sexta-feira, outubro 31, 2014

Opinião: “Jornalistas e preguiçosos”



Eça de Queiroz apontava vícios terríveis à imprensa. Os juízos ligeiros, sectarismo, partidarismo, falta de independência. Com esse amontoado de desvirtudes, a imprensa florescia. Estava num trono. Dizia que “para vir no jornal, homens se arruínam, mulheres se desonram, políticos desmancham a boa ordem do Estado”. Nas democracias, o “grande esforço era alcançar o louvor do jornal”.
O primeiro-ministro não se cansa de não surpreender. Honra a língua materna como ninguém. No uso correcto da linguagem correcta. Adoptou na governação a criatividade linguística da Jota. É o povo “piegas”. A “salsicha educativa”. O “striptease bancário”. O “fanatismo orçamental”. A "pancada” no povo. É “essa gente” toda.
Encolhemos os ombros: “coisas da juventude”. Já passa. Não passa. É modo de ser.
Só a palavra imprópria já é mau. Constrange. É o primeiro-ministro!
Se se passa às ideias, a coisa complica-se.
Eça não tem razão! O primeiro-ministro não quer só o louvor da imprensa. Exige o acordo da imprensa. Se o jornal não louva e concorda, é preguiçoso. Patético.  
No seio da família partidária, entusiasma-se. A unanimidade inebria-o. Subestima ensinamentos mínimos da vida. A prudência de duvidar do unanimismo. Embalado com tanta razão, descura a lucidez. O entusiasmo enevoa a clareza de espírito. Toma-se a parte pelo todo.
A preguiça procria juízos ligeiros. Os jornalistas não estudam, não analisam. São calaceiros. Falam de cor. Deviam seguir-lhe o exemplo. Tudo estuda com minúcia. De tudo fala com rigor. Nunca diz ora uma coisa, ora outra. Nunca se engana! São uns preguiçosos.
São patéticos!  Exagerados. Inventaram a austeridade da qual nunca mais se sai. A dívida sempre crescente. O défice que não desce. O futuro sem futuro. O desemprego. A carga fiscal sem nome. Professores sem escola, alunos sem professor. Tribunais bloqueados por meses. Conspiração jornalística.
Os jornalistas e comentadores são míopes. Mal intencionados. Recusam a grandeza das reformas! Um povo que sofre. Quanto mais trabalha, menos recebe. Mouro de trabalho para pagar impostos. Um Governo que se sente muito melhor. As pessoas não. Uma terra vendida a retalho a estrangeiros. Um país sem sonhos!
Sobrava a terminologia imprópria de primeiro-ministro. Preocupante é o subliminar. As injúrias a uma classe profissional. Dissimuladamente, a férula ao jornalismo, que é fundamental à garantia da liberdade de pensamento, expressão e informação, firmada em tudo quanto é legislação internacional e nacional sobre a matéria.
Eça dizia que “quando se lê constantemente Séneca, ganha-se os hábitos e o espírito de Séneca”. Há anos a fio, o primeiro-ministro professa uma doutrina: o “memorando de ajustamento”. O seu Corão. Uma religião. Pensamento único. A graça da austeridade. O pecado mortal de ser feliz em Portugal.
O memorando blasfema da cidadania. Renega e despreza a liberdade. Só números, despedimentos , juros e cortes, em folhas de Excel.
Personagem aquém, o primeiro-ministro não vê adiante. Verbera o pensamento além. O memorando é a verdade. Pensar diferente é heresia. Preguiça. Ser patético. Chama-se censura!” (texto de ALBERTO PINTO NOGUEIRA, Procurador-geral adjunto, Público, com a devida vénia)