Alice soube que queria um futuro diferente no final do 10º ano: “Os meus amigos até iam inscrever-me no curso profissional de teatro sem eu saber, mas acabei por tomar a decisão primeiro. Fiquei contente quando soube desse plano, porque eles sabiam que eu não estava feliz no curso de ciências”, diz esta mulher natural do Porto, 24 anos, e que depois do curso profissional em teatro seguiu para Lisboa para fazer o Ensino Superior na mesma área. Nunca trabalhou durante o percurso escolar: fê-lo depois, pressionada pela pandemia: “Já era difícil entrar no mundo das artes, e a covid complicou tudo ainda mais. Arranjei trabalho num centro comercial e trabalhei lá sete meses.” Depois, despediu-se: “Já não aguentava mais. Não era o que queria fazer. Estava esgotada e sem tempo. Neste momento tenciono encontrar alguma coisa em part-time, para ter tempo para avançar com os meus projetos.”
Enquanto não “encontrar alguma coisa”, Alice faz parte dos cerca de 261,8 mil jovens portugueses entre os 16 e os 34 anos que não estudavam nem trabalhavam nos primeiros três meses de 2021, segundo números do Instituto Nacional de Estatística. Estes jovens “nem-nem” são cerca de 12,4% da população total compreendida entre estas idades. No quarto trimestre do ano passado, eram 10,9%.
A nível europeu, esta
realidade é contabilizada apenas nas idades entre os 20 e os 34 anos. Mesmo
assim, os números não são bons: Portugal foi o quinto país da União Europeia
com o maior aumento de jovens que não estavam a estudar, a trabalhar ou em
formação durante o ano de 2020: 14,1%, mais 2,5% do que em 2019, segundo dados
do Eurostat. Isto aconteceu depois de uma diminuição significativa nos anos
anteriores: em 2013, em plena crise da troika, esta percentagem atingiu um pico
de 20%.
“A recuperação económica
depois da crise de 2011 foi fundamental para a redução do desemprego jovem e do
número de jovens ‘nem-nem’, e a Garantia Jovem, uma grande política da União
Europeia, deu uma contribuição muito significativa”, começa por dizer Paulo
Marques, economista especializado em desemprego e investigador no ISCTE. No
entanto, políticas ativas de emprego como esta demoraram muito tempo a chegar
ao terreno. “A UE decidiu relançar a Garantia Jovem para responder a esta
crise, e esta terá de ser implantada mais rapidamente, para não cometermos os
mesmos erros de 2014.”
Para o economista, o país
enfrenta agora “dois grandes problemas”. Primeiro: “os recém-licenciados com 23
e 24 anos, que acabaram o curso durante a pandemia e estão com dificuldades em
entrar no mercado de trabalho. Esta questão não é estrutural, é temporal, mas
corremos o risco de perder para a emigração uma geração que se formou durante a
covid-19”, explica Paulo Marques.
O outro problema
identificado pelo especialista encontra-se na faixa etária seguinte: a dos
jovens entre os 25 e os 29 anos que são pouco qualificados e trabalham “em
sectores que vivem da rotação” laboral, e por isso mais suscetíveis às
vicissitudes da crise sanitária. “É preciso apoiá-los ao nível da formação
especializada, para criar um contexto de melhor qualidade no emprego.” E
adianta: “Os países com mais recursos próprios, que não estão dependentes da
bazuca, estão a agir mais rapidamente.”
A ‘bazuca’ portuguesa — o
Plano de Recuperação e Resiliência — mostra “uma tentativa do Governo de
corrigir os abusos dos estágios do IEFP, numa lógica de promover o emprego
permanente e não precário”, continua Paulo Marques. “Mas é preciso ir mais
longe do que aquilo que está no PRR”, avisa.
Ora, o histórico
português neste ponto não é extraordinário, sublinha Vítor Ferreira,
investigador na área da sociologia da juventude e professor no Instituto de
Ciências Sociais. “Em termos de políticas públicas no que toca à transição dos
jovens para o mercado de trabalho, Portugal não tem sido pródigo nem inovador.
Limita-se a reproduzir com algum atraso as recomendações da UE”, garante o
especialista, lembrando que o Plano Nacional para a Juventude só nasceu há
cerca de dois anos — “e Portugal era dos poucos países que ainda não o tinha
[criado]”.
O PROBLEMA DO ESTIGMA
Há um dado que se repete
em todos os países da UE no que toca aos jovens que não estudam nem trabalham:
o fenómeno afeta mais mulheres do que homens — sobretudo as mais velhas. “Isto
acontece porque as raparigas encontram na escola um fator protetor. A taxa de
abandono escolar é mais alta nos homens, também pelas próprias características
do mercado laboral. E isso só se combate com medidas de igualdade de género”,
aponta Vítor Ferreira.
Em todo o caso, o
sociólogo é crítico da utilização do termo “nem-nem”: “Do ponto de vista
científico não tem validade. Foi apropriada pelos políticos e pela comunicação
social, mas tende a normalizar e a estereotipar uma condição muito plural e diversa.”
Ora, este posicionamento passa uma ideia de que “os jovens não querem fazer
nada” — e isso tem “efeitos estigmáticos muito grandes”, sobretudo no contexto
familiar.
João Caramelo,
especialista em Ciências da Educação na Universidade do Porto, concorda:
“Ninguém nasce a não querer fazer nada. Não se trata de esta ser uma geração
que não quer trabalhar, e o problema não tem nada que ver com o carácter das
pessoas.” O docente volta às questões de base: as deficiências no
acompanhamento durante o ensino e nas políticas sociais no que toca à formação,
apenas “paliativas”: “Visam manter a situação dentro dos limites aceitáveis e
gerir os fluxos de entrada em estágios e formações, ignorando as trajetórias
ondulantes deste fenómeno” — porque “os jovens ‘nem-nem’ não são sempre os
mesmos”.
“Dentro da população
inativa há um espectro enorme de perfis que são contabilizados nesta categoria:
jovens em casa com responsabilidades familiares, que tiveram de abandonar a
escola ou que estão a trabalhar no mercado informal”, enumera Vítor Ferreira.
Acredita que os jovens que não querem de facto fazer nada “representam franjas
mínimas”. E a descrição que faz a seguir vai ao encontro do caso de Alice:
“Muitos são jovens que acabaram um curso superior, evitam aceitar trabalhos
fora da sua área, e ficam à espera de uma oportunidade, que é legítimo.”
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