domingo, setembro 20, 2020

Engenharia nacional não está preparada para as grandes obras

“A engenharia nacional, infelizmente, não está preparada, e há que reconhecê-lo como uma fragilidade nacional”, diz ao Expresso o bastonário da Ordem dos Engenheiros sobre as grandes obras públicas a financiar no próximo ciclo de fundos europeus. Carlos Mineiro Alves recorda como Portugal perdeu a capacidade instalada na construção civil desde a crise de 2009. Das duas dezenas de grandes empresas nacionais restam hoje “duas ou três”. Apesar de existirem exceções, “a nossa escala não tem dimensão para competir com as grandes multinacionais” e “apenas 20% das empreitadas são adjudicadas a empresas nacionais”.
Qual a solução?
“Um planeamento credível e conhecido atempadamente permitirá às empresas saberem exatamente com o que vão contar e dimensionarem-se ou fazer parcerias para concorrer às oportunidades”, responde o bastonário dos engenheiros. O problema é que “o próprio Estado se deixou enfraquecer” e não tem hoje capacidade instalada, lamenta Mineiro Aires. “Foram décadas de fatal distração em relação ao papel dos engenheiros no planeamento e condução dos grandes investimentos, secundada pela desqualificação salarial, que induziu ao desinteresse dos jovens nestas áreas, e hoje não existe mão de obra em Portugal”.

E AGORA?
Em contagem decrescente para o ano de 2021, que marca o arranque do novo ciclo de fundos europeus, o Expresso questionou os representantes dos engenheiros, projetistas e construtores nacionais se estão prontos para executar, no terreno, as grandes infraestruturas públicas que o Governo promete fazer no papel, quer no âmbito do próximo quadro comunitário Portugal 2030, quer no âmbito do Plano de Recuperação a submeter à Comissão Europeia já a 15 de outubro.
Estão preparados para apoiar Portugal no esforço de execução de tal volume de obras? Já conhecem as grandes obras que aí vêm? Como se estão a preparar para os grandes concursos de contratação pública que aí vêm? E que dificuldades anteveem e que medidas exigem para que não se repitam os atrasos que podem levar à perda de fundos europeus?
É que os próximos anos serão de uma exigência sem precedentes na execução dos fundos comunitários. O país terá de executar os fundos que restam do atual quadro comunitário Portugal 2020 até ao final de 2023 (quase €15 mil milhões, incluindo o reforço atribuído por Bruxelas após a pandemia), executar os novos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência até 2026 (cerca de €13 mil milhões) e ainda executar os fundos do futuro quadro comunitário Portugal 2030 (cerca de €30 milhões). Tudo somado, o país terá de duplicar o habitual ritmo de investimento para executar este pacote de €58 mil milhões. Só assim conseguirá executar uma média superior a €6 mil milhões de fundos europeus por ano.
CONSTRUÇÃO E PROJETISTAS À ESPERA
Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN), diz que o sector “não conhece essas grandes obras, porque ainda não há, sequer, um adequado planeamento”. E lembra o atraso do Programa Nacional de Investimentos 2030.
“As empresas estão a preparar-se com dificuldade, porque, para além de enfrentarem grandes concorrentes internacionais, não dispõem de uma adequada calendarização dos investimentos a executar”, alerta Reis Campos.
“A perda de fundos só ocorrerá se houver atrasos e indefinição em torno dos investimentos planeados”, diz o representante da construção civil, lembrando que “o sector sempre foi capaz de dar resposta aos desafios nacionais, independentemente do contexto ou da complexidade das obras”. Desde que haja planeamento, “dificilmente haverá motivos para que os projetos não se concluam atempadamente”.
Reclamação comum a todos os protagonistas é a questão do Código dos Contratos Públicos, que vai na sua 12ª alteração
Jorge Meneses, o presidente da Associação Portuguesa de Projectistas e Consultores (APPC), alerta para que “a realidade vai obrigar o Estado português a comprometer-se com um programa de investimentos amplo e a um razoável prazo, da ordem dos 10 anos”. E que a contratação não pode continuar a ser feita pelo mais baixo preço, desprezando a experiência e qualificação das empresas e equipas técnicas propostas. “Importa inverter esta perversa lógica”, avisa. “Estamos a tempo, mas é preciso que esta lógica mude, para salvaguardar a participação da engenharia portuguesa.”
No caso das obras ferroviá­rias, Tomás Leiria Pinto, presidente da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento dos Sistemas Integrados de Transporte (ADFERSIT), acrescenta ser indispensável “a criação de condições que propiciem concorrerem um conjunto relativamente alargado de organismos públicos e privados”. Seria importante que o Governo “desenhasse um especial ecossistema regulatório e contratual compatível e adaptado a esta situação” de grande afluxo de fundos europeus, “e que deverá assumir uma natureza excecional”.
Com as empresas privadas muito descapitalizadas de ­meios devido ao fraco volume de concursos de ferrovia lançados na última década, Leiria Pinto acredita que a Infraestruturas de Portugal (IP) poderá “enfrentar a escassa oferta, particularmente na área de projeto da engenharia ferro­viária. A não ser colmatada a tempo, poderá comprometer as metas e os calendários de execução das obras”.
Reclamação comum a todos os protagonistas é a questão do Código dos Contratos Públicos, que vai na sua 12ª alteração. “Na verdade, tem sido um documento indutor de quezília e de ‘dumping salarial’ e que não serve os interesses das partes”, critica Mineiro Aires (Expresso, texto dos jornalistas HELDER C. MARTINS e JOANA MATEUS)

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