sábado, novembro 20, 2021

Madeira: O ‘bloom’ dos surtos psicóticos



Maria não se arrepende do que fez: já pagou dívidas do irmão só para a polícia não o levar algemado e levou fruta, roupas, pijamas, tudo o que foi preciso para o manter em tratamento e dar paz à mãe. Sabe o que pode acontecer no limite. “Tenho um primo que se atirou de uma casa. Disse ‘agora vou voar’ e partiu uma perna. Tudo por causa do bloom”. A minha mãe teve 11 filhos, quatro caíram na droga. O que está a desgraçar os jovens é essa porcaria do bloom. Pulam, dançam, falam sozinhos, falam como se estivessem duas ou três pessoas com eles.” Maria tem 47 anos, aos 10 saiu da escola para ajudar a mãe a cuidar dos irmãos, que eram muitos, como em quase todas as famílias de pescadores de atum do Caniçal.

“Mudei fraldas, dei biberões, são os meus meninos, serão sempre.” Por isso no último Natal moveu mundos e fundos para internar um dos irmãos, “aquele que está no fundo do poço”. Com a ajuda do diretor da Casa de Saúde de São João de Deus, no Funchal, conseguiu mantê-lo em tratamento durante um mês. Esteve limpo quatro meses, mas voltar ao Caniçal trouxe-o para as velhas rotinas, para o lugar onde se consome e se vende. “Agora já ouve e vê coisas, fala sozinho e diz coisas trocadas. É dessa porcaria.”

Maria não se arrepende do que fez. Já pagou dívidas do irmão só para a polícia não o levar algemado e levou fruta, roupas, pijamas, tudo o que foi preciso para o manter em tratamento e dar paz à mãe. Ela sabe o que pode acontecer no limite. “Tenho um primo que se atirou de uma casa, disse ‘agora vou voar’ e partiu uma perna. É tudo por causa do bloom.”

‘Bloom’ é a palavra que na Madeira serve para designar todas as drogas sintéticas, mas, segundo Nelson Carvalho, psicólogo e diretor da Unidade Operacional de Intervenção em Comportamentos Aditivos e Dependências, as substâncias responsáveis pelas psicoses tóxicas na região nos últimos meses são outras: a maligna e o gorbi, dois canabinoides sintéticos muito potentes que ainda não integram a lista europeia de substâncias psicoativas proibidas.

Estes produtos chegam por via postal em negócios feitos através da internet. “Os dealers vendem depois, nos circuitos de rua, a preços muito mais baratos do que as drogas tradicionais, como a cocaína ou a heroína. Um grama destas drogas vende-se a €100, €120, quando em Lisboa custa €50. A maligna e o gorbi compram-se a preços abaixo dos €5 a dose.”

O quadro agravou-se ainda mais durante o primeiro confinamento geral, em março de 2020, conforme explica o responsável regional pela prevenção das dependências. “A canábis desapareceu do mercado. A que havia era muito cara e o negócio virou-se para as drogas sintéticas, que são mais baratas, mais potentes e cujo risco é mínimo. E o máximo que se pode aplicar é uma contraordenação.”

O preço, o baixo risco de incorrer num crime e o acesso fácil são razões apontadas para justificar o grande número de consumidores na região, o território português onde mais se consomem estas drogas. A prática clínica mostra isso mesmo.

“Em cinco anos de internato em Lisboa, no Hospital São Francisco Xavier, tratei dois casos. Aqui, todos os dias há um ou dois casos a dar entrada nas urgências devido ao consumo destas drogas, que são responsáveis por 50% dos internamentos compulsivos.”

Daniel Neto, diretor do Serviço de Psiquiatria do Serviço Regional de Saúde (SESARAM), não tem dúvidas de que “a situação é muito grave na Madeira”. Há um risco social — estas drogas são uma mistura de estimulantes e alucinogénios. As pessoas têm alucinações auditivas, visuais, muitas referem que estão a ser perseguidas e, ao mesmo tempo, têm muita energia. O consumo — quase sempre inalado ou injetado — deixa lesões respiratórias e nas veias devido às misturas com acetona e até lixívia.

INTERNAMENTO A CADA DOIS DIAS

A droga deixa, acima de tudo, uma dependência da qual é difícil libertar-se e que o psiquiatra classifica como uma “ansiedade visceral” por voltar a consumir. Ainda assim, é possível tratar estas pessoas. Pelo menos no período mais agudo, altura em que são internadas compulsivamente na Casa de Saúde de São João de Deus, onde todas as semanas há entre seis e 10 doentes em tratamento de psicose tóxica. Nas contas de Eduardo Lemos, o diretor da instituição de saúde mental, “os serviços registam um internamento por psicose tóxica a cada dois dias”.

Desde 2012 — quando se deu o primeiro pico de internamentos — que Eduardo Lemos mantém as estatísticas em dia. Nessa altura, as drogas vendiam-se em lojas, que na Madeira foram todas encerradas. Mas o negócio reinventou-se através da internet e começou a crescer a partir de 2015. Nesse ano, a Polícia Judiciária foi chamada à alfândega do Funchal por causa de uma encomenda: cinco quilos de uma substância branca que, após análises no laboratório da Polícia Científica, se descobriu ser uma droga sintética conhecida como flakka.

“Na altura, esta substância ainda não constava da lista e por isso fizemos o que a lei nos permite: apreendemos, mandámos analisar e destruímos.” Ricardo Tecedeiro, coordenador da Judiciária na Madeira, admite que “o que se passa na região é inquietante”. A droga sintética circula nos mesmos meios da droga tradicional, mas quando há apreensões as consequências são totalmente diferentes. “Se o resultado das análises detetar uma substância que conste das tabelas anexas à Lei da Droga, há um crime de tráfico; se tiver uma outra composição, sai da esfera policial e passa a ser um processo da Autoridade das Atividades Económicas, sancionado com multa.”

E a Madeira é, a par dos Açores, a região que mais pedidos de análises faz ao laboratório da Polícia Científica, mas não é apenas por isso que Ricardo Tecedeiro fala “de uma realidade que a todos deve inquietar”. A PJ deteve nos últimos tempos suspeitos de crimes graves — de homicídios, agressões violentas e roubos — que estavam claramente alterados e sob efeitos destas drogas. “Além do drama social e familiar, este é também um problema de segurança.”

Em 2020, 140 pessoas foram internadas com um surto psicótico, a grande maioria pela primeira vez, mas há casos crónicos. Há um doente que, em oito anos, passou por 19 desintoxicações.“É uma porta giratória. Há doentes que passam por aqui três vezes por ano”. Eduardo Lemos, da Casa de Saúde de São João de Deus, tem as estatísticas dos adultos, mas Rafaela Fernandes, presidente do conselho de administração do SESARAM, viu-se na necessidade de contratualizar camas de pedopsiquiatria para tratar surtos psicóticos de adolescentes.

“A situação é muito feia, mas a Madeira não pode fazer mais. Este é um assunto da Assembleia da República, mas ao nível nacional não há interesse nisto, é como se não existisse.” É com mágoa que diz que, enquanto deputada do PSD, foi autora da legislação que fechou as lojas em 2012, ano em que morreram quatro pessoas na sequência do consumo destas drogas. “A esquerda na Assembleia da República não quer saber”, lamenta.

O comércio faz-se no vazio legal e as polícias estão de mãos atadas. Se não estiver na lista, ficam no vazio. E para integrar a lista de substâncias proibidas há um sistema de alerta rápido que, na prática, é lento. “São precisos pelo menos dois anos em circulação até que, feitos todos os procedimentos, estes produtos passem a constar da lista das drogas”, explica Nelson Carvalho, o responsável da prevenção.

São necessárias análises, mais relató­rios médicos dos impactos, e isso leva tempo. E quando entram — neste momento há mais de 800 substâncias proibidas — os produtores adaptam-se, alteram uma molécula e passa a ser outro produto, que, até decisão em contrário, é punido com multa. E na rua vende-se a menos de €5 a pessoas como o irmão de Maria, a irmã que é quase uma mãe e que desabafa: “Deve haver alguém com poder, alguém que os possa tirar daquela vida; o bloom está a desgraçar os jovens.” (Expresso, texto da jornalista MARTA CAIRES e foto de GREGÓRIO CUNHA)

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