sábado, novembro 13, 2021

Impostos: Assim fabrica a UE uma transparência à medida



A atividade do Grupo do Código de Conduta é confidencial e o acesso público aos documentos está bloqueado. Quando o eurodeputado alemão Sven Giegold obteve autorização para ler as atas das reuniões do Grupo do Código de Conduta, o órgão encarregado de impedir os governos de violarem a concorrência leal na União Europeia, aprovando regimes fiscais abusivos, foi colocado num gabinete blindado depois de lhe tirarem o seu telemóvel. E, quando saiu, apreenderam o caderno onde tinha tirado apontamentos. Os possíveis, uma vez que boa parte dos documentos colocados em cima da mesa estavam rasurados.

Não acontece apenas com este grupo, uma vez que o Conselho Europeu tem um protocolo de acesso a todas as informações classificadas como confidenciais que inclui as medidas aplicadas ao eurodeputado dos Verdes. Mas o zelo para com Giegold é paradoxalmente revelador da opacidade com que o Grupo do Código de Conduta tem trabalhado nos 24 anos de existência. A sua atividade é confidencial como parte da sua própria natureza: é um órgão diplomático, não executivo. Pelo menos, é essa a razão dada tanto pela Comissão Europeia, que realiza os trabalhos preparatórios e fornece os conselhos técnicos necessários, como pelo Conselho, que o criou em 1997, para manter os assuntos e decisões do grupo longe da opinião pública e até do Parlamento Europeu.

No entanto, documentos a que a revista alemã “Der Spie­gel” teve acesso, partilhados com o consórcio EIC — European Investigative Collaborations (de que o Expresso e o “InfoLibre” fazem parte) e com o jornal sueco “Dagens Nyater”, mostram que o sigilo do Código de Conduta vai muito mais longe. E que a Comissão pode estar a violar as suas próprias regras em matéria de tratamento de informações, excluindo milhares de ficheiros do sistema europeu de gestão de documentos e eliminando, de forma maciça e automática, milhares de mensagens de correio eletrónico. “O Código de Conduta é, possivelmente, o grupo de trabalho mais opaco do Conselho Europeu”, critica o eurodeputado dos Verdes Ernest Urtasun. Alerta que os Estados-membros “se escondem atrás do facto de as questões fiscais serem exclusivamente da sua competência para evitar o escrutínio, mas isso não faz sentido, já vimos o carácter transnacional e europeu dos regimes de evasão fiscal mais comuns”.

Na verdade, os impostos são sempre temas sensíveis e os Estados-membros são particularmente zelosos da sua soberania fiscal, tornando a tarefa do Código de Conduta muito “delicada”, argumenta a Comissão Europeia quando lhe é pedido o acesso aos documentos que colocam preto no branco o funcionamento do grupo. Para que os Estados-membros possam avaliar as leis fiscais de outros Estados-membros, devem fornecer aos seus parceiros “informações relevantes” sobre as regras e atos administrativos internos. E as decisões do grupo, que são tomadas por consenso — unanimidade menos um, o do país envolvido —, podem levar à sua revogação ou modificação. São leis que, por vezes, determinam o estabelecimento de empresas num ou noutro país.

De acordo com documentos obtidos pelo EIC, para avaliar estes regimes fiscais, tomar decisões e garantir que os Estados-Membros os cumpram, é necessária uma “cooperação leal” entre os governos. Porque, além disso, estas decisões não são vinculativas: a sua implementação depende unicamente da “boa vontade” dos países. O sucesso do trabalho do grupo baseia-se, portanto, numa abordagem “colaborativa”, numa “pressão pelos pares” e no compromisso político dos governos. A Comissão defende que a “atmosfera de confiança mútua” necessária só pode ser construída com base na confidencialidade das deliberações. “A divulgação de documentos sobre o trabalho preliminar [do grupo] relativo às questões em debate prejudicaria seriamente o processo de tomada de decisão e afetaria previsivelmente a confiança mútua e o intercâmbio honesto entre os Estados-Membros e a Comissão Europeia no futuro”.

TUDO DEVE SER ACESSÍVEL AO PÚBLICO, MAS COM EXCEPÇÕES

De acordo com o regulamento de 2001 sobre esta matéria, “todos os documentos” das instituições europeias devem, “em princípio”, estar acessíveis ao público. Este direito deve ser garantido “tanto quanto possível”. Estes “todos os documentos” incluem tanto os que são detidos pela Comissão Europeia como os que são elaborados ou recebidos por esta “em todos os domínios de atividade da UE”. Não importa se são documentos em papel ou eletrónicos, ou se são registos sonoros, visuais ou audiovisuais, desde que se relacionem com “políticas, atividades e decisões que se inserem no âmbito das competências da instituição”.

Mas quando Martjin Nouwen, professor de Direito Fiscal na Universidade de Leiden (Países Baixos) começou a pedir atas de reuniões, documentos de trabalho e correios eletrónicos que relatavam algumas das avaliações feitas pelo Código de Conduta, recebeu um não por parte da Comissão e de alguns governos. O regulamento regula as exceções que justificam o “em princípio” com o qual o acesso universal à informação comunitária é qualificado. As instituições da UE podem recusar a publicação de um documento se comprometer o interesse público ou a privacidade e a integridade das pessoas. O interesse público significa, por exemplo, a segurança pública, mas também a política financeira, monetária ou económica da UE. Além disso, pode recusar o acesso a um documento se a divulgação comprometer os interesses comerciais das pessoas e das empresas, a menos que haja “um interesse público superior”.

Mas quando o fiscalista holandês pediu à Comissão todos os documentos sobre a forma como os governos estão a cumprir o acordo do Código de Conduta para tornar públicas os “tax rulings” - acordos fiscais vantajosos assinados com as multinacionais -, a instituição respondeu que não tinha “identificado” qualquer email relacionado com esta questão: nem com origem na própria Comissão, nem enviado pelo Conselho ou pelos Estados-Membros. Como é possível, se os governos enviam por email as suas respostas a um questionário previamente enviado pelo Grupo para fazer o acompanhamento? A Comissão explicou que apenas os emails contendo informações “importantes”, definido apenas como informações que “não são efémeras e podem envolver ações ou acompanhamento”, são mantidos e registados em sistemas de gestão de documentos.

Por outras palavras, alguém decidiu que esta informação não era relevante. Quem? De acordo com os documentos a que o EIC teve acesso, são os próprios funcionários que determinam que ficheiros são registados no Ares, o sistema de gestão de documentos da UE, e quais não são. Além disso, desde 1 de Julho de 2015, a rede informática da Comissão tem um sistema automático de eliminação de ficheiros de correio, que elimina todos os documentos seis meses após terem sido criados ou recebidos e que se encontram nas pastas Caixa de entrada e Enviados do programa Outlook da Microsoft. Para evitar a sua destruição, os funcionários movem-nos simplesmente para as suas pastas pessoais ou de rascunho. Escapam, então, ao controlo do sistema Ares; portanto, também estão fora do alcance da Comissão quando um cidadão os pede: é por isso que a instituição diz que não os “identifica”. Quando questionada, a Comissão nem sequer consegue calcular quantos documentos desapareceram nesse limbo informático. Segundo explica a própria instituição, os seus funcionários receberam quase 75 milhões de emails só em outubro.

O EFÉMERO E O TRIVIAL

O resultado deste sistema de registo é que, por exemplo, a Comissão diz que não tem na sua posse os emails que os Estados-Membros enviaram ao Código de Conduta explicando se estavam ou não a publicar as referidas decisões fiscais. Estes acordos controversos foram revelados em 2014, graças ao Luxleaks, a investigação jornalística que apresentou os acordos assinados pelo Luxemburgo e 343 grandes empresas, quando Jean-Claude Juncker, então recentemente nomeado Presidente da Comissão, era ministro das Finanças e primeiro-ministro do Grão-Ducado.

Ora, de acordo com as explicações dadas pela Comissão a Martjin Nouwen, alguém considerou que estas mensagens de correio eletrónico eram “pouco importantes” e ou as apagou ou foram automaticamente eliminadas após seis meses. Como é que um funcionário sabe se um documento é relevante ou não? De acordo com o guia fornecido aos trabalhadores quando o sistema de eliminação automática foi instalado, uma informação só é “trivial e efémera” se ao ser apagada “não tiver um efeito jurídico ou administrativo negativo para a Comissão”. Por oposição, um documento que exija ação ou acompanhamento ou que envolva a responsabilidade da instituição é importante. Também mostra que o próprio guia considera “impossível” elaborar uma lista definitiva ou tipologia de documentos “com regras claras e inequívocas” do que deve ser ou não registado. A questão de saber se um documento deve ser mantido, acrescenta, “só pode ser respondida analisando o contexto”.

Em todo o caso, fala dos rascunhos e emails com trocas informais de pontos de vista entre colegas como um exemplo do que deve ser eliminado. Em vez disso, considera que documentos informais, incluindo emails, que “confirmam situações ou eventos, justificam decisões ou explicam o desenvolvimento de ações oficiais” são dignos de ser mantidos. Obviamente, as mensagens de correio eletrónico enviadas pelos governos para o Código de Conduta que explicam o seu grau de cumprimento de um acordo do próprio grupo não são nem um rascunho nem uma troca de opiniões informal entre colegas que possam ser apagadas. Pelo contrário, não há forma de impedir que um funcionário mova documentos oficiais confidenciais para as suas pastas pessoais que estão fora do sistema de gestão Ares e, por conseguinte, fora do controlo do Parlamento Europeu ou do público em geral.

SUÉCIA E ÁUSTRIA PEDEM MAIS SIGILO

Mas não é apenas a Comissão que limita a transparência do Código de Conduta. Os Estados-Membros também o fazem. Foi também o caso com os “tax rulings”. A Suécia e a Áustria solicitaram expressamente à Comissão que recusasse a divulgação das suas respostas ao questionário, incluindo as que possam constar das atas das reuniões em que o assunto foi discutido. Os argumentos de ambos os países foram semelhantes. Segundo o governo austríaco, as informações solicitadas continham documentos internos que revelam “pormenores do sistema financeiro [do país]” cuja divulgação iria prejudicar a tomada de decisões no seio do grupo, do Conselho e da Comissão. A Suécia afirmou igualmente que os procedimentos internos descritos nos documentos eram de uso exclusivo dos funcionários da autoridade tributária nacional.

Mas o governo de Estocolmo vai mais longe e solicita à Comissão que deixe de incluir as posições de cada um dos Estados-Membros nas atas das reuniões do Código de Conduta, especialmente se se referirem a questões que ainda estão em discussão e que ainda não foram finalizadas. A Comissão concordou e até argumentou que a divulgação de discussões preliminares no Código de Conduta sobre o comportamento da Áustria em matéria de decisões fiscais poderia afetar negativamente a vontade do seu governo de discutir “questões sensíveis” ou de apresentar no futuro um relatório sobre práticas potencialmente prejudiciais à concorrência fiscal na UE. Também não verificou que existiria um “interesse público superior” que justificasse a divulgação do grau de transparência da Áustria e da Suécia em matéria de decisões fiscais.

AS SMS NÃO SÃO IMPORTANTES

O mesmo é válido para as SMS. Em teoria, são tratadas da mesma forma que os emails. Se contiverem informações importantes, devem ser copiadas para um email ou registadas no Ares. Mas isto nem sempre é feito de acordo com as regras. Por exemplo, um jornalista solicitou recentemente a publicação das mensagens de texto entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, Albert Bourla. De acordo com o The New York Times, os dois trocaram chamadas e mensagens de texto durante mais de um mês antes de chegarem a um acordo sobre a vacina contra o coronavírus.

No entanto, a Comissão recusou o acesso a esses ficheiros: “Uma mensagem de texto ou outras mensagens instantâneas são, pela sua natureza, documentos de curta duração que não contêm, em princípio, informações importantes sobre questões relacionadas com as políticas, atividades e decisões da Comissão”, afirmou o secretário-geral, Ilze Juhansone, da Lituânia. Por conseguinte, acrescentou que o sistema de gestão de documentos da Comissão “excluiria, em princípio, as mensagens instantâneas”.

Alexander Thiele, Professor de Direito Europeu e Constitucional na Business & Law School de Berlim, discorda: “Se as áreas centrais da comunicação política, e não puramente privada, ocorrerem através de SMS e outros serviços de mensagens, não podem ser consideradas como “efémeras” em todas as áreas”. “Logo”, afirma à “Der Spiegel”, “negar a relevância política ou jurídica das mensagens de texto é mais do que questionável do ponto de vista jurídico”.

Mas, tendo em conta os critérios expostos pelas instituições europeias, se a Comissão quiser trabalhar em segredo, tudo o que tem de fazer é comunicar através de WhatsApp em vez de utilizar o correio eletrónico.

ESFORÇOS DE TRANSPARÊNCIA

Nos últimos anos, porém, o Código de Conduta tem feito um esforço para se tornar mais transparente. As críticas do Parlamento Europeu, dos parlamentos nacionais e dos meios de comunicação social obrigaram a uma maior abertura na confidencialidade que o grupo considera inerente à natureza política das suas deliberações. Assim, publica alguns documentos internos na sua página de internet, publica um relatório de atividade a cada seis meses, bem como avaliações finais de regimes fiscais prejudiciais. Em Abril de 2018, os Países Baixos apresentaram uma proposta destinada a aumentar ainda mais a transparência do Código de Conduta, na qual propôs apresentar relatórios sobre as reuniões e publicar mais documentos na página do grupo. Mas os restantes Estados-Membros não apoiaram a iniciativa holandesa.

Além disso, ao tentar abrir-se à opinião pública, o Código de Conduta restringiu a utilização de um instrumento básico de transparência: as atas das suas reuniões. Aquelas que o infoLibre e os restantes meios que intergram o EIC consultaram eram mais ou menos extensas e mostram as posições dos Estados-Membros sobre cada uma das questões fiscais em discussão, incluindo as mais sensíveis. Foi quase possível seguir as conversas realizadas em cada reunião. Mas, nos últimos anos, tornaram-se mais curtas, apenas algumas notas com declarações gerais dos pontos da ordem do dia: um Estado-Membro “resume as principais caraterísticas do novo regime”, outra delegação “atualiza” uma reunião, a Comissão “resume as respostas recebidas”. Mas sem incluir quaisquer detalhes sobre o conteúdo discutido. Por outras palavras, se a ata for publicada, não permitirá saber o que foi discutido no grupo (Expresso, BEGOÑA P. RAMÍREZ (“INFOLIBRE”) / EIC — EUROPEAN INVESTIGATIVE COLLABORATIONS)

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