quinta-feira, março 10, 2016

Opinião: “Tudo me faz lembrar Passos Coelho, excepto Passos Coelho”

Ouvindo-o na sua campanha para se manter na liderança do PSD, ocorre-me a magnifica tirada de Groucho Marx em Uma Noite na Ópera: «Tudo em ti me lembra de ti. Exceto tu». Vivendo o quotidiano português herdado do consulado de Passos Coelho, não é possível deixar de pensar no governo PSD quando se recebe a reforma cortada a meio ou quando nos hospitais se desenrola a eutanásia natural por falta de pessoal e meios. Quando vejo agora o novo Passos, ocorre-me sempre a imagem dos espantosos sermões do antigo primeiro-ministro e dos seus acólitos nas sinistras missas negras de novas noites de cristal, em que se estilhava a dignidade de velhos e novos com conceitos como ‘a peste grisalha’ que empobrecia Portugal, e abria caminho ‘à substituição de populações autóctones’ por imigrantes num ‘assustador desafio à nacionalidade portuguesa’. Nem Himmler e Goebbles falaram melhor no comício no Estádio de Nuremberga. Nem Cavaco no seu Dia da Raça.

Quem assim falou foi a escolha pessoal de Passos Coelho para a Guarda, o deputado Carlos Peixoto. E Passos Coelho não o corrigiu porque, por outras palavras, tinha dito exatamente a mesma coisa com as suas prédicas sobre os méritos de empobrecermos (a única previsão realmente correta do seu governo) e as exortações de coragem para os nossos jovens «saírem das suas zonas de conforto» e irem mendigar sustento mundo fora.
Do Brasil a Timor, dizia ele – e o seu governo fazia eco –, haveria lugar para os que aqui se acotovelavam nas filas do desemprego.
Portanto, é inesquecível para uns milhões largos de portugueses este Pedro Passos Coelho que agora se reinventa na roupagem social-democrata, que tenta envergar como um último colete salva vidas no Titanic nacional que ele atirou contra vários icebergs num mar de opções erradas.
Ninguém se lembra de ter vislumbrado este novo Passos Coelho, o da social-democracia (do socialismo democrático afinal), quando o víamos nos delírios austeritários em que embarcou, sacrificando o bem-estar de todo o país às folhas de contabilidade cega que, mesmo para um dos seus gurus mais próximos, Vítor Gaspar, talvez não tivesse sido a fórmula mais adequada para lidar com pessoas.
Na sua quase biografia que Maria João Avillez brilhantemente compilou, Gaspar escolhe para ilustrar o seu memorialismo a duríssima gravura de Goya de um sonhador rodeado por mochos e vampiros onde se lê: «O Sonho da Razão Produz Monstros». Era o seu ato de contrição pelo malogro da aplicação da austeridade racional e livresca como ele a recomendou a Passos, quando era o número dois do Governo, e que produziu a monstruosidade em que hoje vivemos.
Como diria Passos Coelho recentemente, já em pleno ato de maquilhagem para entrar em palco com a nova persona de social-democracia, teria ido «mais longe do que seria necessário» por «não querer falhar». Foi longe demais e falhou, e por isso foi derrotado nas eleições. Não podemos deixar cristalizar esta ideia de que o PSD ganhou as últimas eleições. Perdeu-as porque Portugal preferiu votar declaradamente contra o que o seu Governo representou e, sobretudo, contra o que o seu governo fez.
Passos Coelho é um derrotado.
Será mesmo mais derrotado do que António Costa foi, porque Portugal, na sua grande maioria, rejeitou a continuação da sua proposta governamental depois de a viver quatro terríveis anos.
Portugal quis ver o PSD de Passos Coelho terminantemente fora do poder. Essa é a única leitura honesta das eleições que o Parlamento eleito cumpriu, tirando-lhe, por não ter votos suficientes, a possibilidade de ‘levar (ainda) mais longe’ as suas receitas de empobrecimento, por fé, desconhecimento ou medo de ‘falhar’, o que que quer que ‘falhar’ queira dizer na linguagem de Passos Coelho.
É por isso um risco nacional vê-lo a esgueirar-se entre os destroços do que a sua governação fez, como se nada se tivesse passado, rumo a nova investida ao governo. Era bom que houvesse social-democracia suficiente para não o querer. Fazer o mesmo e esperar resultados diferentes é uma definição de loucura segundo Einstein. Voltar a ter Passos Coelho no Governo seria muito mau. É por isso que tudo nele me lembra o governo dele. Menos aquilo que ele quer mostrar ser agora (texto de MárioCrespo, Sol, com a devida vénia)

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