terça-feira, janeiro 07, 2020

Bancos assumem descontos para conseguirem recuperar cerca de um terço dos seus créditos

Só num ano, e apenas com quatro grupos, o Novo Banco, o BCP e a CGD (com uma ajuda do Crédito Agrícola e do BPI) aceitaram perder quase €300 milhões para recuperarem entre 20% a 30% dos financiamentos concedidos. Os bancos justificam-se com o argumento de que, assim, evitam perdas maiores. Só em 2019, e apenas com quatro grupos empresariais, os bancos portugueses perdoaram €277 milhões em créditos anterior­mente concedidos que já não vão receber. Este montante representa mais de dois terços do total financiado pelas instituições. Em 2020 haverá seguramente mais perdões para contabilizar. Os exemplos seriam muito mais dos que aqui se apresentam (texto em baixo), mas os bancos argumentam que as perdas se justificam e que se evita um mal maior. Entre a viabilidade e a recuperação destes grupos, a reestruturação de dívidas para evitar o incumprimento e a última fase desejada (a falência), os bancos medem as consequências. Mas nunca, como agora, se falou tanto de perdões. E não se trata de pequenos perdões, são perdões de milhões para que os bancos possam recuperar entre 20% a 30% das dívidas de grupos conhecidos e que, de uma forma ou de outra, já foram estrelas da companhia, ou se preparavam para o ser. Nenhum dos casos é igual, como se pode concluir, mas todos têm um facto em comum: os bancos perderam dinheiro.

Entre as empresas perdoadas pela banca nesta contabilização estão a Malo Clinic, a Varandas de Sousa ­(maior produtor nacional de cogumelos), a SIVA, de João Pereira Coutinho (todas decorrentes de processo especial de revitalização — PER), mas também reestruturações de dívida como as da SAD do Sporting e do grupo Global Media, que detém títulos de media como “DN”, “JN” e TSF. 
Como os bancos justificam
O que faz com que os bancos optem nuns casos pelo perdão e pela viabilidade das empresas, noutros pela venda de carteiras com descontos (haircut) generosos, noutros pela rees­truturação de dívidas ou, por fim, pela sua derrocada? Nos dois primeiros casos, querem limpar do seu balanço o que pesa: imparidades e provisões que comem capital e os obrigam a espelhar nas contas a toxicidade das suas carteiras. No terceiro caso, o da reestruturação, o objetivo é flexibilizar as condições dos financiamentos para evitar o incumprimento das empresas visadas. A pior das hipóteses é mesmo deixar a empresa ir para a insolvência, já que não há salvaguarda da atividade nem dos postos de trabalho. Em todos os casos há uma análise a ser feita pelos bancos: a morosidade dos processos e o tamanho da perda e ainda o capital que eles têm para assumir essa perda (caso no passado ela ainda não tenha sido reconhecida).
“As decisões são tomadas tendo em consideração as especificidades de cada situação em concreto, o que compreende, entre outros aspetos, a situação económico-financeira da pessoa singular ou coletiva, as garantias reais e pessoais, a perspetiva de graduação dos créditos que o banco detém, o tempo estimado de recuperação e a existência ou não de dolo ou má fé, e, ponderados os diversos aspetos, toma-se a decisão tendo por base a maximização do valor a recuperar ”, esclarece o BCP.
O banco liderado por Miguel Maya sublinha que “a decisão entre o PER ou a insolvência tem como base de análise e decisão a opção que permite perspetivar uma menor perda esperada”. 
O Novo Banco elenca uma série de passos que conduzem a diferentes decisões, desde logo a recuperação pura e dura das empresas em incumprimento com alargamento de prazos, venda de ativos, reforço de garantias, onde a gestão se mantém no dono da empresa, até situações em que a estrutura empresarial muda de mãos, ao mesmo tempo que a venda de créditos e ativos pode ser feita a terceiros, o que “implica normalmente descontos elevados”. O objetivo é “recuperar a empresa” em ambas as situações.
Num artigo de opinião publicado no Expresso em novembro, António Ramalho afirmava que os perdões de dívida ou de juros e as vendas a desconto são feitos pelos bancos porque “a função da banca será sempre, prioritariamente, a proteção da poupança, e como tal a melhor recuperação possível, por vezes a menos má”. Remata que “para o passado ficará o perdão de parte da dívida” e “para o futuro ficará a preservação da empresa e da dívida remanescente”.
Em resposta às questões agora colocadas pelo Expresso, o banco assume que quando vende carteiras de crédito a fundos compradores “o futuro da empresa torna-se uma incógnita”. Um expediente que tem sido muito usado pelo banco liderado por António Ramalho através de grandes carteiras de crédito e ativos em bloco. Recorde-se que a instituição pode ir ao Fundo de Resolução buscar mais €1,3 mil milhões, depois de descontados os €600 milhões estimados para 2020. Já o recurso a meios judiciais ou negociais para recuperação de créditos “é determinado pelo caso concreto”, acrescentando que “o facto de as empresas portuguesas terem muitos créditos garantidos por avales incentiva ao uso dos meios judiciais”, isto apesar da morosidade da justiça.
“A Caixa tem vindo a privilegiar, na sua atividade de recuperação de créditos, a recuperação ou revitalização dos ativos, sempre que tal se afigura a opção que maior valor cria, evitando situações que acabem por gerar insolvências”, indica o banco público.
Os créditos de milhões que voaram dos bancos em 2019
Há empresas que para crescer precisam de financiamento bancário e que, para sobreviver, necessitaram do auxílio dos bancos. A aceitação do desconto é justificada com o receio de perdas mais avultadas com insolvências desordenadas e com impacto no mercado de trabalho
Malo Clinic 
Perdões até 90%
A expansão internacional foi um dos grandes motivos para a deterioração das contas da Malo Clinic, nome herdado do fundador, Paulo Maló, que chegou a 2019 com uma dívida em torno de €70 milhões. O Novo Banco, principal credor da empresa de prestação de cuidados dentários, executou a empresa. Não recebia juros desde junho de 2018 e já registava incumprimento no reembolso de capital. Além disso, lançou um processo de venda. O comprador foi a gestora de fundos especializada em recuperações de empresas (private equity) Atena Equity Partners, e, no âmbito dessa aquisição, foi pedido um processo especial de revitalização (PER), em que, sob administração judicial, a empresa tentaria um acordo com os credores. Conseguiu-o.
Para chegar ao entendimento, o Novo Banco teve de ter uma palavra determinante. Isto porque era ele o principal credor, com créditos reconhecidos de €56 milhões sobre a empresa com presença na China, EUA, Espanha, Reino Unido, Polónia, Japão e Austrália. Nesse plano, a instituição liderada por António Ramalho aceitou perdas nos contratos de financiamento. De uma dívida total de €71 milhões, os credores aceitaram que só teria de devolver €27 milhões. O banco só irá receber cerca de metade da sua dívida, perdendo €25 milhões.
Também o grupo Caixa Geral de Depósitos (CGD), através do macaense Banco Nacional Ultramarino, teve de aceitar que não iria receber a sua dívida, ainda que, no ano passado, já tenha tentado executar a sociedade com presença em Macau. Segundo noticiado, dos €6,9 milhões reconhecidos, apenas irá receber cerca de €690 mil. Aos credores comuns, como esta instituição, foi aplicada uma perda de 90% dos seus créditos.
Ao “Jornal de Negócios”, o Novo Banco justificou a aceitação por ­apoiar “soluções que preservem os postos de trabalho e a atividade de empresas em processo de recuperação”.
No caso da Malo Clinic, a nova dona, a Atena, tinha de fazer um saneamento. Encerrou clínicas em Portugal e anunciou um investimento de €4 milhões para a empresa dar a volta. A marca deverá manter-se, mas, neste trajeto, quem saiu foi o fundador, Paulo Maló.
Varandas de Sousa 
Cogumelos derretem 70%
Dos dentes passamos para os cogumelos, mas a história não muda muito. Há um empresário com ambição em fazer crescer o negócio, mas o avanço não corre bem, e o banco credor tem de reconhecer perdas para não perder ainda mais. A Varandas de Sousa, SA, do grupo Sousacamp, tinha unidades em Portugal, a primeira delas em Vila Flor, e estava a construir uma nova, em Vila Real. Estava também em Espanha e queria ir para a Argélia. A construção em Vila Real sofreu atrasos, acabando por ser penalizada pela queda do BES, em 2014, que era o principal financiador e também acio­nista, através do seu braço de capital de risco. E é o banco que, anos depois, vai ajudar a ditar o seu futuro e a saída da empresa das mãos do fundador, Artur Sousa.
Desde 2017 que a empresa tenta a sua recuperação. Primeiro, veio um pedido de PER, que não recebeu o acordo dos credores, onde se encontram o Novo Banco, com €34 milhões, e o Crédito Agrícola, com €16 milhões. A insolvência foi a solução. O administrador judicial, Bruno da Costa Pereira, acreditava na empresa. E em 2019 surgiu um comprador: a Rudi & Mittelbrunn, que juntava um empresário belga e outro espanhol. As propostas de perdões que variavam entre 25% e 65% não convenceram os credores, incluindo o Novo Banco. Não havia garantias bancárias suficientes.
O banco herdeiro do BES, detido em 25% pelo Fundo de Resolução, preparava-se para vender o crédito sobre a empresa no âmbito da maior venda de malparado de sempre no país, mas optou por tirá-lo do pacote, já que havia gestoras de private equity interessadas. Acabou por vender a companhia à Core Capital, através da Core Equity, que junta Nuno Fernandes Thomaz e Martim Avillez Figueiredo, entre outros.
Segundo o “Negócios”, esta aquisição implica um perdão de 70% por parte dos bancos. O Novo Banco perderá €24 milhões e o grupo Crédito Agrícola €11 milhões.
Grupo Sporting 
Os VMOC deram perdas
O Novo Banco e o Banco Comercial Português (BCP) aceitaram alterar os contratos de financiamento assinados com o grupo Sporting. Em 2014 foi assinado o acordo de reestruturação financeira e quatro anos depois avançou-se para a renegociação de alguns dos pontos do acordo, nomeadamente em relação aos chamados VMOC — valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis —, que, sendo executados, poderiam retirar ao clube de Alvalade o controlo da sua sociedade anónima desportiva, passando-a para as mãos dos dois bancos.
Os VMOC foram subscritos a €1 cada, entre 2011 e 2014, mas o acordo com os bancos, fechado em outubro deste ano, passou o seu valor para €0,30. Subscritas num total de €135 milhões, valem agora €40,5 milhões. E é esse o dinheiro que os bancos poderão recuperar. Apesar de aceitarem o perdão, eles conseguiram que o clube deixasse de estar em incumprimento, deixando de ter obrigações por saldar.
João Pereira Coutinho 
Carros esfumam dívidas
O império de João Pereira Coutinho ruiu e, por €1, a SAG — Soluções Automóvel Globais vendeu a SIVA, que comercializa os automóveis da Vokswagen em Portugal. Foi comprada pela Porsche Holding Salzburg, subsidiária do grupo alemão, numa operação que envolveu dois PER: um da SAG e outro da SIVA. E aí os bancos foram visados.
De acordo com os números tornados públicos em maio, os planos preveem um perdão da dívida bancária de, pelo menos, €116 milhões. A SAG, que fica sem a sua principal subsidiá­ria, determina a extinção de uma dívida de €16 milhões (o perdão do BCP é de €10 milhões, o Novo Banco assume uma perda de €5,3 milhões e o BPI de €466 mil), sendo que terá até 2029 para reembolsar os restantes €57 milhões.
No caso do acordo de recuperação da SIVA, as perdas são mais elevadas para as entidades bancárias. O perdão mínimo é de €100 milhões, mas até pode subir se a situação patrimonial da empresa, à data de fecho da transação, fosse negativa. O PER foi subscrito pelo Novo Banco, BCP, CGD e BPI, a quem a SIVA devia €147 milhões (principalmente aos dois primeiros), 58% de todos os créditos reconhecidos perante a empresa.
Os PER visavam “assegurar a sustentabilidade e continuidade do negócio automóvel” da organização, tendo avançado em paralelo ao compromisso de apoio financeiro por parte do universo Volkswagen.
Global Media 
Desconto nas notícias
O BCP e o Novo Banco chegaram a acordo para alienar as posições de 10,5% na Global Media aos seus dois maiores acionistas, Kevin Ho e José Soeiro. E, segundo avançou a administração numa carta aos trabalhadores, os bancos também venderam os seus créditos, passando a ter uma exposição residual perante a empresa que detém o “Diário de Notícias”, o “Jornal de Notícias” e a TSF. Os bancos deixam de estar num sector que tem protagonizado perdas e onde ficaram como acionistas por incumprimentos anteriores.
O jornal “Eco” adiantou que as entidades bancárias assumiram um desconto de até 85% face ao valor dos financiamentos. Não há montantes. Aliás, a Global Media pediu confidencialidade à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), para não divulgar publicamente nem o ativo nem o passivo.
As perdas das instituições não se ficam por aqui, já que a Controlinveste (de Joaquim Oliveira), que é sua acionista, está em insolvência. O BCP tem créditos a recuperar de €406 milhões e o Novo Banco de €152 milhões (crédito que o banco colocou à venda na carteira designada Nata 2, adquirida pelo fundo Davidson Kempner).
Orey Antunes 
Mais a caminho?
É o mais recente caso de um grupo nacional em dificuldades que precisa da banca para sobreviver. Depois de abandonar a área financeira, a Sociedade Comercial Orey Antunes entrou, no final de novembro, com um PER. A holding admite que tem um “desequilíbrio financeiro de curto prazo de cerca de €12 milhões”.
No plano, que prevê a entrada de investidores para resolver a crise de liquidez, a Orey assume que irá impor perdas a credores (nos garantidos, o reembolso é equivalente às garantias; nos comuns, o perdão oscilará entre 90% e 95%). O PER, que ainda não foi aceite, obrigará ao reconhecimento de perdas, mas a insolvência, argumenta o grupo, causaria “perdas médias estimadas superiores a 98% do montante total a ser reclamado”. A CGD é o principal credor bancário, com financiamentos de €5 milhões, que estão já vencidos (texto dos jornalistas Diogo Cavaleiro e Isabel Vicente, Expresso)

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