terça-feira, outubro 14, 2014

Partidos usam esquema da lei para receberem mais do Estado



“Há dez anos que a Entidade das Contas puxa as orelhas aos partidos por imputarem donativos nas campanhas eleitorais às contas anuais. Situação piora, em vez de ser corrigida. Os partidos manipulam o registo de donativos para assim receberem mais dinheiro da subvenção do Estado nas campanhas eleitorais. Quem o diz é a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ENFP), que tem vindo a detetar o mesmo esquema em vários partidos. A tática (dentro dos limites da lei) é declarar poucos euros ou mesmo zero euros de donativos para as campanhas eleitorais, enquanto nesse mesmo ano ou nos meses anteriores disparam os donativos nas contas dos partidos. O objetivo é sempre o mesmo: aumentar o prejuízo das contas das campanhas eleitorais, de modo a maximizar o dinheiro a receber do Estado através da subvenção pública. O Observador consultou no Tribunal Constitucional os processos relativos às contas dos partidos do arco do poder, PS, PSD e CDS, desde 2004 e também os processos relativos às contas das campanhas eleitorais das eleições legislativas de 2005, 2009 e 2011 (estas últimas ainda não disponíveis) e, nos vários relatórios que produziu, a Entidade das Contas (órgão que pertence ao Tribunal Constitucional) alerta para a prática destes partidos que os leva a receber mais de subvenção do Estado do que teriam direito. Ao longo dos anos, os partidos têm vindo a registar cada vez menos dinheiro, a título de donativos e angariação de fundos, nas contas de campanhas eleitorais (que são autónomas da conta anual do partido e fiscalizadas também de maneira autónoma) e registam os valores que recebem a esse propósito nas contas do exercício anual dos partidos. Tudo não passa de uma manobra financeira de registo dos donativos que recebem. Mas é uma formalidade que pode render milhares de euros aos cofres dos partidos. E a Entidade das Contas, presidida por Margarida Salema, desconfia que os partidos o fazem para não devolverem parte da subvenção ao Estado que é paga sobre os gastos das campanhas eleitorais. Nos vários processos consultados, o Observador encontrou vários casos ilustrativos. Em 2004, por exemplo, a Entidade das Contas desconfiou desta prática porque vários donativos, registados nas contas anuais dos partidos, foram feitos nos últimos dias de dezembro, imediatamente a seguir ao anúncio do então Presidente da República de convocar eleições antecipadas, que ficariam marcadas para fevereiro de 2005.
Donativos em cima de eleições
O final do ano de 2004 não foi apenas agitado politicamente com a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, e a queda do Governo de Santana Lopes, como também por algumas polémicas nas contas dos partidos. Além do caso mais conhecido de um milhão de euros em dinheiro vivo depositado na conta do CDS (já lá vamos), houve também agitação no Largo do Rato.
Treze donativos, no valor total de cerca de 90 mil euros, foram registados na conta anual do PS em dezembro de 2004. A estranheza da Entidade das Contas, referida nos relatórios sobre as contas anuais do partido e sobre a conta da campanha eleitoral das legislativas de 2005, prendia-se com o facto de só em alguns dias de dezembro ter havido mais donativos do que no resto do ano. Além disso, o dinheiro teve quase a mesma proveniência: cinco dos 13 donativos de 10.968 euros (o limite máximo por pessoa) foi foram feitos por membros da família Vasconcelos da Mota, da empresa Mota-Engil. (ver outro artigo) Houve ainda mais quatro donativos de 9.000 euros nessa altura de Alípio Gomes Monte, Manuel Gomes Monte (empresários do Grupo Monte), de Carlos Alberto Alves Gonçalves (empresário da ADRIPARTE) e de Luís Manuel Vieira Santo Amaro (também da ADRIPARTE).
“A análise documental aos donativos reportados pela sede do partido permitiu-nos constatar que, de um total de 104.214 euros, cerca de 90.840 foram recebidos nos últimos dias do mês de dezembro de 2004. Não estamos em condições de concluir em que medida estes donativos foram efetivamente obtidos no âmbito do financiamento das atividades correntes, conforme estão classificados ou se tinham por objetivo o financiamento da campanha eleitoral para as eleições legislativas de fevereiro de 2005″, lê-se no relatório da ECFP. Na resposta a este relatório, os socialistas argumentaram apenas que aqueles donativos não podiam ser contabilizados na campanha, mas na conta anual do partido até pela data em que foram feitos. Acrescentam ainda, no processo relativo às contas anuais, que houve um “aumento da atividade política” que originou também um aumento “das ações de angariação de fundos”. Na lei que regula o financiamento feito aos partidos não é referida a baliza temporal em que é considerada despesa de campanha, diz apenas receitas “referentes à campanha” o que pode assim referir-se aos quinze dias de campanha oficial. No entanto, uma interpretação mais lata pode sugerir que se trata do tempo a partir da data da marcação de eleições.
O milhão do CDS em cima das eleições
É talvez o caso de financiamento dos partidos que mais deu que falar. Em dezembro de 2004, deu entrada nas contas do CDS um milhão de euros. Foram 150 depósitos que foram feitos num único balcão e que foram descobertos pela Polícia Judiciária quando investigou o caso Portucale. A estranheza do valor registado como donativo é também refletida no acórdão da Entidade das Contas sobre a conta desse ano do CDS. A Entidade desconfiou desses donativos caracterizando-os até como “anómalos”. “Solicitamos explicações para o reconhecimento de um valor tão elevado de receita de angariação de fundos nas contas anuais de 2004 (cerca de um milhão de euros, no mês de dezembro) anómalo em relação ao historial do partido, em pleno período de campanha eleitoral para as legislativas”, escreveu a ECFP. O CDS nem esconde que foi isso mesmo que aconteceu. Na resposta dada ao Tribunal Constitucional, os responsáveis pelo partido dizem que se deve ao facto de “à data já ser previsível a antecipação das eleições legislativas e de o partido ter intensificado a partir do último trimestre as ações de angariação dos meios financeiros indispensáveis para o efeito, nomeadamente através de donativos”. O CDS entregou a lista com nomes que diziam respeito aos donativos e justificou o depósito apressado com o facto de o dinheiro de jantares e angariações de fundos ter ficado guardado num cofre e de ter sido depositado num curto espaço de tempo por causa da entrada em vigor de uma alteração da lei do financiamento dos partidos. O Observador consultou esse processo referente às contas do partido no Tribunal Constitucional, mas a lista com os nomes das pessoas que fizeram donativos não consta do processo. No caso do PSD, a Entidade das Contas encontrou outro problema: a falta de registo de cerca de 55 mil euros em angariação de fundos na conta da campanha para as legislativas de 2005, que registou ao todo 500 mil euros de donativos. O não registo dos nomes e dos talões de recibo dessas doações levaram a que fosse inviabilizado “o controlo pelo Tribunal Constitucional de tais donativos e respetivos montantes”. A entrada em vigor das alterações à lei baralhou também o PSD que se justificou com elas. Miguel Macedo, então secretário-geral do partido, escreveu que “gerou-se uma mera inércia, sem que disso houvesse plena consciência, traduzindo um erro não censurável de estar a violar-se a lei”.
Cruzamento de registos
Se nas contas da campanha eleitoral de 2004, a Entidade fez os reparos graves a esta prática dos partidos, a entidade responsável por fiscalizar as contas dos partidos teve que fazer vários alertas semelhantes nos anos seguintes pois a situação não melhorou, ou seja, os partidos não se corrigiram. Houve vários cruzamentos de registos ao longo dos anos. Na análise às contas das campanhas para as eleições legislativas de 2005 e 2009, a Entidade das Contas conclui que ou os donativos foram “subavaliados” ou “não foram registados ou poderão estar a ser contabilizados como receita do partido”. Estas expressões são, aliás, comuns a quase todos os processos consultados pelo Observador – contas dos partidos de 2004, 2005, 2008 e 2009. Os processos globais às contas anuais referentes aos anos de 2010 a 2013 ainda não se encontram disponíveis. Mas é em 2011 que a entidade fiscalizadora sobe o tom. E refere, tanto nas contas do PSD como do PS, que “os donativos/fundos recebidos durante a campanha ou não foram registados ou poderão estar a ser contabilizados no partido e não na campanha, procedimento este que, a confirmar-se, não seria adequado, e que visaria maximizar a subvenção do Estado atribuída à campanha”. Nas irregularidades detetadas pela Entidade das Contas, há ainda várias referências ao facto de os partidos não registarem os donativos em contas específicas para o efeito ou de não darem total informação sobre os doadores ao Tribunal Constitucional. Ainda nas contas de 2005, por exemplo, o PS decidiu inscrever na conta anual do partido o valor que tinha recebido em campanha e a ECFP recusou, dizendo que o mesmo valor não pode ser fiscalizado duas vezes. 
Até aos donativos zero 
Se em ano de eleições (ou no ano anterior), os partidos tendem a aumentar os registos de donativos nas contas anuais e têm vindo a baixar o valor dos donativos nas contas das campanhas eleitorais, o caso mais caricato é mesmo o do CDS que, na campanha para as legislativas de 2011, não recebeu qualquer donativo. 
Na campanha eleitoral de 2005, PS e PSD ainda registaram proveitos vindos de donativos e angariação de fundos na ordem do meio milhão de euros, mas quatro anos depois, o cenário era diferente. Em 2009, o PSD e o CDS já só registam angariação de fundos e donativos na ordem dos mil euros e em 2011 estes partidos quase que anulam a existência desta rubrica: o PSD regista em 2009 um donativo de 160 euros de Lucinda Dâmaso (presidente da UGT) e o CDS já não regista qualquer valor. Na justificação, o CDS refere que, nas contas da campanha de 2011, houve uma redução drástica justificada pela “grave situação económica e financeira do país”. Ou seja, que o CDS se “pugnou por uma efetiva redução dos montantes envolvidos nas campanhas eleitorais”. Também o PS justifica, em 2009, a redução drástica dos valores com a “situação económica que o país atravessou em 2009″. Apesar disso, fez diferente dos outros dois partidos e apresentou uma lista de oito nomes com donativos (ver outro artigo), entre eles Rui Pedro Soares, Armando Vara e Carlos Santos Ferreira. 
O que diz a lei?
No que diz respeito a campanhas eleitorais, os partidos não podem ter lucro. Por isso, se entre receitas e despesas houver um valor positivo, os partidos são obrigados a devolver ao Estado o remanescente. É por isso que, acredita a Entidade das Contas, os partidos têm vindo a baixar o mais possível o valor de uma das parcelas: a dos donativos e angariação de fundos. Para exemplificar, imagine que um partido tinha direito a 500 mil euros de subvenção (calculada em função dos resultados eleitorais) e que tinha registado 600 mil euros de donativos. Teria um resultado positivo em 100 mil euros e teria de o devolver ao Estado. Mas se o mesmo partido não registar esses 600 mil euros de donativos nas contas da campanha, mas nas contas anuais do partido, já não teria de o fazer. Tudo porque a conta seria fechada do seguinte modo do lado da receita: 500 mil euros de subvenção mais 500 mil euros de injeção do partido. E assim não devolveria nenhum excedente ao Estado. De acordo com a lei em vigor em 2003, o limite máximo de donativo por pessoa nas campanhas eleitorais era de 60 salários mínimos nacionais, ou seja, de 22.482 euros. Agora, é de 60 Indexante de Apoios Sociais (25.153 euros). No que toca ao exercício anual do partido, os donativos de natureza pecuniária feitos por pessoas singulares identificadas estão sujeitos ao limite anual de 25 vezes o valor do IAS (419.22 euros), ou seja, 10.405 euros. Os donativos de empresas são proibidos” (texto das jornalistas Liliana Valente e Rita Dinis do Observador, com a devida vénia)