domingo, setembro 05, 2021

Nem estudar nem trabalhar...



Alice soube que queria um futuro diferente no final do 10º ano: “Os meus amigos até iam inscrever-me no curso profissional de teatro sem eu saber, mas acabei por tomar a decisão primeiro. Fiquei contente quando soube desse plano, porque eles sabiam que eu não estava feliz no curso de ciências”, diz esta mulher natural do Porto, 24 anos, e que depois do curso profissional em teatro seguiu para Lisboa para fazer o Ensino Superior na mesma área. Nunca trabalhou durante o percurso escolar: fê-lo depois, pressionada pela pandemia: “Já era difícil entrar no mundo das artes, e a covid complicou tudo ainda mais. Arranjei trabalho num centro comercial e trabalhei lá sete meses.” Depois, despediu-se: “Já não aguentava mais. Não era o que queria fazer. Estava esgotada e sem tempo. Neste momento tenciono encontrar alguma coisa em part-time, para ter tempo para avançar com os meus projetos.”

Enquanto não “encontrar alguma coisa”, Alice faz parte dos cerca de 261,8 mil jovens portugueses entre os 16 e os 34 anos que não estudavam nem trabalhavam nos primeiros três meses de 2021, segundo números do Instituto Nacional de Estatística. Estes jovens “nem-nem” são cerca de 12,4% da população total compreendida entre estas idades. No quarto trimestre do ano passado, eram 10,9%.

A nível europeu, esta realidade é contabilizada apenas nas idades entre os 20 e os 34 anos. Mesmo assim, os números não são bons: Portugal foi o quinto país da União Europeia com o maior aumento de jovens que não estavam a estudar, a trabalhar ou em formação durante o ano de 2020: 14,1%, mais 2,5% do que em 2019, segundo dados do Eurostat. Isto aconteceu depois de uma diminuição significativa nos anos anteriores: em 2013, em plena crise da troika, esta percentagem atingiu um pico de 20%.

“A recuperação económica depois da crise de 2011 foi fundamental para a redução do desemprego jovem e do número de jovens ‘nem-nem’, e a Garantia Jovem, uma grande política da União Europeia, deu uma contribuição muito significativa”, começa por dizer Paulo Marques, economista especializado em desemprego e investigador no ISCTE. No entanto, políticas ativas de emprego como esta demoraram muito tempo a chegar ao terreno. “A UE decidiu relançar a Garantia Jovem para responder a esta crise, e esta terá de ser implantada mais rapidamente, para não cometermos os mesmos erros de 2014.”

Para o economista, o país enfrenta agora “dois grandes problemas”. Primeiro: “os recém-licenciados com 23 e 24 anos, que acabaram o curso durante a pandemia e estão com dificuldades em entrar no mercado de trabalho. Esta questão não é estrutural, é temporal, mas corremos o risco de perder para a emigração uma geração que se formou durante a covid-19”, explica Paulo Marques.

O outro problema identificado pelo especialista encontra-se na faixa etária seguinte: a dos jovens entre os 25 e os 29 anos que são pouco qualificados e trabalham “em sectores que vivem da rotação” laboral, e por isso mais suscetíveis às vicissitudes da crise sanitária. “É preciso apoiá-los ao nível da formação especializada, para criar um contexto de melhor qualidade no emprego.” E adianta: “Os países com mais recursos próprios, que não estão dependentes da bazuca, estão a agir mais rapidamente.”

A ‘bazuca’ portuguesa — o Plano de Recuperação e Resiliência — mostra “uma tentativa do Governo de corrigir os abusos dos estágios do IEFP, numa lógica de promover o emprego permanente e não precário”, continua Paulo Marques. “Mas é preciso ir mais longe do que aquilo que está no PRR”, avisa.

Ora, o histórico português neste ponto não é extraordinário, sublinha Vítor Ferreira, investigador na área da sociologia da juventude e professor no Instituto de Ciências Sociais. “Em termos de políticas públicas no que toca à transição dos jovens para o mercado de trabalho, Portugal não tem sido pródigo nem inovador. Limita-se a reproduzir com algum atraso as recomendações da UE”, garante o especialista, lembrando que o Plano Nacional para a Juventude só nasceu há cerca de dois anos — “e Portugal era dos poucos países que ainda não o tinha [criado]”.

O PROBLEMA DO ESTIGMA

Há um dado que se repete em todos os países da UE no que toca aos jovens que não estudam nem trabalham: o fenómeno afeta mais mulheres do que homens — sobretudo as mais velhas. “Isto acontece porque as raparigas encontram na escola um fator protetor. A taxa de abandono escolar é mais alta nos homens, também pelas próprias características do mercado laboral. E isso só se combate com medidas de igualdade de género”, aponta Vítor Ferreira.

Em todo o caso, o sociólogo é crítico da utilização do termo “nem-nem”: “Do ponto de vista científico não tem validade. Foi apropriada pelos políticos e pela comunicação social, mas tende a normalizar e a estereotipar uma condição muito plural e diversa.” Ora, este posicionamento passa uma ideia de que “os jovens não querem fazer nada” — e isso tem “efeitos estigmáticos muito grandes”, sobretudo no contexto familiar.

João Caramelo, especialista em Ciências da Educação na Universidade do Porto, concorda: “Ninguém nasce a não querer fazer nada. Não se trata de esta ser uma geração que não quer trabalhar, e o problema não tem nada que ver com o carácter das pessoas.” O docente volta às questões de base: as deficiências no acompanhamento durante o ensino e nas políticas sociais no que toca à formação, apenas “paliativas”: “Visam manter a situação dentro dos limites aceitáveis e gerir os fluxos de entrada em estágios e formações, ignorando as trajetórias ondulantes deste fenómeno” — porque “os jovens ‘nem-nem’ não são sempre os mesmos”.

“Dentro da população inativa há um espectro enorme de perfis que são contabilizados nesta categoria: jovens em casa com responsabilidades familiares, que tiveram de abandonar a escola ou que estão a trabalhar no mercado informal”, enumera Vítor Ferreira. Acredita que os jovens que não querem de facto fazer nada “representam franjas mínimas”. E a descrição que faz a seguir vai ao encontro do caso de Alice: “Muitos são jovens que acabaram um curso superior, evitam aceitar trabalhos fora da sua área, e ficam à espera de uma oportunidade, que é legítimo.”

Alice já sentiu o estigma de não estar a trabalhar ou a estudar, e talvez por isso não quis que o Expresso publicasse o seu nome verdadeiro: “Recebo comentários do género: ‘Se calhar devias ter seguido outra coisa, que tivesse mais saídas...’ Eu já sabia que ia ser difícil... mas respondo sempre que não me arrependo. Prefiro saber que tentei, em vez de ir para uma área que não me trazia nada.” (texto do jornalista TIAGO SOARES e infografia de CARLOS ESTEVES, do Expresso)

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