terça-feira, junho 26, 2007

Recomendo: No sofá com o lóbi (1)

O semanário Expresso publicou na sua última edição um interessante artigo que recomendo. Como o acesso aos serviços do "Expresso" estão reservados assinantes, passo a publicar em duas partes, com a devida vénia, o referido texto, da autoria de Micael Pereira. Sinceramente acho que vale a pena ser lido, por aqueles que não o leram na revista "Única":
No Parlamento ninguém admite fazer lóbi, mas alguns deputados vão sussurrando: «Espreite aquele ali.» Um pouco de luz sobre uma palavra cheia de sombras em Portugal.
Mais cedo ou mais tarde, a secretária de Vitalino Canas acabará por sucumbir asfixiada debaixo de um mar de dossiês no estreito gabinete da nova ala da Assembleia da República, reflectindo a vida desdobrada do ex-secretário de Estado desde que saiu do Governo, em 2002, para ser deputado em regime de não exclusividade. A mesa parece tão sobrecarregada como a sua agenda de trabalho. Os convites têm feito fila. Desde que se mudou para os Passos Perdidos, o dirigente socialista tornou-se consultor da Fundação Stanley Ho, criada para gerir o património que salvaguardará o futuro dos filhos mais novos do magnata de Macau, acumulando com a consultoria às fundações Oriente e Aga Khan, à missão Swaminarayan Hindu e ao governo de Cabo Verde, tendo passado também a administrador remunerado da companhia de seguros Sagres (da Fundação Oriente) no final do ano passado, já depois de ter começado a trabalhar como advogado num pequeno escritório em 2004.
Acontece que, além de rei de Macau, Stanley Ho é o grande patrão do jogo em Portugal, com os casinos do grupo Estoril Sol, e é dono da Alta de Lisboa (o maior projecto imobiliário da capital depois do Parque das Nações) e do maior grupo de marinha mercante português. Se Portugal fosse os Estados Unidos, com a clareza anglo-saxónica dos grandes jornais norte-americanos, a palavra seria escrita sem aspas para identificar Vitalino nas colunas de política: eis um «lobista» de Macau. É um exemplo interessante, que remete para o imaginário americano. Em Washington, uma das revelações trazidas a lume no ano passado pelo escândalo Abramoff (um dos maiores lobistas americanos, caído em desgraça depois de uma denúncia de um dos seus clientes, uma tribo índia de Louisiana) foi precisamente o facto de as redes paralelas de lóbi passarem por fundações. O que, para o caso, não prova nada. Mas pode um político com assento no Parlamento e lugar no órgão de cúpula do partido no poder - do qual é, aliás, porta-voz - acumular essas funções com o cargo de consultor na fundação pessoal de um dos maiores investidores em Portugal sem ser declarado como um potencial fazedor de lóbi? Não haverá o risco hipotético de ele, com as suas ligações pessoais e políticas, mover influências em defesa dos interesses de Stanley Ho? A resposta é dada pelo próprio Vitalino Canas: «Faço apenas consultoria jurídica. Defendo a transparência e separo muito bem as águas da minha actividade como deputado das minhas outras actividades». E a dúvida não será legítima?
Frank Mankiewicz, um famoso lobista americano da era gloriosa do Presidente Reagan e da venda massiva de armamento ao Terceiro Mundo, explicava com uma simplicidade desconcertante à revista «Time», em 1986, no que é que consiste essencialmente a actividade de lóbi. «Eu digo o que é que nós estamos a vender: o telefonema de volta.» Ou seja: pura influência. Por isso, nos Estados Unidos, os lobistas são caracterizados pela imprensa como «influence peddlers», traficantes de influência. São facilitadores, abrem caminho. Conhecem as pessoas certas e fazem por se dar bem com elas. Normalmente, preferem apresentar-se como advogados, especialistas em relações institucionais, consultores de relações públicas, mas muitos dos mais de 30 mil «influence peddlers» do congresso norte-americano até usam o termo mais directo: lobistas, simplesmente.
Em Portugal, onde o recato faz parte do ADN da política nacional, as ligações profissionais de deputados aos grandes interesses económicos, que seriam consideradas facilmente como actividade de «peddling» pelos analistas mais distraídos da vida política em Washington, estão a alimentar os argumentos do lóbi profissional que nos últimos meses tem feito pressão na Assembleia da República para que esta actividade, já há muito legalizada e tão sedimentada na América e nos países do norte da Europa, seja também regulamentada por cá, permitindo que haja uma lei a dizer quem pode e não pode exercê-la e - antes de tudo - a explicar exactamente do que se está a falar quando vem à baila essa palavra rodeada de nevoeiro. Isto é: qualquer serviço pago que resulte numa pressão, directa ou indirecta, exercida sobre o poder legislativo ou executivo para aprovar, alterar ou reprovar diplomas. Muitas vezes trata-se de coisas pequeninas, como vírgulas e percentagens, mas com implicações de milhões de euros e cujos argumentos de defesa ou de ataque são vendidos consoante a sua eficácia. Com campanhas nos «media», promoção de manifestações, disseminação estratégica de contra-informação ou almoços de esclarecimento com quem importa: os decisores políticos.
Não deixa de ser constrangedor que o lóbi dos lobistas - passe a redundância - a favor de um lóbi em Portugal como actividade liberal esteja a ser feito, na verdade, apenas pelo único lobista português, Joaquim Martins Lampreia, que se assume assim no Parlamento Europeu, num universo de 4800 concorrentes de outros países acreditados em Bruxelas. Lampreia deixou no gabinete do presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, uma «declaração de princípios éticos pelos quais se regem os lobistas», acompanhado das disposições comunitárias que regulam os grupos de interesse em Bruxelas, apelando à sensibilidade do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros socialista e tentando abrir uma brecha para uma futura regulamentação, numa altura em que também a agência de comunicação de Luís Paixão Martins, LPM, espera uma resposta ao seu pedido de livre acesso aos corredores da Assembleia («apenas para termos acesso directo à informação e podermos vendê-la aos nossos clientes, não para fazer lóbi», esclarece Luís Paixão Martins, apesar de quase ninguém acreditar num alcance tão modesto). As hipóteses de sucesso quer de Lampreia, que representa em Portugal a Rede Europeia de Lobistas (uma pequena associação), quer de Luís Paixão Martins parecem, no entanto, muito reduzidas. O assunto não suscita entusiasmo no hemiciclo (o primeiro pedido de entrevista do «Expresso» ao gabinete de Jaime Gama foi feito há dois meses e nem sequer obteve resposta). «Um dos motivos para que a regulamentação ainda não tenha avançado é o facto de haver deputados-lobistas», diz Lampreia. «E eles não desejam concorrência». Luís Paixão Martins prefere não ser directo nas suas fracas expectativas. «Não me quero chatear com o Parlamento. Fiz questão de não abordar pessoalmente nenhum deputado, apesar de conhecer muitos. Não quero ser acusado de estar a fazer lóbi», ironiza. A espera indefinida e vaga por um futuro mais claro e transparente não impedirá a enchente esperada em Lisboa a partir do próximo mês de lobistas profissionais de todo o mundo, e que só arrumarão as malas quando a presidência portuguesa da União Europeia terminar, sem que no fim muita gente venha a perceber quem eles são e o que vieram exactamente cá fazer. E quem quer realmente saber? (
continua)

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