domingo, setembro 05, 2021

10 mudanças que a pandemia trouxe ao mundo do trabalho

 

Quando no início de 2020 os primeiros casos de contágio por covid-19 foram diagnosticados em Portugal, poucos arriscariam pensar a dimensão do impacto que a pandemia teria no mercado de trabalho. Quase um ano e meio depois os especialistas dizem que ainda é cedo para medir impactos definitivos. Mas já identificam algumas tendências de mudanças estruturais. Transformações que foram induzidas ou aceleradas pela pandemia e que vão perdurar no tempo, alterando irreversivelmente a forma como trabalhamos. O Expresso ouviu um conjunto de especialistas, da economia do trabalho ao recrutamento, que ajudam a sinalizar dez tendências e mudanças para o futuro que já se sentem.

1 - ESTAMOS MAIS REMOTOS E FLEXÍVEIS

O impacto mais visível da pandemia no mercado de trabalho foi, inquestionavelmente, a migração forçada do trabalho presencial para o remoto. Apesar de previsto no Código do Trabalho desde 2003, o teletrabalho teve sempre uma adesão residual no país, quer por parte das empresas quer dos trabalhadores. Até chegar a pandemia.

Durante o primeiro confinamento, em março de 2020, mais de um milhão de profissionais estiveram em teletrabalho e mesmo as empresas onde os processos de transformação digital estavam em fase embrionária migraram para o conceito. “Foram dados passos irreversíveis no aumento do teletrabalho. Até porque tecnologias de conexão remota, como o Zoom, permitem que certo tipo de trabalhos possam ser desempenhados em qualquer lugar”, sinaliza o economista Paulino Teixeira, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Uma migração que não foi imediata, nem simples, para todos os sectores. Em áreas mais tradicionais, “implicou um ajuste profundo nos meios utilizados, nos processos, mas sobretudo na forma de pensar o trabalho”, realça António Costa, diretor associado da empresa de recrutamento Michael Page, reforçando que “a conjuntura obrigou empresas e colaboradores a adaptarem-se a um cenário que estava em desenvolvimento”.

E fê-lo de forma irreversível. “O teletrabalho veio para ficar nalgumas áreas”, vinca João Cerejeira, professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. O economista defende que a experiência de teletrabalho durante a pandemia foi “suficientemente forte” para introduzir nas empresas modelos de trabalho mais flexíveis, como o teletrabalho ou o regime misto (remoto e presencial), que a maioria das empresas apontam como o modelo a seguir no futuro. Certo é que esta alteração torna “necessária uma adaptação do Código do Trabalho”, considera Francisco Madelino, professor do ISCTE-IUL e antigo presidente do Instituto do Emprego e Formação Profissional, apontando que essa necessidade se estende também ao trabalho nas plataformas digitais.

2 - POLARIZAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO ACENTUOU-SE

O efeito perverso desta mudança radical na forma de trabalhar, alavancada pela pandemia e suportada pela tecnologia, é uma polarização sem igual no mercado de trabalho. Com a recuperação económica a caminhar a duas velocidades — “com sectores como o tecnológico e as áreas de suporte, a logística, a saúde ou o e-commerce a recuperarem de forma mais rápida e outros, como a hotelaria e a restauração, algum retalho físico ou as funções puramente administrativas ou de inserção de dados a ficarem para trás” nas opções de recrutamento das empresas, sinaliza Rui Teixeira, diretor-geral de Operações do ManpowerGroup — o desequilíbrio de oportunidades para os profissionais é cada vez mais evidente. “O aumento do emprego em Portugal tem passado, sobretudo, por pessoas muito qualificadas, com formação ao nível do ensino superior”, aponta, por sua vez, Francisco Madelino. E destaca que “o emprego no país, em termos de qualificações dos trabalhadores, está a alterar-se de forma profunda”.

A pandemia, nota Rui Teixeira, acentuou “uma polarização na força de trabalho, entre aqueles que têm as competências mais procuradas e os que as não têm, com os primeiros a beneficiarem claramente de mais oportunidades para negociarem salários, gerir a vida pessoal e profissional com mais flexibilidade, bem como trabalhar remotamente ou em contextos híbridos”. Por outro lado, diz, “esta recuperação a duas velocidades e a crescente digitalização dos negócios implicam ainda um outro desafio para as empresas no pós-pandemia: uma escassez de talento sem precedentes, que se agrava à medida que a procura de competências técnicas aumenta, sem que haja no mercado a resposta em termos de competências disponíveis”. O que torna a necessidade de qualificação e requalificação da base nacional de talento num dos desafios mais críticos para as empresas no futuro.

3 - DESIGUALDADES AGRAVARAM-SE (E PODEM AGRAVAR-SE MAIS)

O economista Paulino Teixeira identifica também um agravamento das desigualdades entre trabalhadores. “O aumento da procura de serviços online, que se verificou nos confinamentos, vai ficar”, diz, admitindo que traz “consequências para os grupos profissionais mais vulneráveis”. E recorda que “o aumento da procura nas plataformas digitais foi satisfeito recorrendo a determinado tipo de trabalhadores, muitas vezes pessoas em trabalho a tempo parcial involuntário, ou que acumulam vários empregos e trabalham muitas horas. E é um trabalho precário”. Já os trabalhadores com funções desempenhadas em teletrabalho, diz, “estão mais protegidos”, pois, alerta, “esta desigualdade que se agravou entre trabalhadores vai persistir”.

Paulino Teixeira fala num fenómeno mais geral de externalização de serviços (outsourcing) que não abrange apenas trabalhadores de segurança, das limpezas ou de call centers e “tem vindo a alargar-se a mais sectores, introduzindo um terceiro elemento nas relações de trabalho: as empresas de trabalho temporário”. E sinaliza que “serão necessárias medidas concretas, direcionadas a determinado público-alvo, em particular os jovens, para evitar uma crescente desigualdade”.

Este agravar de desigualdades, continua Paulino Teixeira, “acarreta perigos ao nível da proteção dos trabalhadores”. E defende que “tal como houve políticas públicas para a retenção de emprego por causa da pandemia, talvez seja altura de desenhar políticas para contrariar algum desequilíbrio que se criou”.

Os especialistas em recrutamento ouvidos pelo Expresso alertam também para os riscos de desigualdades provocados pelo trabalho remoto, sobretudo se este se tornar um modelo de aplicação desequilibrada entre géneros, já que pode conduzir a situações de discriminação na progressão profissional, acesso a cargos de liderança e até salarial, com prejuízo para as mulheres.

4 - PRIORIDADE É O DIGITAL. MASC HUMANOS SÃO IMPRESCINDÍVEIS

Entre as transformações alavancadas pela pandemia, João Cerejeira sinaliza também “uma alteração da composição da força de trabalho das empresas”, com as competências digitais a ganharem relevância sobre o atendimento ao público, “até com encerramento de lojas presenciais”, vinca. Uma transformação que, segundo Cerejeira, é notória em sectores como a banca, com o recente movimento de despedimentos.

Rui Teixeira reconhece que “todos os negócios, hoje, tendem a ser tecnológicos”. Ainda assim, o especialista em recrutamento defende que “há uma crescente consciencialização por parte das empresas da necessidade de obter um correto equilíbrio entre a tecnologia e uma abordagem humana”. E acrescenta: “Assistimos a uma crescente digitalização da experiência do consumidor e a uma procura contínua por parte das organizações, da melhor combinação entre talento e tecnologia.”

5 - RECRUTAMENTO É GLOBAL E LIDERADO PELO TALENTO

Como consequência da pandemia e do teletrabalho — que permite a um profissional trabalhar a partir do seu país para uma empresa em qualquer canto do mundo — o recrutamento tornou-se efetivamente global. Ou seja, as empresas competem pela contratação de talento em qualquer ponto do globo. Esta prática, que já acontecia em algumas áreas muito específicas do sector tecnológico, ganhou escala e tende a acentuar-se.

Uma tendência que coloca sérios desafios de atração e retenção de talento aos empregadores no país. “As empresas pagam pelo talento, não pela localização”, sinaliza Nuno Troni, diretor de recrutamento da Randstad. É por isso que “há talento português a ser aliciado para trabalhar para empresas nórdicas por salários 50%, 60% e até 70% superiores aos praticados em Portugal, na mesma função”, refere. E podem fazê-lo sem sair do país. Ora, estes são valores com os quais dificilmente uma pequena ou média empresa portuguesa consegue competir. É por isso que os recrutadores antecipam um intensificar da guerra pelo talento como efeito da pandemia.

6 -  EMPRESAS CONTRATAM COMPETÊNCIAS EMOCIONAIS

Num mundo cada vez mais digital, a pandemia “levou as empresas a procurar novas competências nos profissionais”, explica Carlos Maia, diretor regional da Hays Portugal. Há novas competências técnicas no radar de prioridades das empresas, como a cibersegurança, a inteligência artificial, machine learning (aprendizagem máquina), análise de dados, transformação digital, marketing digital, entre outras.

Mas, ao mesmo tempo, os especialistas ouvidos pelo Expresso sinalizam que as competências emocionais estão a ganhar destaque entre as empresas no momento de contratar. A incerteza gerada pela pandemia e a migração para o digital — sobretudo no contacto com os clientes — levaram os empregadores a dar prioridade a perfis com competências evidentes nos campos da comunicação, gestão de prioridades, capacidade de adaptação, orientação para a solução, resiliência, empatia, capacidade de trabalho em equipa. No fundo, as ditas competências emocionais, sinaliza Carlos Maia.

7 -SALÁRIOS INDEXADOS À PANDEMIA

Em matéria salarial, “há uma tendência natural para que as funções mais procuradas, como é o caso das tecnológicas e especializadas, tenham as suas condições incrementadas e a possibilidade de serem mais bem remuneradas”, diz Rui Teixeira. É o caso, por exemplo das funções ligadas à tecnologia, cibersegurança, desenvolvimento de software, análise de dados, mas também saúde, logística e comércio eletrónico. Inversamente, funções indiferenciadas ou puramente administrativas enfrentam, segundo o especialista, uma estagnação de salários.

Também Carlos Maia sinaliza tendências: “As funções ligadas ao sector do turismo viram o seu poder negocial reduzir bastante, devido à forte crise que o sector atravessou. Por outro lado, os mercados claramente liderados pelo candidato — funções com elevada procura e poucos perfis disponíveis — estão a ver o seu pacote salarial e poder negocial subir consideravelmente”. Neste grupo estão perfis tecnológicos, de marketing digital, algumas engenharias, indústria e até a construção.

Há ainda outra tendência a assinalar: “Em Portugal ainda não nos apercebemos de um impacto claro nos salários, mas no Reino Unido e nos Estados Unidos, estudos recentes demonstram que as pessoas estariam disponíveis para reduzir uma percentagem do seu salário se a empresa lhes permitisse continuar em trabalho remoto de uma forma consistente”, nota António Costa.

8 - CONCILIAÇÃO DOMINA PACOTES DE BENEFÍCIOS NAS EMPRESAS

“O valor do salário não perdeu relevância na negociação da proposta de emprego”, admite o especialista da Hays, Carlos Maia. No entanto há vários benefícios extrassalariais que estão a ganhar destaque nos processos de negociação. Na verdade, a pandemia forçou uma mudança de prioridades na definição de pacotes de benefícios por parte das empresas, com a conciliação familiar a ganhar relevo.

Os profissionais começaram a valorizar mais a flexibilidade laboral e não a querem perder. Por isso, um número crescente de empresas está a incluir nos seus pacotes de benefícios modelos de trabalho exclusivamente remotos ou híbridos, mais orientados para o resultado e não para as horas despendidas a trabalhar, explica Rui Teixeira.

Em paralelo, nos planos de benefícios começam também a ganhar destaque a aplicação de licenças parentais prolongadas e de apoio à família, o direito a desligar, serviços de bem-estar físico e mental, planos de saúde alargados, além de opções orientadas para o desenvolvimento e formação contínua.

9 - CONDIÇÕES DE TRABALHO E SAÚDE GANHARAM PROTAGONISMO

Já mais de 1 milhão de portugueses estiveram infetados com covid-19 e muitos milhares em quarentena profilática. Situações que “levaram as empresas a perceber a importância de tudo o que se relaciona com a saúde dos trabalhadores”, aponta João Cerejeira. Por isso, este especialista considera que “uma maior atenção das empresas às condições de trabalho e à higiene e segurança, bem como à saúde dos trabalhadores, é uma mudança impulsionada pela pandemia e que vai persistir”.

A forte incidência do teletrabalho e consequente isolamento dos profissionais colocou também em evidência a questão da saúde mental dos trabalhadores. Muitos especialistas apontam, por isso, que mesmo que o teletrabalho tenha vindo para ficar, a interação social não se pode perder. É por essa razão que a maioria das empresas defende como o modelo mais equilibrado o regime híbrido, que combina trabalho presencial e remoto. É esse o caminho que muitas empresas em Portugal estão a preparar.

10 - ESTADO VOLTOU A SER EMPREGADOR

O emprego na Administração Pública em Portugal está perto do seu máximo histórico e já recuperou toda a quebra sofrida durante os anos da troika. Tem sido a Saúde a dar o maior impulso ao aumento do número de trabalhadores na função pública nos últimos anos. “A sociedade ficou mais aberta a um aumento dos recursos humanos na Administração Pública, nomeadamente na Saúde. Uma necessidade que ficou evidente com a pandemia”, aponta Francisco Madelino. E destaca: “Há uma alteração comportamental da opinião pública com consequências no mercado de trabalho” (texto das jornalistas CÁTIA MATEUS E SÓNIA M. LOURENÇO do Expresso)

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