-ministro.
A vitória da coligação de direita trouxe um novo paradigma à nossa sociedade política. Se Passos continuar a vestir a pele de centro/centro-esquerda – que era a mesma do seu adversário –, as pragas neoliberais vão colar e perderá eleitorado. Quem vota com medo dos desastres socialistas não chega para lhe dar uma maioria absoluta; precisa de conquistar um eleitorado seu. Não pode deixar que a única diferença que o separe da esquerda seja a face de cumpridor. Na comissão de Finanças, uma deputada do PSD pediu que se refreassem de proferir palavras como mentira ou direita; alguém só ouviu a segunda parte.
Em público, responder-me-ia que “a liberdade do empreendedor e a igualdade de oportunidades entre cidadãos é da matriz social-democrata” e ao ouvido, minutos depois: “Sabe, companheiro, julgo que uma visão progressista do liberalismo se trate da evolução natural da social-democracia, tendo em conta as possibilidades da economia portuguesa e a nossa dimensão na Europa.” E eu perguntaria: “Mas porque não pensou nisso antes, sotor?”, para ele se escapar com “foi o memorando e a bancarrota que o PS nos deixou”.
Não tem a capacidade de reinvenção de Portas (e até essa teve limites) ou a capacidade de transfiguração de Marcelo. Agora é tarde para voltar atrás.
Durante o seu mandato não foi eurocético nem federalista. Para ser um deles, era preciso existir na União Europeia. E para ganhar as próximas legislativas será preciso existir em Portugal; não gerir uma campanha de silêncios.

A pergunta é: existirá Passos Coelho? (Jornal I, opinião de Sebastião R. Bugalho, com a devida vénia

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