sábado, outubro 01, 2022

Há ou não esquadras chinesas informais em Portugal? O Expresso esteve nas três moradas e na Madeira descobriu uma associação fantasma



A ONG Safeguard Defenders apontou moradas em Lisboa, no Porto e na Madeira onde alegadamente estariam essas esquadras informais. Todos os cidadãos chineses contactados negam ligações a atividades ilícitas. Mas houve uma incongruência que ficou por explicar. A Associação de Comunidade Fuzhou Shiyi Portugal é uma das instituições identificadas pela Safeguard Defenders - ONG que luta pelos direitos humanos na China - como sendo uma esquadra ilegal de chineses para deter e expulsar de Portugal pessoas que o regime entende que devem ser julgadas naquele país. Esta associação tem número de contribuinte e, no registo de pessoas coletivas, apresenta-se como uma organização com fins culturais e recreativos. E, embora tenha sido criada em 2019, na Ribeira Brava, na ilha da Madeira, onde tem a sede, ninguém lhe conhece atividade ou sabe quem são os dirigentes ou associados. Nem sequer os serviços municipais. A autarquia, dirigida por Ricardo Nascimento, garante que não tem qualquer informação e que, até ao momento do contacto do Expresso, desconhecia “a sua existência, presença ou atividade no concelho”. Na verdade, foi “surpreendida com a informação”.

A sede, o número 5 da Rua Comandante Camacho de Freitas, é um prédio de vários andares na baixa da Ribeira Brava, uma localidade na costa sul da Madeira. E não há qualquer indicação de onde funcionará a associação: se num dos apartamentos do edifício ou numa das lojas da área comercial. A área comercial não é grande. De um lado está instalada uma loja de produtos chineses - “Estrelas Loucas” - com letreiro em chinês e dois pandas a servir de logótipo. Na altura em que o Expresso lá esteve só estavam os empregados. Da outra loja, funciona um café. E certo é que em lado algum há uma placa ou referência à Associação de Comunidade Fuzhou Shiyi.

E também não é possível seguir o rasto ou perceber o que faz esta associação através da Conservatória do Registo Comercial. O habitual quando se cria uma entidade com cariz cultural e recreativo é solicitar o estatuto de utilidade pública. O que não aconteceu neste caso e, por isso, não estão disponíveis informações sobre os corpos sociais ou sobre decisões tomadas em assembleias gerais. O que existe é o que está no registo de pessoas coletivas desde 18 de março de 2019: uma morada, um número de contribuinte e código cae.

Se a Câmara da Ribeira Brava não conhece as atividades culturais e recreativas, o mesmo acontece com o Governo Regional. Rui Abreu, o diretor regional das Comunidades - que na Madeira tem a função de estabelecer contactos com as comunidades madeirenses no estrangeiro e com as comunidades estrangeiras na região- garante que não teve qualquer contacto com esta ou outra associação ligada à comunidade chinesa. Uma comunidade que, de facto, não é muito grande. Na Madeira, segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, vivem 230 cidadãos chineses.

A FRASE MÁGICA: “NÃO SEI DE NADA”

É na zona industrial de Vila do Conde que se localiza a morada do grande Porto, indicada ao Expresso pela Safeguard Defenders como sendo porta de mais uma esquadra informal. No lado esquerdo de uma oficina de reparação de automóveis, de nome chinês, há uma porta com grades e a indicação, em cima, da receção, junto de um horário de atendimento.

Lá dentro encontram-se quatro cidadãos chineses sentados em cadeiras e por cima, na parede, carateres chineses a vermelho e dourado. Enquanto um homem se levanta e sobe umas escadas, uma mulher dirige-se à porta, sem a abrir, para nos informar de que desconhece por completo a existência de uma esquadra informal naquele local. “Não sei de nada. O responsável está fora do país, penso que por duas semanas”, diz ao Expresso sem dificuldade no português mas também sem abertura para continuar a conversa.

Naquela ponta da zona industrial da cidade encontram-se maioritariamente negócios portugueses. Mas do lado oposto, sobretudo na parte norte da zona industrial, encontra-se a “chinatown” portuguesa – aquela que é a maior comunidade chinesa em Portugal. Lá multiplicam-se os armazéns, as lojas e os supermercados. E, nas fachadas, é raro o nome que não remeta para aquele país.

Pelos dados fornecidos pela ONG, o Expresso descobriu ainda uma outra pista: a da Associação para o Desenvolvimento dos Chineses em Portugal, situada na zona industrial da Varziela, entre o Porto e a Póvoa de Varzim. Contactado telefonicamente, um responsável diz nada saber sobre o assunto, recusando-se a falar por telefone e alegando não saber falar bem português. A sede da associação fica na Guarda.

AUTORIDADES DIZEM-SE “ATENTAS”

Tal como o Expresso escreveu esta sexta-feira, as autoridades portuguesas dizem ter conhecimento há algum tempo das chamadas “esquadras informais” compostas por cidadãos chineses cujo objetivo será a de deterem e expulsarem ilegalmente do país imigrantes chineses considerados indesejáveis para depois serem levados a um tribunal perante a justiça de Pequim.

“Estamos atentos às suas atividades em Portugal, mas não temos para já conhecimento de ações ilegais: deter e levar uma pessoa pela fronteira contra a sua vontade seria um grave problema diplomático”, refere uma fonte policial.

Um outro local apontado pela Safeguard Defenders fica numa das zonas mais multiculturais de Lisboa. Trata-se de um escritório aberto ao público de montra coberta com anúncios em mandarim, portas meias com um supermercado oriental. Os funcionários são todos chineses mas arranham o português com uma pequena ajuda do Google tradutor.

Um dos sócios, Zheng Zhibin, fala abertamente ao Expresso sobre as suspeitas levantadas esta quinta-feira pelo deputado da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, mostrando de imediato uma notícia sobre o tema no visor do telemóvel. “Essas acusações são mentira. Como íamos fazer isso? Só a polícia portuguesa tem poderes para expulsar alguém de Portugal.”

O empresário de 34 anos veio para Lisboa trabalhar em 2005 e tem um filho que já nasceu em Portugal diz-se bem adaptado ao país e não lhe falta trabalho. “O que fazemos? Tratamos de documentos, autorizações de residência, vistos gold, fazemos traduções e publicidade para a comunidade chinesa.” Mas admite uma permanente falta de comunicação entre os imigrantes chineses e os portugueses que acaba por levar a maus entendidos e desconfianças. “A nossa comunidade é muito fechada, o que é mau. Devíamos ser mais abertos até porque precisamos dos portugueses.”

NÃO EXISTEM PROVAS EM PORTUGAL

Estas "esquadras informais" surgem no relatório da Safeguard Defenders que revela a existência de 54 destas esquadras um pouco por todo o mundo, sobretudo na Europa e América, mandatadas por duas jurisdições de polícias na China.

Ao Expresso, um dos fundadores da Safeguard Defenders adiantou que os postos em Portugal seriam geridos por associações locais registadas no nosso país. Estas pessoas “não são polícias chineses formais”, mas chineses locais agindo por conta própria. “Mas não existem provas (ainda) sobre as suas operações em Portugal.”

A ONG revela que, para além da preocupação com potenciais operações ilegais, existe uma preocupação geral de que as associações encarregadas de gerir estes centros não estejam registadas para esse fim junto do governo português, “o que significa que o governo não teria conhecimento da sua existência”. Assim, a “verificação do registo destas associações junto da entidade reguladora competente seria um primeiro passo importante para se perceber a sua finalidade”.

De acordo com dados da Safeguard Defenders, o governo chinês afirma ter "persuadido" 230 mil pessoas a regressarem a julgamento na China em pouco mais de um ano. “Por isso, estatisticamente, seria muito estranho se isto não tivesse acontecido também em Portugal. Mas, como foi dito, por enquanto não há provas disponíveis.”

No site da ONG são revelados dois casos concretos: um passado em Madrid em 2020 e outro em Belgrado em 2018. Em ambos os casos, os cidadãos chineses foram alegadamente convencidos a regressar à China para se renderem através de videoconferências feitas com polícias na China. "Numerosos avisos e documentos governamentais especificaram que quem se recuse a ajudar a polícia em operações de "persuasão" pode ser punido, juntamente com a família pela polícia interna do partido".

NOTÍCIAS EM ITÁLIA, INGLATERRA E IRLANDA

Nos últimos dias, o relatório da ONG Safeguard Defenders fez disparar notícias de alegadas esquadras chinesas informais em vários países da Europa. Em Dublin, na Irlanda, na rua comercial de Capel, uma esquadra apresenta-se com o nome ‘Fuzhou Police Overseas Service Station’ entre dois restaurantes asiáticos, revela o jornal The Irish Times. Também em Inglaterra, informa o The Telegraph, e em várias cidades espanholas têm aberto delegações.

Uma notícia do jornal italiano Il Foglio, do início de setembro, denunciava também o anúncio oficial de uma delegação da polícia ultramarina de Fuzhou, em março, na cidade de Prato, a cidade italiana com a segunda maior comunidade chinesa do país. As autoridades locais não foram informadas, apesar de o comunicado de imprensa ter afirmado que a delegação, localizada na mesma morada que a Associação cultural da comunidade chinesa em Itália, foi criada com o objetivo de “dar ajuda aos residentes chineses em Itália para lidarem com vários assuntos domésticos” (Expresso,  texto dos jornalistas Hugo Franco, Joana Ascensão e Marta Caires)

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