sexta-feira, dezembro 23, 2022

Berardo despede-se do “seu” museu com o lançamento de um novo catálogo da colecção

Foi a última cerimónia pública presidida pelo coleccionador José Berardo no museu que há 15 anos leva o seu nome em Lisboa. Se tudo correr conforme os planos do Ministério da Cultura, o Museu Colecção Berardo cumprirá o seu último dia a 31 de Dezembro, para surgir no Centro Cultural de Belém (CCB) um novo museu, que ainda não tem nome oficial, mas onde continuará a ser exibida a Colecção Berardo, arrestada como garantia no processo movido ao empresário por um consórcio de três bancos.

A poucos dias dessa passagem, nada mais está previsto na agenda do museu. Ficará portanto como o seu derradeiro acto o evento que esta terça-feira ao final da tarde juntou dezenas de convidados para assistir ao lançamento de um novo catálogo dedicado à Colecção Berardo, com 860 páginas. A cerimónia, conforme estava anunciado, procurou comemorar um aniversário redondo do Museu Berardo, nas vésperas de este passar a ser gerido pelo CCB. O desfecho foi ditado, em Maio, pelo ministro da Cultura Pedro Adão e Silva, ao denunciar o protocolo de 2006 que deu origem ao museu. O coleccionador José Berardo, apesar do ambiente festivo, não prestou declarações aos jornalistas, a conselho dos seus advogados, nem ficou para o cocktail que se seguiu ao lançamento. As declarações ficam reservadas para o próximo ano, prometeu ao PÚBLICO.

A extinção do Museu Berardo continua porém a ser contestada em tribunal pelo empresário, numa luta que decorre do processo judicial que lhe foi movido por três bancos. Há já quase dez anos que o consórcio de credores formado por Caixa Geral de Depósitos, Millennium BCP e Novo Banco procura encontrar uma solução para a dívida de quase mil milhões de euros que imputa a Berardo, o que levou em 2019 ao arresto da sua colecção de arte moderna e contemporânea. Na altura, o tribunal decidiu também que, até haver uma decisão judicial definitiva sobre a propriedade da colecção, esta deveria continuar exposta ao público, tendo nomeado o CCB como seu fiel depositário.

Berardo deixa cair recurso

Ao que apurou o PÚBLICO, e apesar das sucessivas diligências do empresário para contrariar esse desfecho, a dissolução do protocolo entre o Estado e José Berardo vai mesmo concretizar-se no próximo dia 1 de Janeiro, já que tanto este como a Associação Colecção Berardo desistiram do recurso que ainda mantinha juridicamente viva a tese de que a denúncia do acordo pelo ministro da Cultura não tinha cumprido todos os requisitos legais e devia, por isso, ser considerada inválida.

O pedido de desistência do recurso foi apresentado a 29 de Novembro junto do Tribunal Central Administrativo do Sul, que o deferiu a 2 de Dezembro, numa sentença assinada pelo juiz Frederico de Frias Macedo Branco. O PÚBLICO tentou ouvir a defesa de Berardo envolvida directamente nesta diligência, que preferiu não prestar quaisquer declarações, bem como o Ministério da Cultura, que também não quis fazer comentários, mas confirmou a veracidade da informação.

A contestação de José Berardo à denúncia do protocolo fundava-se na tese de que, nos termos do próprio acordo, tanto ele próprio como a Associação Colecção Berardo teriam de ter sido notificados, até ao final de Junho, não apenas pelo Estado, mas também pelo CCB. Esta última exigência, alegava o empresário, não teria sido cumprida. Uma argumentação que veio a ser liminarmente indeferida em primeira instância, pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, tendo os advogados de Berardo interposto recurso, do qual agora desistiram.

A esta decisão pode não ter sido alheio o facto de a Associação Colecção Berardo ter entretanto requerido ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no final de Outubro, a revogação do arresto judicial das obras de arte do empresário, alegando que o seu valor excedia largamente a dívida de 962 milhões de euros reclamada pelos três bancos com os quais mantém um contencioso. Uma pretensão apoiada numa avaliação que teria sido feita em Setembro pelo galerista Gary Nader, de Miami, com quem José Berardo mantém desde há anos relações comerciais e artísticas, e que estimou em 1,5 mil milhões de euros o valor das peças arrestadas — um valor muito acima dos 316 milhões fixados por uma avaliação da leiloeira Christie’s em 2006.

Esta nova iniciativa processual não teve ainda qualquer desenlace, ao que sabe o PÚBLICO. Mas, se o tribunal vier a dar razão ao requerimento, poderá estar comprometida a eventual exposição das obras da Colecção Berardo no âmbito do novo museu de arte contemporânea que o ministro Pedro Adão e Silva anunciou para o CCB, e que contaria ainda com a Colecção Ellipse, recentemente adquirida pelo Estado.

Presente na cerimónia desta terça-feira, André Luiz Gomes, o principal advogado de Berardo e membro do conselho de administração da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo, presidido pelo empresário e que decidiu até aqui os destinos do museu, disse ao PÚBLICO que, "em breve, teremos certamente notícias sobre a pretensão do Estado de que o comodato da Colecção Berardo terminou".

"Uma recompensa espiritual"

Intitulado Colecção Berardo 1909-2019, o volume que esta tarde foi lançado no museu que ainda tem o nome do empresário é o terceiro catálogo dedicado a este acervo. O volume foi apresentado pelo coordenador da edição, Pedro Lapa, que dirigiu o Museu Colecção Berardo entre 2011 e 2017, e por Rita Lougares, que assumiu o cargo de 2017 em diante; cada um deles, tal como o primeiro director da instituição inaugurada em 2007, o francês Jean-François Chougnet (que não esteve presente devido a um atraso no avião), assina um ensaio neste catálogo, que aborda 523 das obras da colecção (o acordo de comodato de 2006 abrangia 862).

"É um livro enorme, uma bíblia", disse Rita Lougares sobre uma edição que começou a ser pensada em 2016, ainda Lapa era director do museu. O catálogo inclui ainda uma entrevista a José Berardo feita pela directora, na qual o empresário afirma que ser coleccionador é uma forma de vida: “Sinto que no meu caso é uma forma de compensação emocional. A arte é quase como uma recompensa espiritual. Algo que me preenche, que me enriquece; algo sem o qual não saberia viver.” Sobre a Colecção Berardo, uma das várias que juntou, diz ser quase como um terceiro filho: “Esta colecção é a minha vida!”

Foram também convidados para o lançamento os restantes membros do conselho de administração da Fundação Colecção Berardo, que inclui, além de André Luiz Gomes, Elísio Summavielle, presidente do CCB (nomeado pelo tribunal fiel depositário das obras arrestadas), Renato Berardo, filho do empresário, tal como Rui Patrício e Catarina Vaz Pinto (ausente por se encontrar fora do país), representantes do Estado português.

Segundo Pedro Lapa, a ideia de editar um novo catálogo da colecção surgiu porque os dois anteriores já estavam esgotados. “O projecto manteve-se com o profundo empenho da nova directora, Rita Lougares, e do presidente do conselho de administração, José Berardo. A sua realização teve um período de concretização naturalmente extenso, dado o volume de informação a tratar”, disse o coordenador do volume ao PÚBLICO numa conversa por email, antes da cerimónia. “Este processo atravessou o período da pandemia e um novo enquadramento jurídico da colecção, com as incertezas que tudo isso causa, mas foi concluído”, acrescentou ainda, explicando que o momento escolhido para o lançamento, a poucos dias do fim do acordo de comodato, foi uma decisão do museu, entidade responsável pela publicação do catálogo.

Durante a apresentação e no ensaio do catálogo, o ex-director do museu relembra a “surpresa absoluta” que foi perceber, no início dos anos 90, que existia em Portugal uma colecção com “grandes obras” de artistas que até então só era possível admirar nos grandes museus internacionais, como Andy Warhol ou Frank Stella. E defende que a Colecção Berardo alterou de forma profunda o panorama do coleccionismo no país, num empreendimento concebido conjuntamente por José Berardo e Francisco Capelo, o curador que ajudou o empresário madeirense a escolher e a comprar as obras no mercado internacional, também ele coleccionador, e de quem Berardo se viria a distanciar em 1999.

Pedro Lapa não acredita que a publicação do catálogo nesta fase de transição possa reabilitar e fortalecer a posição do empresário José Berardo na disputa com o Estado, como defendeu Francisco Capelo num artigo no jornal Expresso publicado esta terça-feira. “O que espero é que o catálogo desta colecção possa contribuir para um esclarecimento sobre o seu valor único e imprescindível para o país. As outras questões são da justiça e esse assunto ultrapassa-nos.”

O objectivo do catálogo é demonstrar como a colecção “constituiu um resgate sobre a penosa e subdesenvolvida ausência de arte moderna internacional em Portugal”, comum a todas as gerações do século XX, menos a última, e "como o seu papel foi fundamental — atrevo-me a dizê-lo, único e absoluto — na transformação do coleccionismo no nosso país”, sublinhou Pedro Lapa ao PÚBLICO. “Nenhuma instituição pública ou privada, coleccionador ou fundação concretizaram até ao final do século passado um projecto desta natureza, que foi modelo para as colecções e projectos que posteriormente emergiram.” Devemos a Berardo, continuou Lapa na apresentação, o surgimento de um coleccionismo "com uma dimensão institucional dirigido à fruição de todos".

O historiador de arte e curador termina o seu texto lembrando que o futuro da Colecção Berardo depende ainda de decisões judiciais e do empenho do Governo em salvaguardar um “tesouro nacional”, numa possível referência ao mais elevado grau de classificação do património em Portugal, hipótese que o protocolo assinado com o empresário, e que está em vias de extinguir-se, afasta explicitamente numa das suas cláusulas.

Sobre o balanço que faz dos 15 anos do museu, José Berardo diz na mesma entrevista: "Penso que, apesar de todas as vicissitudes e dos tempos difíceis que vivemos, o balanço é muito positivo."

Nas palavras de Pedro Lapa, este ponto da situação, com a dimensão científica que significa a edição de um novo catálogo, "é deveras importante quando se fecha um ciclo e começará outro".

Datas do dossier José Berardo

3 de Abril de 2006

O Estado português e José Berardo estabelecem um protocolo que define os termos em que a Colecção Berardo irá ficar instalada no Centro Cultural de Belém (CCB). Assinado pela ministra da Cultura de José Sócrates, Isabel Pires de Lima, e por António Mega Ferreira, presidente do CCB, o acordo de comodato gerou controvérsia desde o início, sobretudo por implicar a ocupação de todo o espaço expositivo do CCB.

Dezembro de 2006

A Christie’s avalia a colecção em 316 milhões de euros. Ao longo de uma década, até à renegociação do protocolo em 2016, seria este o valor a desembolsar pelo Estado se optasse por comprar a colecção. O que nunca fez.

25 de Junho de 2007

É inaugurado o Museu Berardo no CCB, com um acervo inicial de 862 obras. No ano seguinte já é o museu mais visitado em Portugal.

Novembro de 2016

Luís Filipe Castro Mendes, ministro da Cultura de António Costa, renegoceia o protocolo com Berardo, ampliando para mais seis anos renováveis a permanência da colecção no CCB. O texto revisto mantém a polémica cláusula de 2006 pela qual o Estado se comprometia, caso não adquirisse a colecção, a não a classificar nem colocar entraves à sua saída do país.

Junho de 2017

Três bancos – a CGD, o BCP e o Novo Banco – a quem o empresário deverá, no conjunto, perto de mil milhões de euros, tentam penhorar parte da Colecção Berardo.

Agosto de 2018

Berardo procura vender no Reino Unido 16 obras importantes da colecção que se comprometera a manter no CCB até 2022, mas a Direcção-Geral do Património Cultural impede a sua expedição.

10 de Maio de 2019

Berardo é ouvido no Parlamento e garante, sorridente, que não tem dívidas. A sua intervenção é vista como uma desfaçatez e prejudica gravemente a sua imagem pública.

Julho de 2019

Na sequência do processo movido pela banca, o tribunal decreta o arresto das obras da Colecção Berardo, entre outros bens.

29 de Junho 2021

Berardo é detido, indiciado de crimes de burla qualificada, branqueamento de capitais, fraude fiscal e abuso de confiança, entre outros. Paga caução de cinco milhões de euros para sair em liberdade, mas fica proibido de sair do país sem autorização do tribunal.

26 de Maio de 2022

O ministro da Cultura Pedro Adão e Silva denuncia o protocolo com Berardo, com efeitos a partir de 1 de Janeiro, e anuncia a intenção de instalar no CCB um novo museu de arte contemporânea que inclua as colecções Berardo e Ellipse. Mas reafirma a intenção de negociar com quem o tribunal vier a decidir que é o proprietário das obras (Publico, texto dos jornalistas Isabel Salema e Luís Miguel Queirós e fotos de Nuno Ferreira Santos)

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