domingo, setembro 20, 2020

Covid reacende chama da independência escocesa

Seis anos depois de recusarem a secessão em referendo, 55% votariam “sim” a um novo país. “Sendo independente, a Escócia passaria a poder gerir os seus assuntos como bem entendesse.” Vestido com um fato de pesca, Jack Dalrymple acaba de sair do rio que atravessa a cidade. Estamos em Berwick-upon-Tweed, a poucos passos da fronteira escocesa. Esta cidade de 10 mil habitantes mudou de nacionalidade 13 vezes ao longo da História. Um verdadeiro símbolo. Aqui, os escoceses trabalham em Inglaterra e os ingleses vivem na Escócia. “O aumento do ‘sim’ [à independência] nas sondagens não me surpreende”, afirma o jovem, de 21 anos. “Se houvesse referendo, penso que os meus amigos votariam a favor, mesmo que haja aqui algum medo.” A 18 de setembro de 2014, 55% dos escoceses votaram pela permanência no Reino Unido. Seis anos depois, as sondagens mostram uma inversão da votação: 55% pela independência, segundo um estudo recente do Instituto Panelbase. É o caso de Andrew e da sua irmã Barbara, de 24 e 27 anos, que gerem um café em Berwick mas vivem em Gordon, uma aldeia escocesa. “Votaria afirmativamente”, diz Barbara. “Durante a pandemia ficou claro que o Reino estava tudo menos ‘Unido’.”

As relações entre Inglaterra e Escócia, degradadas pelo interminável ‘Brexit’ (62% dos escoceses votaram contra, mas foram arrastados pelo resultado global no Reino Unido), agravaram-se desde março, com a pandemia. Quarentena, desconfinamento, máscaras nas lojas... desde maio a chefe do executivo escocês diverge da política do Governo britânico, acusado de não ter levado a ameaça a sério. O último atrito tem a ver com o uso de máscara nas escolas. Embora Boris Johnson tenha anunciado, no início de setembro, que não era obrigatória, Nicola Sturgeon impôs a sua utilização em todos os locais desde agosto.
O Governo britânico anunciou este mês que a máscara não era obrigatória na escola. A Escócia exige-a em todos os locais desde agosto
Os seus comunicados diá­rios, considerados transparentes e factuais, revelaram a diferença entre ela e Johnson. “Embora a sua abordagem à crise tenha sido muito melhor, a Escócia não conseguiu resultados muito melhores. Nos lares de idosos foi um verdadeiro desastre [46% das mortes relacionadas com covid-19]”, relata Assa Samaké-Roman, jornalista freelancer em Edimburgo. Ao desafiar Westminster, a muito popular primeira-ministra rea­cendeu a chama da independência, “ainda que com uma mão-cheia de nada”, continua Roman. “É interessante que poucos responsáveis políticos falem disso. Não há campanha, não há debate porque Stur­geon, pró-independência, continua concentrada na pandemia. E as sondagens mostram que tem o apoio dos escoceses”, afirma Nicola McEwen, especia­lista em política escocesa na Universidade de Edimburgo.
A VARIÁVEL EUROPEIA
Em Londres, o aumento do apoio à independência causa preocupações ao mais alto nível. Tanto que, a 23 de julho, Johnson planeou uma visita oficial de última hora ao norte da Escócia. Uma incursão para defender “os pontos principais do bloco britânico”, de que Sturgeon só terá tido conhecimento na véspera, através da imprensa, o que ilustra a frieza das relações entre os dois países. McEwen pensa que “55% não é muito preocupante para o círculo próximo do primeiro-ministro”, já que “os tories [Partido Conservador, no poder] até beneficiam, uma vez que se opõem à independência da Escócia e representam as forças pró-união”.
E a união continua a fazer a força? Na Escócia, quem votou contra a saída da UE tem dúvidas. “No ano passado houve um aumento do apoio à independência em comparação com 2014. Isso deve-se, em parte, às difíceis negociações do ‘Brexit’”, afirma a investigadora. A ameaça da saída sem acordo, em parte devido a um controverso projeto aprovado no Parlamento britânico no início da semana (ver texto ao lado), leva água ao moinho dos separatistas. As regras do mercado interno sobrepor-se-iam a algumas competências de Bruxelas e minariam a descentralização dos poderes de Londres para Edimburgo, Cardiff e Belfast.
“A forma como somos ignorados pelo Governo tornou-se muito clara”, afirma Morag Williamson, do movimento Yes for EU. “Se este projeto não é antidemocrático, não sei o que o seria. A própria primeira-ministra escocesa descreveu-o como ataque frontal à descentralização.”
O Governo escocês só pode convocar um segundo referendo com autorização de Londres. Boris Johnson tem rejeitado esse pedido
“As pessoas começam a perceber que estariam melhor sem o Reino Unido”, afirma Ross, 38 anos. Nacionalista convicto, vive em Edimburgo e fez campanha pelo ‘sim’ em 2014. “Não acreditei na altura, mas agora estou convicto de que podemos ganhar!” Alguns amigos começaram a mudar de ideias. “O ‘Brexit’, a covid-19 e a impopularidade de Johnson foram as razões da mudança. Dizem-nos que o Reino Unido é forte e poderoso, mas já não é. Com a Inglaterra neste estado, o futuro é tão incerto que o risco de independência se torna menor”, frisa o ativista, também membro do Yes for EU. A jornalista Assa Samaké-Roman recorda: “Em 2014, o ‘sim’ perdeu por pouco e os unionistas disseram que a questão ficara resolvida nas urnas. A Escócia tem passado um mau bocado.”
Para contrabalançar a ascensão dos separatistas, os unionistas organizam-se nas redes sociais e tentam passar a ideia de que se a Escócia se tornasse independente entraria em recessão. “A maioria das análises conclui que haverá consequências económicas significativas a curto e médio prazo. Mas resumir tudo aos custos da decisão é uma estratégia arriscada, como vimos no referendo do ‘Brexit’”, diz McEwen. Samaké-Roman pensa que para a maioria dos separatistas a questão é outra. “Querem ter uma palavra a dizer nas decisões políticas que afetam a Escócia, e que agora não têm.”
Em Berwick, sentadas num banco frente ao mar, uma avó e uma neta inglesas apanham sol. “Não censuro os jovens por quererem sair, isto é uma confusão”, admite a mais velha. Conclui: “Infelizmente, os britânicos ainda pensam que estamos num império maravilhoso.” Para o inglês Farrear, de 72 anos, “a independência seria boa, porque a Escócia é um país diferente”. Resta saber se as sondagens serão suficientes para convencer Johnson a permitir um segundo referendo à independência, que Sturgeon não pode convocar sem autorização de Londres. Até agora, o primeiro-ministro tem rejeitado esse pedido (Expresso)

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