Empréstimos com finalidades específicas ascenderam aos 140,9 milhões de euros em 2023, tendo sido a saúde uma das categorias com mais peso. Crescimento expressivo reflete fragilidades do SNS, atestam especialistas. A tendência é marcante e surge à luz dos números divulgados na semana passada pelo Banco de Portugal (BdP): os empréstimos contratualizados entre o setor financeiro e as famílias para fazer face a despesas de saúde, educação e energias renováveis têm crescido a um ritmo vertiginoso ao longo da última década. Só em 2023, foram concedidos 140,9 milhões de euros para o conjunto das referidas finalidades, o que significa quatro vezes mais (332%) do que o valor financiado em 2015 (32,6 milhões), o último ano de governação social-democrata. Falamos de uma diferença nominal de 108,3 milhões de euros.
De acordo com a Associação de Instituições de Crédito Especializado (ASFAC), os seus 28 associados foram responsáveis por conceder 125 milhões de euros nestas categorias, o correspondente a 89% daquele montante. Por questões concorrenciais, a instituição não está autorizada a refinar a estatística além dos padrões do supervisor, mas ao DN/Dinheiro Vivo, Duarte Pereira Gomes, o seu secretário-geral, admite que, na variação observada, pesam sobretudo os segmentos da saúde e das energias renováveis. Os empréstimos para educação, por seu turno, ter-se-ão mantido estáveis, ao passo que o leasing de equipamentos “nem é de se considerar”.
Os últimos dados do Pordata mostram que, entre 2015 e 2021, a despesa total dos portugueses com bens e serviços de saúde aumentou sensivelmente 37%, para os 8,4 mil milhões de euros, o equivalente a 3,9% do PIB daquele ano. Pedro Pita Barros, especialista em Economia da Saúde, explica que a procura por empréstimos desta natureza será provavelmente decorrente do elevado valor de pagamentos diretos – “uma realidade com estabilidade na última década”. Parte significativa dessas transações, atesta o economista, vão diretamente para prestadores privados, sem haver cobertura de seguro, e têm como principal destino cuidados em ambulatório, onde se inserem consultas e exames (38%), comparticipação em medicamentos prescritos (24%) e recurso a hospitais (15%).
Mesmo não tendo acesso a elementos mais recentes, o investigador reconhece ser possível que “haja despesas elevadas em algumas famílias que tenham levado à procura de crédito para satisfazer essas necessidades” – o que, na sua leitura, será sinal de falha de cobertura do Serviço Nacional de Saúde (SNS) sempre que em causa estejam cuidados imprescindíveis. Do outro lado, Nuno Rico, especialista em assuntos financeiros da Deco Proteste, assenta que o aumento do custo de vida terá contribuído igualmente para esta evolução, levando consumidores a recorrer ao financiamento para fazer face a custos inesperados. Mas, para que dúvidas não restem: o “maior recurso a tratamentos fora do SNS, através de entidades privadas, fruto dos problemas que têm vindo a ocorrer neste serviço público”, é a principal justificação para este cenário.
À medida em que as fragilidades do SNS se acentuam, o setor da hospitalização privada em Portugal vai-se expandindo, tendo apresentado em 2022 crescimentos em atos tão significativos como consultas (15%), cirurgias (27%) e urgências (7%), face ao período que antecedeu a pandemia – e, no ano passado, estima a Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP), os números terão continuado em trajetória ascendente. A quantidade de pessoas protegidas por seguros de saúde também subiu para os 3,6 milhões até setembro último, mais 1,3 milhões em relação a 2015, faz saber a Associação Portuguesa de Seguradores (APS).
Sobre o endividamento dos portugueses, o secretário-geral da ASFAC atenta quanto à probabilidade de não se cingir àquele montante, uma vez que também os empréstimos pessoais clássicos (que não beneficiam de taxas de juro especiais) e os cartões de crédito têm disparado – segundo o BdP, os acréscimos, entre 2015 e 2023, foram de 50%, para 3,32 mil milhões, e de 29%, para 1,31 mil milhões de euros, respetivamente. Pedro Pita Barros ressalva, no entanto, que pode haver um indício menos negativo associado a este quadro: “Se a alternativa fosse as pessoas não acederem de todo a cuidados de saúde necessários”. Não se verificando a pior das hipóteses, “o recurso a empréstimos para assegurar estas despesas é um problema de falta de cobertura que deverá receber atenção”.
No caso do crédito para as energias renováveis, não obstante a relevância do financiamento solicitado pelos consumidores para tornar as suas casas mais eficientes, seja através da substituição de janelas, aplicação de isolamento ou instalação de painéis fotovoltaicos (exemplos de gastos cobertos pelos empréstimos de energias renováveis), estudos como o do Portal da Construção Sustentável (2023), no qual 89% dos portugueses considerou a sua casa desconfortável a nível térmico, ou as próprias estatísticas europeias, que destacam o país como um dos piores em matéria de pobreza energética, revelam um tímido progresso, que nem mesmo os apoios do Estado tiveram a capacidade de acelerar.
Ainda que os dados da Direção-Geral de Energia e Geologia revelem que, de uma potência fotovoltaica total de 3890 megawatts (MW) instalada em Portugal até dezembro passado, 1565 MW (40%) sejam Unidades de Produção para Autoconsumo (UPAC), note-se que este grupo inclui, além dos particulares, autoconsumidores industriais – e, segundo a Otovo, empresa que opera no setor energético, 95% a 97% dos portugueses que podem ter um painel solar em casa ainda não o têm. Nuno Rico confirma, contudo, que a procura por financiamento para investimentos em energias renováveis é explicada “pela crescente adesão a estas tecnologias nos últimos anos” (DN-Lisboa, texto da jornalista Mariana Coelho Dias)
Sem comentários:
Enviar um comentário