sexta-feira, dezembro 23, 2022

Hugo Góis: Um português foi contratado para lavar dezenas de milhões de euros para corruptos venezuelanos. E depois escondeu o dinheiro que ganhou

 

Escolher um testa de ferro para esconder a fortuna de alguém não é tão simples quanto parece. O que é melhor? Um zé-ninguém encontrado ao acaso ou um indivíduo com um bom nome de família? E deve ser um amigo? Ou um mero desconhecido? A experiência mostra que quando há quantidades grandes de dinheiro a circular é impossível eliminar os riscos de se destapar o que parecia estar bem escondido. Por isso, é melhor contratar quem sabe. Hugo Góis, um gestor português de 43 anos a viver no Porto e acusado de branqueamento de capitais nos Estados Unidos desde 2018, por ajudar a esconder milhões de euros roubados por figuras do regime de Hugo Chávez na Venezuela, é descrito pelos procuradores norte-americanos como um “lavador de dinheiro profissional”. Alguém que faz vida disso. O mais famoso dos beneficiados com o seu talento foi Nervis Villalobos, antigo vice-ministro da Energia de Chávez. Em Espanha, onde o português está ser a investigado também pelos serviços prestados a Villalobos e outros políticos venezuelanos corruptos, o Ministério Público descobriu que só entre 2016 e 2017 Góis movimentou mais de €80 milhões num único banco na República Checa, o Ceská Sporitelna. Outras contas controladas por ele acumularam em pouco tempo dezenas de milhões em países como a Holanda, o Reino Unido, a Geórgia ou as Ilhas Maurícias.

Apesar das estruturas complexas que conseguiu montar, com uma teia de companhias offshore espalhadas por várias jurisdições, nem por isso o desafio foi mais fácil para Hugo Góis quando precisou de esconder o seu próprio dinheiro — e já não apenas o dos outros. Numa investigação desenvolvida em colaboração com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) e a partir de documentos obtidos pelo Expresso, sobre os esquemas montados por este português, descobrem-se pormenores que mostram como não fez as escolhas certas.

ROCKEFELLER QUE NÃO É ROCKEFELLER

De entre os três testas de ferro identificados pelo Expresso como estando a ser usados por Góis para esconder a fortuna que tem acumulado para si próprio, um deles parecia muito promissor. Tinha nome e estatuto.

Lord António Coutinho-Rockefeller, o testa de ferro em questão, apresenta-se no LinkedIn como CEO do grupo Coutinho-Rockefeller e da Rockefeller Investments, com uma ligação histórica à mais famosa família de banqueiros dos Estados Unidos: os Rockefellers. No seu currículo público, diz que começou a trabalhar no grupo Rockefeller em 1987, onde fundou a companhia de saúde pública CND, “a maior companhia no seu sector de atividade”. Segundo a página do LinkedIn, foi consultor em mais de 100 empresas, incluindo a General Motors, a Ford, a IBN, a Shell, a Bayer, a Nestlé, a BP, a Vodafone, o Santander, o Millenium BCP, o BPI, a CGD, o Grupo Amorim, a Jerónimo Martins, o grupo José de Mello, a Sonae, etc, etc, etc. É ainda escritor e “professor de relações humanas e emocionais”.

Só há um senão, que põe o resto em xeque: os Rockefellers da família original norte-americana denunciaram-no em 2021 como uma fraude e interpuseram um processo no centro de arbitragem da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a WIPO.

A decisão da arbitragem foi publicada em junho do ano passado pela WIPO: António Coutinho “falsificou uma alegação de ter trabalhado com a família Rockefeller, adotando o nome Rockefeller sem qualquer base legal ou outra base legítima” e a sua conduta só pode ser considerada de má-fé, uma vez que “procurou criar uma falsa impressão de filiação com os autores da queixa”, para poder atrair clientes para os seus negócios.

O registo comercial mostra que existe uma empresa de nome Rockefeller – Consulting Lda. associada a António Coutinho, criada em novembro de 2020 numa sala de um quarto andar do Porto, com um capital social de €5 mil. A CND referida no LinkedIn como a maior companhia do sector de Saúde Pública foi constituída na mesma sala do quarto andar seis meses antes de a Rockefeller Consulting ser criada — e pouco tempo depois de a pandemia da covid-19 ter começado. O que talvez explique o nome oportuno que lhe foi dado: CND — International Microbiology Decontamination Lda.

Então, o que tem o Rockefeller que não é bem Rockefeller a ver com o “lavador de dinheiro profissional” Hugo Góis?

O FERRARI E O IATE

Há pelo menos duas empresas de Coutinho, onde foi acionista principal e gerente, que serviram para pagar despesas de Hugo Góis, segundo documentos obtidos pelo Expresso.

Uma delas é a Cityman Finance Lda., aberta em novembro de 2018 em Lisboa. Nessa empresa, Góis possui uma pequena quota de 5%, através da única companhia em nome próprio detida por si em Portugal, a Ethnicproposal, Unipessoal. Uma das despesas feitas pela Cityman Finance para Góis foi a compra de um Ferrari 812 Superfast no final de 2019. O carro custava €337 mil, mas o intermediário financeiro português conseguiu entregar para retoma outro Ferrari comprado meses antes, um 488 Spider, ficando o gasto em pouco mais de €100 mil.

Logo a seguir, a Cityman transferiu o Ferrari 812 Superfast para outra companhia controlada formalmente por Coutinho, a Grand Victoria Leasing, com sede em Malta. Finalmente, dois meses depois, a Grand Victoria vendeu o carro a uma terceira empresa, a Goldenpriority, mais uma empresa em Portugal cujo verdadeiro beneficiário é Góis. Na sequência das transações, o IVA de 19% aplicado de início pelo vendedor, um entreposto alemão, não foi pago.

Constituída formalmente para fornecer consultoria financeira e para comprar e vender relógios, a Cityman pagou ainda salários de €5 mil por mês ao piloto de um iate. Batizado com o nome “Victoria G” e um valor estimado de €3 milhões, esse iate de 27 metros tem sido palco de convívios organizados por Góis. Pelo menos até recentemente, era detido pela Grand Victoria.

Hugo Góis não esteve disponível para responder ao Expresso sobre a sua atividade de “lavador de dinheiro profissional” e a relação com os seus próprios testas de ferro.

Coutinho, quando confrontado, deu uma breve explicação sobre a Cityman Finance e a Grand Victoria Leasing: “Em ambos os casos apenas exerci funções de gerente de direito e não de facto. Como não tive acesso à contabilidade e nunca recebi nenhum dividendo, atendendo ao seu curto tempo de existência, liquidei as referidas sociedades.”

A atividade da Cityman foi suspensa em dezembro de 2020. Nessa altura, apresentava um fundo de maneio de quase €10 milhões, embora tivesse resultados negativos acumulados. Quanto à Grand Victoria, passou a ser detida e dirigida por Ricardo Tavares em setembro de 2021, outro indivíduo que parece representar Góis numa série de negócios. O padrão da empresa é o mesmo: apresenta resultados negativos, mas tem um ativo de mais de €7 milhões.

Apesar destes ativos, Ricardo Tavares, que não quis responder às questões do Expresso, vive num apartamento de uma pequena freguesia de Santa Maria da Feira e gere uma loja de material informático.

Um terceiro testa de ferro, José Gonçalves, ajuda Góis a segurar os seus bens mais difíceis de esconder: o património imobiliário. Embora a Splendidoption — Unipessoal, Lda. seja detida no papel por Gonçalves, um sócio de uma pequena firma de desporto em Guimarães com quem o Expresso também não conseguiu falar, a empresa serve os interesses daquele intermediário financeiro. A atual casa onde vive, uma moradia construída de raiz na Avenida Marechal Gomes da Costa, na Foz do Douro, no Porto, no valor de mais de €2 milhões, é propriedade da Splendidoption.

Um levantamento feito pelo Expresso identificou uma dúzia de imóveis comprados por essa empresa desde 2015, incluindo uma casa anterior onde Góis já viveu. Em contrapartida, Góis não tem património no seu nome e declara como rendimento um salário próximo dos €1800 que recebe da única empresa que formalmente controla em Portugal, a Ethnicproposal, sendo que quase metade vai para pagar oficialmente a renda da própria casa. É difícil acreditar no básico: que o salário dá para os gastos.

BRANQUEAMENTO GLOBAL

ESTADOS UNIDOS

O país onde Hugo Góis arrisca uma pena pelo crime de branqueamento de capitais que pode ir até aos 20 anos de prisão é o único, até agora, em que está acusado. Num dos despachos tornados públicos é contado como chegou a avisar os seus cúmplices de que um dia iam ser todos apanhados, era apenas uma questão de tempo.

REINO UNIDO

Numa das jurisdições preferenciais para Góis criar empresas, pela aura de credibilidade que transmite, as autoridades britânicas bloquearam cerca de €20 milhões de ativos financeiros controlados pelo português assim que a acusação nos EUA se tornou pública, em 2018.

GEÓRGIA

Em agosto de 2018, Góis viu as autoridades na Geórgia congelarem-lhe €10 milhões que tinha em seu nome em bancos deste país.

ILHAS MAURÍCIAS

Há €21 milhões bloqueados em dois bancos deste país da África Oriental e que, segundo Góis contou aos procuradores espanhóis, pertencem a Nervis Villalobos, um político venezuelano.

LADRÃO QUE ROUBA A LADRÃO MERECE PERDÃO?

Na investigação que tem sido coordenada nos últimos meses pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) a partir de uma série de documentos obtidos e partilhados pelo Expresso relacionados com Hugo Góis, um dos parceiros de media envolvidos, o jornal online espanhol “Moncoa”, obteve os autos de um processo-crime sobre um alegado esquema de extorsão aberto em Espanha em que o português tem colaborado com a justiça. Investigado noutros casos, mas não nesse, Góis contou aos procuradores espanhóis como foi contratado por uma firma de serviços financeiros suíça, a Swissinvest, para lavar dinheiro para alguns clientes venezuelanos dessa empresa. Para isso, pôs à disposição contas bancárias tituladas por companhias suas em vários países europeus, incluindo no Chipre e no Reino Unido, acrescentando assim mais uma camada de ocultação para despistar a ligação entre a verdadeira origem do dinheiro e os seus destinatários finais. O que os gestores na Suíça lhe pedissem para transferir ele transferia. Um desses destinatários foi Martin Rodil, um consultor israelo-venezuelano que se tornou na última década um herói na perseguição movida pela justiça dos EUA contra os elementos corruptos do regime de Hugo Chávez. Rodil, que está a ser investigado nesse processo-crime por ter supostamente liderado uma rede que extorquia dinheiro a esses corruptos, recebeu €18 milhões transferidos por Hugo Góis entre 2015 e 2017, mas cuja origem era Nervis Villalobos, ex-ministro de Chávez (Expresso, texto do jornalista MICAEL PEREIRA e ilustração de MÓNICA DAMAS)

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