Quando no início de 2020
os primeiros casos de contágio por covid-19 foram diagnosticados em Portugal,
poucos arriscariam pensar a dimensão do impacto que a pandemia teria no mercado
de trabalho. Quase um ano e meio depois os especialistas dizem que ainda é cedo
para medir impactos definitivos. Mas já identificam algumas tendências de
mudanças estruturais. Transformações que foram induzidas ou aceleradas pela
pandemia e que vão perdurar no tempo, alterando irreversivelmente a forma como
trabalhamos. O Expresso ouviu um conjunto de especialistas, da economia do
trabalho ao recrutamento, que ajudam a sinalizar dez tendências e mudanças para
o futuro que já se sentem.
1 - ESTAMOS MAIS REMOTOS
E FLEXÍVEIS
O impacto mais visível da
pandemia no mercado de trabalho foi, inquestionavelmente, a migração forçada do
trabalho presencial para o remoto. Apesar de previsto no Código do Trabalho
desde 2003, o teletrabalho teve sempre uma adesão residual no país, quer por
parte das empresas quer dos trabalhadores. Até chegar a pandemia.
Durante o primeiro
confinamento, em março de 2020, mais de um milhão de profissionais estiveram em
teletrabalho e mesmo as empresas onde os processos de transformação digital
estavam em fase embrionária migraram para o conceito. “Foram dados passos
irreversíveis no aumento do teletrabalho. Até porque tecnologias de conexão
remota, como o Zoom, permitem que certo tipo de trabalhos possam ser
desempenhados em qualquer lugar”, sinaliza o economista Paulino Teixeira,
professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Uma migração que não foi imediata, nem simples, para todos os sectores. Em áreas mais tradicionais, “implicou um ajuste profundo nos meios utilizados, nos processos, mas sobretudo na forma de pensar o trabalho”, realça António Costa, diretor associado da empresa de recrutamento Michael Page, reforçando que “a conjuntura obrigou empresas e colaboradores a adaptarem-se a um cenário que estava em desenvolvimento”.
E fê-lo de forma
irreversível. “O teletrabalho veio para ficar nalgumas áreas”, vinca João
Cerejeira, professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. O
economista defende que a experiência de teletrabalho durante a pandemia foi
“suficientemente forte” para introduzir nas empresas modelos de trabalho mais
flexíveis, como o teletrabalho ou o regime misto (remoto e presencial), que a
maioria das empresas apontam como o modelo a seguir no futuro. Certo é que esta
alteração torna “necessária uma adaptação do Código do Trabalho”, considera
Francisco Madelino, professor do ISCTE-IUL e antigo presidente do Instituto do
Emprego e Formação Profissional, apontando que essa necessidade se estende
também ao trabalho nas plataformas digitais.
2 - POLARIZAÇÃO DA FORÇA
DE TRABALHO ACENTUOU-SE
O efeito perverso desta
mudança radical na forma de trabalhar, alavancada pela pandemia e suportada
pela tecnologia, é uma polarização sem igual no mercado de trabalho. Com a
recuperação económica a caminhar a duas velocidades — “com sectores como o
tecnológico e as áreas de suporte, a logística, a saúde ou o e-commerce a
recuperarem de forma mais rápida e outros, como a hotelaria e a restauração,
algum retalho físico ou as funções puramente administrativas ou de inserção de
dados a ficarem para trás” nas opções de recrutamento das empresas, sinaliza
Rui Teixeira, diretor-geral de Operações do ManpowerGroup — o desequilíbrio de
oportunidades para os profissionais é cada vez mais evidente. “O aumento do
emprego em Portugal tem passado, sobretudo, por pessoas muito qualificadas, com
formação ao nível do ensino superior”, aponta, por sua vez, Francisco Madelino.
E destaca que “o emprego no país, em termos de qualificações dos trabalhadores,
está a alterar-se de forma profunda”.
A pandemia, nota Rui
Teixeira, acentuou “uma polarização na força de trabalho, entre aqueles que têm
as competências mais procuradas e os que as não têm, com os primeiros a
beneficiarem claramente de mais oportunidades para negociarem salários, gerir a
vida pessoal e profissional com mais flexibilidade, bem como trabalhar
remotamente ou em contextos híbridos”. Por outro lado, diz, “esta recuperação a
duas velocidades e a crescente digitalização dos negócios implicam ainda um
outro desafio para as empresas no pós-pandemia: uma escassez de talento sem
precedentes, que se agrava à medida que a procura de competências técnicas
aumenta, sem que haja no mercado a resposta em termos de competências
disponíveis”. O que torna a necessidade de qualificação e requalificação da
base nacional de talento num dos desafios mais críticos para as empresas no
futuro.
3 - DESIGUALDADES AGRAVARAM-SE
(E PODEM AGRAVAR-SE MAIS)
O economista Paulino
Teixeira identifica também um agravamento das desigualdades entre
trabalhadores. “O aumento da procura de serviços online, que se verificou nos
confinamentos, vai ficar”, diz, admitindo que traz “consequências para os
grupos profissionais mais vulneráveis”. E recorda que “o aumento da procura nas
plataformas digitais foi satisfeito recorrendo a determinado tipo de
trabalhadores, muitas vezes pessoas em trabalho a tempo parcial involuntário,
ou que acumulam vários empregos e trabalham muitas horas. E é um trabalho
precário”. Já os trabalhadores com funções desempenhadas em teletrabalho, diz,
“estão mais protegidos”, pois, alerta, “esta desigualdade que se agravou entre
trabalhadores vai persistir”.
Paulino Teixeira fala num
fenómeno mais geral de externalização de serviços (outsourcing) que não abrange
apenas trabalhadores de segurança, das limpezas ou de call centers e “tem vindo
a alargar-se a mais sectores, introduzindo um terceiro elemento nas relações de
trabalho: as empresas de trabalho temporário”. E sinaliza que “serão
necessárias medidas concretas, direcionadas a determinado público-alvo, em
particular os jovens, para evitar uma crescente desigualdade”.
Este agravar de
desigualdades, continua Paulino Teixeira, “acarreta perigos ao nível da
proteção dos trabalhadores”. E defende que “tal como houve políticas públicas
para a retenção de emprego por causa da pandemia, talvez seja altura de
desenhar políticas para contrariar algum desequilíbrio que se criou”.
Os especialistas em
recrutamento ouvidos pelo Expresso alertam também para os riscos de
desigualdades provocados pelo trabalho remoto, sobretudo se este se tornar um
modelo de aplicação desequilibrada entre géneros, já que pode conduzir a
situações de discriminação na progressão profissional, acesso a cargos de
liderança e até salarial, com prejuízo para as mulheres.
4 - PRIORIDADE É O
DIGITAL. MASC HUMANOS SÃO IMPRESCINDÍVEIS
Entre as transformações
alavancadas pela pandemia, João Cerejeira sinaliza também “uma alteração da
composição da força de trabalho das empresas”, com as competências digitais a
ganharem relevância sobre o atendimento ao público, “até com encerramento de
lojas presenciais”, vinca. Uma transformação que, segundo Cerejeira, é notória
em sectores como a banca, com o recente movimento de despedimentos.
Rui Teixeira reconhece
que “todos os negócios, hoje, tendem a ser tecnológicos”. Ainda assim, o
especialista em recrutamento defende que “há uma crescente consciencialização
por parte das empresas da necessidade de obter um correto equilíbrio entre a
tecnologia e uma abordagem humana”. E acrescenta: “Assistimos a uma crescente
digitalização da experiência do consumidor e a uma procura contínua por parte
das organizações, da melhor combinação entre talento e tecnologia.”
5 - RECRUTAMENTO É GLOBAL
E LIDERADO PELO TALENTO
Como consequência da
pandemia e do teletrabalho — que permite a um profissional trabalhar a partir
do seu país para uma empresa em qualquer canto do mundo — o recrutamento
tornou-se efetivamente global. Ou seja, as empresas competem pela contratação
de talento em qualquer ponto do globo. Esta prática, que já acontecia em
algumas áreas muito específicas do sector tecnológico, ganhou escala e tende a
acentuar-se.
Uma tendência que coloca
sérios desafios de atração e retenção de talento aos empregadores no país. “As
empresas pagam pelo talento, não pela localização”, sinaliza Nuno Troni,
diretor de recrutamento da Randstad. É por isso que “há talento português a ser
aliciado para trabalhar para empresas nórdicas por salários 50%, 60% e até 70%
superiores aos praticados em Portugal, na mesma função”, refere. E podem
fazê-lo sem sair do país. Ora, estes são valores com os quais dificilmente uma
pequena ou média empresa portuguesa consegue competir. É por isso que os
recrutadores antecipam um intensificar da guerra pelo talento como efeito da
pandemia.
6 - EMPRESAS CONTRATAM COMPETÊNCIAS EMOCIONAIS
Num mundo cada vez mais
digital, a pandemia “levou as empresas a procurar novas competências nos
profissionais”, explica Carlos Maia, diretor regional da Hays Portugal. Há
novas competências técnicas no radar de prioridades das empresas, como a
cibersegurança, a inteligência artificial, machine learning (aprendizagem
máquina), análise de dados, transformação digital, marketing digital, entre
outras.
Mas, ao mesmo tempo, os
especialistas ouvidos pelo Expresso sinalizam que as competências emocionais
estão a ganhar destaque entre as empresas no momento de contratar. A incerteza
gerada pela pandemia e a migração para o digital — sobretudo no contacto com os
clientes — levaram os empregadores a dar prioridade a perfis com competências
evidentes nos campos da comunicação, gestão de prioridades, capacidade de
adaptação, orientação para a solução, resiliência, empatia, capacidade de
trabalho em equipa. No fundo, as ditas competências emocionais, sinaliza Carlos
Maia.
7 -SALÁRIOS INDEXADOS À
PANDEMIA
Em matéria salarial, “há
uma tendência natural para que as funções mais procuradas, como é o caso das
tecnológicas e especializadas, tenham as suas condições incrementadas e a
possibilidade de serem mais bem remuneradas”, diz Rui Teixeira. É o caso, por
exemplo das funções ligadas à tecnologia, cibersegurança, desenvolvimento de
software, análise de dados, mas também saúde, logística e comércio eletrónico.
Inversamente, funções indiferenciadas ou puramente administrativas enfrentam,
segundo o especialista, uma estagnação de salários.
Também Carlos Maia sinaliza
tendências: “As funções ligadas ao sector do turismo viram o seu poder negocial
reduzir bastante, devido à forte crise que o sector atravessou. Por outro lado,
os mercados claramente liderados pelo candidato — funções com elevada procura e
poucos perfis disponíveis — estão a ver o seu pacote salarial e poder negocial
subir consideravelmente”. Neste grupo estão perfis tecnológicos, de marketing
digital, algumas engenharias, indústria e até a construção.
Há ainda outra tendência
a assinalar: “Em Portugal ainda não nos apercebemos de um impacto claro nos
salários, mas no Reino Unido e nos Estados Unidos, estudos recentes demonstram
que as pessoas estariam disponíveis para reduzir uma percentagem do seu salário
se a empresa lhes permitisse continuar em trabalho remoto de uma forma
consistente”, nota António Costa.
8 - CONCILIAÇÃO DOMINA
PACOTES DE BENEFÍCIOS NAS EMPRESAS
“O valor do salário não
perdeu relevância na negociação da proposta de emprego”, admite o especialista
da Hays, Carlos Maia. No entanto há vários benefícios extrassalariais que estão
a ganhar destaque nos processos de negociação. Na verdade, a pandemia forçou
uma mudança de prioridades na definição de pacotes de benefícios por parte das
empresas, com a conciliação familiar a ganhar relevo.
Os profissionais
começaram a valorizar mais a flexibilidade laboral e não a querem perder. Por
isso, um número crescente de empresas está a incluir nos seus pacotes de
benefícios modelos de trabalho exclusivamente remotos ou híbridos, mais
orientados para o resultado e não para as horas despendidas a trabalhar,
explica Rui Teixeira.
Em paralelo, nos planos
de benefícios começam também a ganhar destaque a aplicação de licenças
parentais prolongadas e de apoio à família, o direito a desligar, serviços de
bem-estar físico e mental, planos de saúde alargados, além de opções orientadas
para o desenvolvimento e formação contínua.
9 - CONDIÇÕES DE TRABALHO
E SAÚDE GANHARAM PROTAGONISMO
Já mais de 1 milhão de
portugueses estiveram infetados com covid-19 e muitos milhares em quarentena
profilática. Situações que “levaram as empresas a perceber a importância de
tudo o que se relaciona com a saúde dos trabalhadores”, aponta João Cerejeira.
Por isso, este especialista considera que “uma maior atenção das empresas às condições
de trabalho e à higiene e segurança, bem como à saúde dos trabalhadores, é uma
mudança impulsionada pela pandemia e que vai persistir”.
A forte incidência do
teletrabalho e consequente isolamento dos profissionais colocou também em
evidência a questão da saúde mental dos trabalhadores. Muitos especialistas
apontam, por isso, que mesmo que o teletrabalho tenha vindo para ficar, a
interação social não se pode perder. É por essa razão que a maioria das
empresas defende como o modelo mais equilibrado o regime híbrido, que combina
trabalho presencial e remoto. É esse o caminho que muitas empresas em Portugal
estão a preparar.
10 - ESTADO VOLTOU A SER
EMPREGADOR
O emprego na
Administração Pública em Portugal está perto do seu máximo histórico e já
recuperou toda a quebra sofrida durante os anos da troika. Tem sido a Saúde a
dar o maior impulso ao aumento do número de trabalhadores na função pública nos
últimos anos. “A sociedade ficou mais aberta a um aumento dos recursos humanos
na Administração Pública, nomeadamente na Saúde. Uma necessidade que ficou
evidente com a pandemia”, aponta Francisco Madelino. E destaca: “Há uma
alteração comportamental da opinião pública com consequências no mercado de
trabalho” (texto das jornalistas CÁTIA MATEUS E SÓNIA M. LOURENÇO do Expresso)
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