quarta-feira, março 13, 2013

Reportagem: "Os portugueses no país de Chávez"

Segundo as jornalistas do Correio da Manhã, Isabel Faria, Vanessa Fidalgo e Marta Martins Silva, "a salva de tiros que ecoou de hora a hora em Caracas no dia seguinte à morte de Hugo Chávez foi apenas um dos sinais da comoção na Venezuela. "É necessário respeitar. Não sei dizer se há mais gente contra ou a favor de uma mudança, mas sei que não vai ser fácil", diz Liliana Martins, 45 anos, administrativa no Centro Luso local. Filha de portugueses, casada com um operador de câmbios e mãe de uma menina em idade escolar, Liliana encara o futuro após a morte de ‘El Comandante’ como uma grande incógnita. "Vamos ver. Neste momento, sentimos na pele a desvalorização da moeda e o aumento do custo de vida." A comunidade de cerca de 500 mil portugueses, na sua maioria empresários de hotelaria, construção e panificação, acredita que o país já entrou na era ‘pós-Chávez’. A morte do líder carismático, que esteve 14 anos no poder e protagonizou o ‘socialismo do século XXI’, foi anunciada na terça-feira por Nicolás Maduro. O vice-presidente, de 50 anos, é um sério candidato à continuidade do regime, mas até às eleições, agendadas para daqui a um mês, há a promessa de uma campanha dura. A oposição de Henrique Capriles, derrotado nas presidenciais de outubro, ganha cada vez mais peso. "Neste momento, a situação está tranquila", assegura António Fiúza, 62 anos, empresário de carpintaria, a falar do terraço do hotel onde se reúne a comunidade para as tertúlias semanais. "As pessoas estão preocupadas, mas continuam a trabalhar", diz. Crítico do populismo de Chávez, que acusa de ter dado comida e dinheiro a quem seguia os seus comícios, o português de Espinho acredita que o país terá eleições livres. "A oposição está atenta e a grande maioria, que são os pobres, quer mudança". Chávez morreu aos 58 anos vítima de cancro e deixou um legado difícil de perpetuar, num país de 29 milhões de pessoas, onde a taxa de analfabetismo baixou dos 20 por cento (registados em 1999) para os 4% atuais, mas onde a criminalidade mais que duplicou (de 20% em 1999 para 45% em 2012)."Há dois grandes blocos na sociedade venezuelana, os que trabalham e os que não trabalham. Difícil é unir os dois", afirma Macário Abreu, 63 anos de idade e 51 de vida na Venezuela. Dono de uma padaria na capital, serve de porta-voz quando diz que a "insegurança pessoal e jurídica" é o grande fantasma para quem gere negócios num país onde a corrupção faz lei."Instalou-se um clima de grande insegurança na Venezuela", acrescenta António Gonçalves, 57 anos, que há quatro decidiu confiar a mulher e as três filhas à ilha da Madeira, de onde saiu com apenas oito meses. "Os raptos são uma indústria aqui. Consta que existem três grupos profissionais e outros mais desorganizados, que importaram esta moda da Colômbia. Aqui há notícias de portugueses raptados todas as semanas", afirma o empresário da indústria hoteleira.
FILAS DE ESPERA
A política de Hugo Chávez, autointitulado líder da revolução bolivariana, divide opiniões entre os portugueses. Apesar de todos criticarem as expropriações de terrenos agrícolas e empresas e os apoios que "fomentam a delinquência", elogiam o acesso aos cuidados primários de saúde e escolaridade e as reformas para os idosos instituídos pelo antigo presidente. Rui Ernesto Urbano, diretor do jornal ‘Dimensão Lusitana’, reside na Venezuela há 36 anos. Da era de Hugo Chávez salienta que áreas como "a assistência médica ou a educação talvez tivessem ficado melhor. Foram criadas as chamadas Universidades Bolivarianas, houve mais desenvolvimento. Mas continuaram a existir muitos pobres e mantiveram-se os graves problemas de abastecimento", nota ao recordar "as filas de espera junto aos mercados" e as padarias sem farinha para produzirem. Aos 74 anos, também responsável por um programa de rádio e uma emissão televisiva para a comunidade, diz que, ainda assim, "é fácil" ser jornalista desde que "nas emissões se use o castelhano". António Abreu Xavier, 55 anos, nasceu em Caracas, na antiga maternidade pública, mas é em Portugal que trabalha como historiador. Acérrimo defensor de ‘El Presidente’, acredita que a democracia na Venezuela mudou: "Há uma participação mais direta, presencial, muito mais ao lado das decisões políticas." E elogia "o legado de Chávez na economia e no uso do petróleo", que diz ser "hoje fonte fundamental para distribuição de riqueza pelo país. Há um certo bem-estar que antes não existia. O senhor comandante fez um trabalho de mentalização do que é ser venezuelano primeiro e latino depois. A história vai reconhecer esse papel. Temos de lembrar-nos que o Comité da Amizade Luso-Venezuelana nasce no seu governo". O historiador nota que "a comunidade está tranquila porque é aceite. A primeira geração de portugueses na Venezuela não fala de política". No entanto, nos últimos anos algo mudou. José Ribeiro, 65 anos, voltou a Portugal em 2009 para fugir do ‘chavismo’. "Assisti a tudo, desde que tomou posse, em 1999, até me vir embora. Mudou muita coisa no país e no processo político, em particular. De democracia passou para uma ditadura", relata o empresário de hotelaria. As filhas, ambas engenheiras, e a mulher, venezuelana, votaram contra Chávez. "Eu, que não votei, fiquei catalogado, pois uma casa com três votos contra fica marcada", nota. Com as filhas emigradas nos EUA e na Espanha, José Ribeiro, insatisfeito com um país que "por decreto, obrigava a aumentos salariais anuais de 20 por cento", voltou a Abrantes. "Não havia nada a fazer. O processo monetário foi piorando e o dinheiro não vale nada." Em 2010, Francisco Alves, 62 anos, emigrante português na Venezuela, foi notícia quando fez greve de fome para revogar a decisão de confiscar a sua propriedade. Conseguiu uma resposta positiva devido à morte, "uma semana antes, de Franklin Brito – venezuelano que fez um protesto idêntico – e porque iria haver eleições para o parlamento". Com três filhos na Venezuela e dois em Portugal, o presidente da Sociedade Metalúrgica Civil Somecil, em Mozanga, elogia a política social de Chávez, mas garante que "do ponto de vista da economia, foi um desastre." Por outro lado, nota, conseguiu "unir os países da América Latina a uma só voz e melhorar as relações comerciais entre eles".
UNIÃO DO POVO
Com as exportações portuguesas de bens e serviços para a Venezuela a aumentarem 65,2 por cento em 2012, face ao ano anterior, num total de 522,421 milhões de euros, segundo dados do INE e do Banco de Portugal, os portugueses radicados na Venezuela enxotam a incerteza. O ex-ministro socialista Mário Lino, que negociou os computadores Magalhães, lembra que Hugo Chávez "sempre apoiou as relações comerciais" entre os dois países "e tinha grande respeito pela comunidade portuguesa". Por isso, Francisco da Silva, 47 anos, casado com uma venezuelana e pai duas filhas, mantém um negócio de licores e um hotel no país. Acérrimo defensor de ‘El Comandante’, diz que "Hugo Chávez uniu o povo. Antes de 1999, os pobres eram autênticos escravos. Hoje têm seguro de saúde, estudos e dois dias livres por semana. Deu quatro milhões de casas, transportes, apoio às mães solteiras. O povo não quer voltar atrás". Suguei Miranda nasceu na Venezuela há 28 anos. Trabalha num hotel do grupo português Pestana. Casada com um brasileiro, desistiu de trabalhar nos supermercados dos pais, portugueses, por causa da insegurança. "Tive medo, sobretudo depois de a minha filha nascer e de conhecer pessoas que estiveram sequestradas vários dias", admite. A morte do líder já era esperada e Suguei não se admira com as manifestações dos venezuelanos nas ruas ou a contenção dos portugueses que, na sua maioria, acredita, "preferiam outro regime".
"UM PERÍODO DE GRANDES TRANSFORMAÇÕES"
Hugo Chávez iniciou um percurso marcado por uma grande turbulência, mas que representou um período de grandes transformações. Despertou profundos sentimentos no país, muitos deles conflituantes e, aqui e ali, com episódios de violência. Mas é justo reconhecer-se que a Venezuela se manteve dentro dos parâmetros de uma democracia formal. A revolução bolivariana teve o mérito de despertar para a política milhões de pessoas oriundas de setores sociais mais desfavorecidos, que viviam alheadas do sistema político. Terá sido esse o segredo das vitórias eleitorais de Chávez. Apesar de algum radicalismo aqui e ali, a revolução venezuelana respeitou os limites do jogo democrático e teve um impacto profundo na América Latina. Sublinho o papel moderador que o presidente brasileiro Lula da Silva teve para com Chávez. Em relação a Portugal, Chávez assumiu uma posição de grande abertura, a que não foi alheia a excelente relação pessoal com José Sócrates. Hoje, Portugal e a Venezuela têm relações comerciais fortes e consolidadas, que se vão manter.O desafio da Venezuela será agora o de normalizar o processo revolucionário iniciado por Chávez e integrá-lo num sistema democrático, corrigindo os aspetos mais radicais".