terça-feira, fevereiro 06, 2024

Opinião: "Salvar o jornalismo, a bem da democracia"

A crise do jornalismo é mais do que uma crise do modelo de negócio: é antes o reflexo da crise do espaço público. E combatê-la exige a disponibilidade de poderes públicos e privados, como se tem visto no debate em torno das dificuldades dos média em Portugal.

A situação de crise da Global Media Group, de que o Dinheiro Vivo faz parte, tem motivado um longo debate sobre formas de resolução da crise dos média. A ideia da nacionalização, por razões óbvias, não ganhou terreno, pelo que a discussão se tem centrado em que tipo de apoios deve o Estado fornecer à comunicação social.

O tema será novo em Portugal, pelo menos com esta dimensão, mas não é nada que não esteja já a preocupar há vários anos entidades a nível a global. O debate tem motivado vários estudos internacionais, bem como uma miríade de artigos científicos e análises técnicas que dissecam o que se passa noutros países. Até porque à crise do jornalismo equivale uma crise do espaço público, que é mais vasta, e que precisa de ser.

Esse é um bom ponto de partida para dissecar a situação em Portugal.

Razões nacionais  para a crise

Portugal tem, paradoxalmente, títulos de imprensa a mais e a menos. Tem demasiados títulos demasiado iguais porque o mercado dos média não é racional e isso continua a baixar qualificações, salários e a dispersar demasiado a publicidade disponível. Títulos como o Sol, o i, o Novo, o Diabo, o Tal & Qual e vários outros são produtos que não vendem o suficiente para justificar a sua existência, mas continuam a ser publicados sem que se perceba o que os motiva.

Ao mesmo tempo tem títulos de menos: o deserto de jornais regionais cobre grande parte do nosso território, especialmente se excluirmos os títulos detidos por igrejas ou autarquias - e esse é um dos problemas do modelo atual: o registo de títulos na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) confunde periódicos comerciais e títulos desinformativos com jornais credíveis e títulos de qualidade, colocando no mesmo nível a revista do Continente, o Público, o Notícias Viriato e o Diário de Notícias.

Em paralelo, a grande maioria da população tem baixa literacia, poucos rendimentos e um hábito generalizado de consumir informação sem pagar por ela, reclamando ao mesmo tempo da falta de qualidade do jornalismo disponível. Por outro lado, as universidades continuam a promover cursos de comunicação social, jornalismo e temas aproximados, colocando anualmente no mercado muitas centenas de jovens treinados para uma profissão que nunca irão exercer, até porque o ensino não reflete a situação profissional atual.

E falta falar do mercado publicitário, que não só é quase exclusivamente online como também é cada vez mais programático. Entre a pressão de gerar receitas e a dependência dos gigantes comerciais que definem os destinos da internet, os jornais estão incapazes de fazer face à redução de receitas que se tem verificado de forma continuada nos últimos 20 anos.

O valor do jornalismo

É fácil fazer a defesa do jornalismo enquanto bem público: um ecossistema de liberdade informativa torna as sociedades mais robustas e apelativas, reduzindo riscos de abusos de poder e aumentando o bem-estar coletivo.

Ao mesmo tempo, há argumentos económicos a favor de um jornalismo pujante: a atividade enquadra-se no setor das indústrias criativas, tido pela União Europeia como um dos setores mais pujantes e responsável por 4% do PIB europeu; e há argumentos tecnológicos, que se concentram na degradação do espaço público graças ao digital, que tem sido repetidamente demonstrada por casos como o Cambridge Analytica e as manobras de desinformação repetidas em várias eleições - tudo problemas que se vão agudizar muito com a popularização das tecnologias alimentadas por inteligência artificial; por fim, há também naturalmente argumentos de cidadania, que se resumem a isto: sem jornalismo livre e independente, a queda no fascismo é inevitável.

Por tudo isto, é essencial reforçar que a ideia de apoios ao jornalismo não só não é de agora como é parte de um esforço global para melhorar as condições de vida em liberdade e democracia. Vários países europeus têm sistemas consolidados de apoio aos média. As nações do centro e norte europeus como França, Alemanha, Finlândia e Suécia possuem mecanismos estruturados, mas também países do sul como a Itália mantêm esquemas diversos que suportam meios de comunicação social. Para não distorcer o mercado, é essencial que estes apoios sejam tão neutros quanto possível; ou seja, que se apliquem a todos os média que cumprem a missão de informar e que os fatores de distribuição sejam claros.

A diversidade de apoios

Se é certo que a questão mais sensível passa pelos apoios financeiros, a manutenção de um espaço público saudável tem outras implicações. Como, por exemplo, a exigência de transparência sobre a propriedade das empresas de média noticiosos, como já está consagrada em lei, mas que deve ser acompanhada de uma ação rápida do regulador.

Por outro lado, os especialistas são unânimes a reconhecer que é essencial garantir a execução continuada de campanhas de literacia mediática, colocando o tema no currículo escolar obrigatório e garantindo que todos os setores da população disso beneficiam.

Em Portugal, um aspeto que pode ser transformador passa pela revisão da lei-quadro das Fundações, de forma a que a persecução do direito a informar seja considerado um fim prioritário de interesse social, bem como garantir que o estatuto de utilidade pública possa ser atribuído a entidades com esse objetivo - o que poderia desbloquear bastante dinheiro para os títulos informativos de referência.

E será também essencial que os empresários sérios que se interessem pelo setor sejam reconhecidos pela sociedade, incluindo pelos atores políticos. A forma como Marco Galinha foi tratado desde que entrou na comunicação social ecoa o que aconteceu a António Carrapatoso e Luís Amaral quando há dez anos anunciaram o Observador - até porque o risco é que se estes empresários se desinteressarem, os únicos dispostos a investir em imprensa em Portugal poderão ser fundos com capital de proveniência dúbia e representantes sem nível para o setor que dizem representar.

Vários países europeus aplicam uma diversidade de mecanismos de apoio financeiro, quer diretos quer indiretos, o que aliás ocorre em diversas indústrias: variações dos mesmos existem para outros setores económicos que o Estado entende que devem ser prioritários, seja porque são considerados determinantes ou porque podem ser estratégicos para o país.

Como pagar por isto?

Além do evidente retorno que o jornalismo livre tem para a sociedade democrática, há outras formas de garantir o investimento necessário para o suprimento destas medidas. A mais consensual será a de taxar as grandes empresas tecnológicas, que continuam a beneficiar de uma incompreensível ligeireza quando se trata de pagamentos devidos pela atividade que praticam. E isto porque parte das operações das grandes plataformas tecnológicas beneficiaram brutalmente do uso da informação produzida pelos meios de comunicação ao longo dos últimos 20 anos.

Ao mesmo tempo, empresas como a Google beneficiam do controlo da oferta e da procura do mercado publicitário aberto, que tem sistematicamente prejudicado os meios de comunicação - a que se junta o abuso da posição como intermediários para cobrar taxas pelo valor das subscrições feitas nos smartphones. Mas o maior argumento terá a ver com o facto de que as plataformas digitais são as grandes responsáveis pelo custo social da proliferação da desinformação, visto que as suas marcas amplificam desinformação - da qual ainda beneficiam economicamente graças ao retorno publicitário. É importante destacar que algumas empresas, nomeadamente a Google, têm feito um esforço para apoiar o esforço de transição digital dos meios de comunicação social com vários programas - mas, ainda assim, num retorno insignificante face à perda de valor dos títulos de comunicação social.

Os mecanismos que podem ser utilizados para taxar estas empresas são diversos e têm de ser bem avaliados. Leis que forçam as plataformas a pagar a títulos de imprensa têm tido resultados desiguais em países como a Austrália ou o Canadá, pelo que essas abordagens serão pouco aconselháveis. Uma solução proposta pela OCDE passa pelo pagamento mínimo de um imposto sobre os rendimentos de 15% dos lucros, ideia essa que está a ser implementada de forma desigual em vários países. Outra possibilidade passa pela cobrança de multas pelo desrespeito das grandes plataformas das leis europeias, com o RGPD à cabeça: Espanha já cobrou mais de 25 milhões de euros, França mais de 300 milhões, mas a Irlanda já recebeu mais de dois mil milhões de euros e até o microscópico Luxemburgo aplicou uma multa de 746 milhões (à Amazon). Esta é uma fonte de receita que incompreensivelmente o Estado português tem abdicado de aplicar, o que é revelador da compreensão limitada que os atuais poderes públicos têm das políticas do digital - aliás, as únicas multas que o regulador aplicou foram a entidades públicas portuguesas.

Mecanismos financeiros de apoio ao jornalismo

- Alargar a definição de serviço público para abranger ações de divulgação pública de temas relevantes (como campanhas de prevenção de violência doméstica ou de saúde pública) no âmbito do jornalismo, criando mecanismos de apoio para os títulos que lhe deem espaço.

- Subsidiar compromissos de qualidade editorial, como a manutenção de correspondentes no estrangeiro e a cobertura de comunidades sub-representadas.

- Criar mecanismos de redução (ou mesmo isenção) fiscal para entidades que contratem jovens profissionais.

- Subsidiar mecanismos de formação continuada para os profissionais das empresas jornalísticas, promovendo a aquisição de competências ao longo da vida.

- Apoiar de forma efetiva a distribuição dos títulos de imprensa nacional e regional, subsidiando as rotas que não são sustentáveis comercialmente.

- Desenvolver mecanismos de apoio para a transformação digital de empresas noticiosas, facilitando projetos de modernização que ajudem no acesso a novos mercados e ao desenvolvimento de novos produtos.

- Assegurar critérios transparentes na distribuição de publicidade nacional e regional aos meios informativos existentes.

- Garantir um conjunto de condições especiais para startups jornalísticas, especialmente aquelas que propõem um serviço diferenciado e/ou cobertura de nichos geográficos ou temáticos.

- Subsidiar diretamente os meios de comunicação social que mantenham e disponibilizem os seus arquivos à população enquanto ato de serviço público.

- Estabelecer mecanismos de apoio que estimulem as escolhas dos cidadãos por assinaturas de títulos editoriais, como vouchers, descontos e/ou abatimentos diretos nos impostos ao investimento no consumo de informação (DN-Lisboa, Dinheiro Vivo, texto do jornalista Diogo Queiroz de Andrade)

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