“Há dez
anos que a Entidade das Contas puxa as orelhas aos partidos por imputarem
donativos nas campanhas eleitorais às contas anuais. Situação piora, em vez de
ser corrigida. Os partidos manipulam o registo de donativos para assim
receberem mais dinheiro da subvenção do Estado nas campanhas eleitorais. Quem o
diz é a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ENFP), que tem vindo a
detetar o mesmo esquema em vários partidos. A tática (dentro dos limites da
lei) é declarar poucos euros ou mesmo zero euros de donativos para as campanhas
eleitorais, enquanto nesse mesmo ano ou nos meses anteriores disparam os
donativos nas contas dos partidos. O objetivo é sempre o mesmo: aumentar o
prejuízo das contas das campanhas eleitorais, de modo a maximizar o dinheiro a
receber do Estado através da subvenção pública. O Observador consultou no
Tribunal Constitucional os processos relativos às contas dos partidos do arco
do poder, PS, PSD e CDS, desde 2004 e também os processos relativos às contas
das campanhas eleitorais das eleições legislativas de 2005, 2009 e 2011 (estas
últimas ainda não disponíveis) e, nos vários relatórios que produziu, a
Entidade das Contas (órgão que pertence ao Tribunal Constitucional) alerta para
a prática destes partidos que os leva a receber mais de subvenção do Estado do
que teriam direito. Ao longo dos anos, os partidos têm vindo a registar cada
vez menos dinheiro, a título de donativos e angariação de fundos, nas contas de
campanhas eleitorais (que são autónomas da conta anual do partido e
fiscalizadas também de maneira autónoma) e registam os valores que recebem a
esse propósito nas contas do exercício anual dos partidos. Tudo não passa de
uma manobra financeira de registo dos donativos que recebem. Mas é uma
formalidade que pode render milhares de euros aos cofres dos partidos. E a
Entidade das Contas, presidida por Margarida Salema, desconfia que os partidos
o fazem para não devolverem parte da subvenção ao Estado que é paga sobre os
gastos das campanhas eleitorais. Nos vários processos consultados, o Observador
encontrou vários casos ilustrativos. Em 2004, por exemplo, a Entidade das
Contas desconfiou desta prática porque vários donativos, registados nas contas
anuais dos partidos, foram feitos nos últimos dias de dezembro, imediatamente a
seguir ao anúncio do então Presidente da República de convocar eleições
antecipadas, que ficariam marcadas para fevereiro de 2005.
Donativos
em cima de eleições
O final
do ano de 2004 não foi apenas agitado politicamente com a dissolução da
Assembleia da República pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, e a queda
do Governo de Santana Lopes, como também por algumas polémicas nas contas dos
partidos. Além do caso mais conhecido de um milhão de euros em dinheiro vivo
depositado na conta do CDS (já lá vamos), houve também agitação no Largo do
Rato.
Treze
donativos, no valor total de cerca de 90 mil euros, foram registados na conta
anual do PS em dezembro de 2004. A estranheza da Entidade das Contas, referida
nos relatórios sobre as contas anuais do partido e sobre a conta da campanha
eleitoral das legislativas de 2005, prendia-se com o facto de só em alguns dias
de dezembro ter havido mais donativos do que no resto do ano. Além disso, o
dinheiro teve quase a mesma proveniência: cinco dos 13 donativos de 10.968
euros (o limite máximo por pessoa) foi foram feitos por membros da família
Vasconcelos da Mota, da empresa Mota-Engil. (ver outro artigo) Houve ainda mais
quatro donativos de 9.000 euros nessa altura de Alípio Gomes Monte, Manuel
Gomes Monte (empresários do Grupo Monte), de Carlos Alberto Alves Gonçalves
(empresário da ADRIPARTE) e de Luís Manuel Vieira Santo Amaro (também da
ADRIPARTE).
“A
análise documental aos donativos reportados pela sede do partido permitiu-nos
constatar que, de um total de 104.214 euros, cerca de 90.840 foram recebidos
nos últimos dias do mês de dezembro de 2004. Não estamos em condições de
concluir em que medida estes donativos foram efetivamente obtidos no âmbito do
financiamento das atividades correntes, conforme estão classificados ou se
tinham por objetivo o financiamento da campanha eleitoral para as eleições
legislativas de fevereiro de 2005″, lê-se no relatório da ECFP. Na resposta a este
relatório, os socialistas argumentaram apenas que aqueles donativos não podiam
ser contabilizados na campanha, mas na conta anual do partido até pela data em
que foram feitos. Acrescentam ainda, no processo relativo às contas anuais, que
houve um “aumento da atividade política” que originou também um aumento “das
ações de angariação de fundos”. Na lei que regula o financiamento feito aos
partidos não é referida a baliza temporal em que é considerada despesa de
campanha, diz apenas receitas “referentes à campanha” o que pode assim
referir-se aos quinze dias de campanha oficial. No entanto, uma interpretação
mais lata pode sugerir que se trata do tempo a partir da data da marcação de
eleições.
O milhão
do CDS em cima das eleições
É talvez
o caso de financiamento dos partidos que mais deu que falar. Em dezembro de
2004, deu entrada nas contas do CDS um milhão de euros. Foram 150 depósitos que
foram feitos num único balcão e que foram descobertos pela Polícia Judiciária
quando investigou o caso Portucale. A estranheza do valor registado como
donativo é também refletida no acórdão da Entidade das Contas sobre a conta
desse ano do CDS. A Entidade desconfiou desses donativos caracterizando-os até
como “anómalos”. “Solicitamos explicações para o reconhecimento de um valor tão
elevado de receita de angariação de fundos nas contas anuais de 2004 (cerca de
um milhão de euros, no mês de dezembro) anómalo em relação ao historial do
partido, em pleno período de campanha eleitoral para as legislativas”, escreveu
a ECFP. O CDS nem esconde que foi isso mesmo que aconteceu. Na resposta dada ao
Tribunal Constitucional, os responsáveis pelo partido dizem que se deve ao
facto de “à data já ser previsível a antecipação das eleições legislativas e de
o partido ter intensificado a partir do último trimestre as ações de angariação
dos meios financeiros indispensáveis para o efeito, nomeadamente através de
donativos”. O CDS entregou a lista com nomes que diziam respeito aos donativos
e justificou o depósito apressado com o facto de o dinheiro de jantares e
angariações de fundos ter ficado guardado num cofre e de ter sido depositado
num curto espaço de tempo por causa da entrada em vigor de uma alteração da lei
do financiamento dos partidos. O Observador consultou esse processo referente
às contas do partido no Tribunal Constitucional, mas a lista com os nomes das
pessoas que fizeram donativos não consta do processo. No caso do PSD, a
Entidade das Contas encontrou outro problema: a falta de registo de cerca de 55
mil euros em angariação de fundos na conta da campanha para as legislativas de
2005, que registou ao todo 500 mil euros de donativos. O não registo dos nomes
e dos talões de recibo dessas doações levaram a que fosse inviabilizado “o
controlo pelo Tribunal Constitucional de tais donativos e respetivos
montantes”. A entrada em vigor das alterações à lei baralhou também o PSD que
se justificou com elas. Miguel Macedo, então secretário-geral do partido,
escreveu que “gerou-se uma mera inércia, sem que disso houvesse plena
consciência, traduzindo um erro não censurável de estar a violar-se a lei”.
Cruzamento
de registos
Se nas
contas da campanha eleitoral de 2004, a Entidade fez os reparos graves a esta
prática dos partidos, a entidade responsável por fiscalizar as contas dos
partidos teve que fazer vários alertas semelhantes nos anos seguintes pois a
situação não melhorou, ou seja, os partidos não se corrigiram. Houve vários
cruzamentos de registos ao longo dos anos. Na análise às contas das campanhas
para as eleições legislativas de 2005 e 2009, a Entidade das Contas conclui que
ou os donativos foram “subavaliados” ou “não foram registados ou poderão estar
a ser contabilizados como receita do partido”. Estas expressões são, aliás,
comuns a quase todos os processos consultados pelo Observador – contas dos
partidos de 2004, 2005, 2008 e 2009. Os processos globais às contas anuais
referentes aos anos de 2010 a 2013 ainda não se encontram disponíveis. Mas é em
2011 que a entidade fiscalizadora sobe o tom. E refere, tanto nas contas do PSD
como do PS, que “os donativos/fundos recebidos durante a campanha ou não foram
registados ou poderão estar a ser contabilizados no partido e não na campanha,
procedimento este que, a confirmar-se, não seria adequado, e que visaria
maximizar a subvenção do Estado atribuída à campanha”. Nas irregularidades
detetadas pela Entidade das Contas, há ainda várias referências ao facto de os
partidos não registarem os donativos em contas específicas para o efeito ou de
não darem total informação sobre os doadores ao Tribunal Constitucional. Ainda
nas contas de 2005, por exemplo, o PS decidiu inscrever na conta anual do
partido o valor que tinha recebido em campanha e a ECFP recusou, dizendo que o
mesmo valor não pode ser fiscalizado duas vezes.
Até aos
donativos zero
Se em
ano de eleições (ou no ano anterior), os partidos tendem a aumentar os registos
de donativos nas contas anuais e têm vindo a baixar o valor dos donativos nas
contas das campanhas eleitorais, o caso mais caricato é mesmo o do CDS que, na
campanha para as legislativas de 2011, não recebeu qualquer donativo.
Na
campanha eleitoral de 2005, PS e PSD ainda registaram proveitos vindos de
donativos e angariação de fundos na ordem do meio milhão de euros, mas quatro
anos depois, o cenário era diferente. Em 2009, o PSD e o CDS já só registam
angariação de fundos e donativos na ordem dos mil euros e em 2011 estes
partidos quase que anulam a existência desta rubrica: o PSD regista em 2009 um
donativo de 160 euros de Lucinda Dâmaso (presidente da UGT) e o CDS já não
regista qualquer valor. Na justificação, o CDS refere que, nas contas da
campanha de 2011, houve uma redução drástica justificada pela “grave situação
económica e financeira do país”. Ou seja, que o CDS se “pugnou por uma efetiva
redução dos montantes envolvidos nas campanhas eleitorais”. Também o PS
justifica, em 2009, a redução drástica dos valores com a “situação económica
que o país atravessou em 2009″. Apesar disso, fez diferente dos outros dois
partidos e apresentou uma lista de oito nomes com donativos (ver outro artigo),
entre eles Rui Pedro Soares, Armando Vara e Carlos Santos Ferreira.
O que
diz a lei?
No que
diz respeito a campanhas eleitorais, os partidos não podem ter lucro. Por isso,
se entre receitas e despesas houver um valor positivo, os partidos são
obrigados a devolver ao Estado o remanescente. É por isso que, acredita a
Entidade das Contas, os partidos têm vindo a baixar o mais possível o valor de
uma das parcelas: a dos donativos e angariação de fundos. Para exemplificar,
imagine que um partido tinha direito a 500 mil euros de subvenção (calculada em
função dos resultados eleitorais) e que tinha registado 600 mil euros de
donativos. Teria um resultado positivo em 100 mil euros e teria de o devolver
ao Estado. Mas se o mesmo partido não registar esses 600 mil euros de donativos
nas contas da campanha, mas nas contas anuais do partido, já não teria de o
fazer. Tudo porque a conta seria fechada do seguinte modo do lado da receita:
500 mil euros de subvenção mais 500 mil euros de injeção do partido. E assim
não devolveria nenhum excedente ao Estado. De
acordo com a lei em vigor em 2003, o limite máximo de donativo por pessoa nas
campanhas eleitorais era de 60 salários mínimos nacionais, ou seja, de 22.482
euros. Agora, é de 60 Indexante de Apoios Sociais (25.153 euros). No que
toca ao exercício anual do partido, os donativos de natureza pecuniária feitos
por pessoas singulares identificadas estão sujeitos ao limite anual de 25 vezes
o valor do IAS (419.22 euros), ou seja, 10.405 euros. Os donativos de empresas
são proibidos” (texto das jornalistas Liliana Valente e Rita Dinis do Observador, com
a devida vénia)