Segundo a Visão, num texto do jornalista Paulo Pena, "as conversas, reuniões e pressões dos banqueiros
portugueses, nos dias "negros" de setembro de 2008, há cinco anos,
quando o Lehman Brothers faliu, e 40% da riqueza mundial
"desapareceu". Desde então, pouco ou nada mudou. Exceto, claro, nas
nossas vidas...
Por estes dias, o nome de Vítor Constâncio, vice-presidente do BCE,
circula em Bruxelas e Frankfurt como "um dos nomes mais fortes" para
encabeçar o Mecanismo Único de Supervisão da Banca europeia, aprovado na
quinta-feira, 12, em Estrasburgo. Segundo deputados da Comissão de Economia do
Parlamento Europeu, Constâncio é mesmo o candidato principal a este cargo, uma
das principais novidades, provocadas pela crise de 2008. Na quarta-feira da semana passada, 11, outras memórias da crise
regressaram ao noticiário. O BCP, o BPN e o BPP estão entregues aos tribunais. A lista é
fastidiosa: Oliveira e Costa, Dias Loureiro e vários ex-responsáveis do BPN,
Jardim Gonçalves e cinco ex-administradores do BCP, João Rendeiro e vários
ex-administradores do BPP. Nenhum foi condenado, embora todos tenham sido
acusados e tenham contra si infindáveis páginas de processos do Banco de
Portugal (BdP) e da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).
Há cinco anos, tudo era diferente.
No início de agosto de 2008, as cinco estrelas do Lake Resort, em
Vilamoura, eram poucas para dividir pelas figuras da alta finança que ali
comemoravam. O aniversário de Paula Caetano, mulher de Horácio Roque, o
homem-forte do Banif, juntou muitos improváveis parceiros de brinde. A festa
parece, a esta distância, o fim de uma era.
Américo Amorim, o acionista do BIC, de capitais luso-angolanos, que
viria a comprar o BPN, convivia com Alípio Dias. Este, ex-administrador do BCP,
acabara de perder a guerra pelo controlo do banco para, entre outros, os capitais
angolanos da Sonangol. Lado a lado (e a receber efusivos "beijinhos",
segundo uma nota do Expresso), Alípio e Joe Berardo, o acionista que liderou a
campanha contra Jardim Gonçalves e deitou por terra o valor das ações do BCP.
Nessa guerra pelo BCP, João Rendeiro, homem forte do BPP, era aliado de
Berardo. Contra Alípio Dias que tinha, em tempos, tentado evitar que o BPP
abrisse as portas. Todos juntos, celebravam.
Faltava um mês e meio para a falência do Lehman Brothers.
O clima internacional era sombrio, havia, pelo menos, um ano, com as
notícias ainda que difusas das complicações no mercado hipotecário
norte-americano. A economia estava estagnada. As taxas de juro subiam.Os preços das matérias-primas disparavam. Eram sinais de perigo.
Portugal e as Seychelles
Em Portugal, os tempos ainda não eram difíceis para a banca, que valia
cerca de três vezes mais que a economia do País. "O setor financeiro, sobretudo a banca, é sem dúvida o mais
poderoso da economia portuguesa, e tutela a política económica", explica
Nuno Teles, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra. Nuno apresentou, na passada quinta-feira, em Londres, a sua tese de
doutoramento sobre "financeirização da economia". Esse poder aumentou, graças à moeda única europeia: "O setor
financeiro nacional teve a oportunidade de se endividar no exterior, de forma
quase ilimitada, a preços muito baixos. Contudo, aliado à tradicional falta de
competitividade da nossa indústria, a banca optou por colocar todo este capital
disponível em setores onde o seu lucro estava garantido, nomeadamente a
construção e imobiliário. A banca financiava o construtor e, em seguida,
financiava o comprador, ficando com o imóvel como garantia." O resultado
foi um endividamento líquido recorde ao exterior, apenas ultrapassado pelo das
Seychelles. A indústria transformadora recebia 40% do crédito bancário destinado a
empresas, em meados dos anos noventa. Na nossa década, esse valor caiu para
metade, "em torno dos 20%", conclui Teles. Além do crédito com
"lucro garantido", a banca apostou na área do "rentismo"
(rent-seeking), nas palavras de Joseph Stiglitz, o ex-coordenador da equipa de
assessores económicos de Clinton, e prémio Nobel da Economia. São rendimentos
de "rendas" garantidas pelo Estado, como as PPP, em Portugal. E é assim que a crise de Wall Street tem um elo com a crise portuguesa.
Os credores da banca portuguesa eram, em grande medida, os mesmos do falido
mercado hipotecário norte-americano: os grandes bancos do Norte da Europa.
Um brinde com 'mimosas'
O problema desta crise começa na própria linguagem. A finança tem uma
língua própria (ver A novilíngua da crise) e movimenta números que, para
qualquer cidadão, são meras abstrações. A complexidade das operações bancárias,
que estão na origem da crise que ainda vivemos, é entediante. Tudo isso faz com
que, ainda hoje, cinco anos depois, seja difícil responder à pergunta mais
simples: o que se passou? 16 de março de 2008. O Bear Sterns, 5.º maior banco
americano, foi "salvo" in extremis, da falência. O seu rival JP
Morgan comprou por 2 dólares ações que valiam 172 dólares um ano antes. A
Reserva Federal (Fed) comprometeu-se a "limpar" 30 mil milhões de
dólares de "lixo" tóxico que infetava o balanço do banco. Numa palavra:
subprime. Na manhã desse domingo, 16, os responsáveis por alguns dos hedge-funds
que apostaram contra o Bear Sterns comemoraram a derrocada do
"inimigo" com um pequenoalmoço no Hotel Four Seasons de Manhattan,
"fazendo brindes com mimosas [um cocktail de sumo de laranja com
champanhe] preparadas com garrafas de $350 de Cristal." (Andrew Ross
Sorkin, Too Big To Fail, Penguin). Os bancos têm um poder quase divino: podem "fazer" dinheiro. A
maneira mais fácil é emprestá-lo. A nossa dívida é um "ativo". Dinheiro que, antes, não existia. No caso dos empréstimos subprime, era
a galinha dos ovos de ouro: 2 000 000 000 000 de dólares. Dois biliões. Para se
ter uma ideia: algumas das maiores empresas mundiais, juntas, como a Apple, a
Amazon, o Google e o Facebook, valem apenas metade dessa quantia. Os norte-americanos, mesmo aqueles que não tinham documentos, emprego ou
qualquer tipo de bens, foram aliciados a contrair empréstimos avultados. Entre
2003 e 2005, pediram emprestados 3,7 biliões de dólares. Mais ou menos o mesmo montante que foi acumulado nos EUA, em poupanças,
nos últimos 200 anos... (Matt Taibbi, Griftopia, Spiegel & Grau) Para se
precaverem do risco destes estranhos empréstimos, os bancos criaram
"seguros " de risco (CDS, CDO, CLO, swaps, ver glossário) que mais
não fizeram do que contaminar todo o sistema bancário. Allan Greenspan,
ex-governador da Fed, elogiou os bancos pela "inovação" e disse que
estes produtos, que ele próprio batalhou por desregular, comportavam riscos
"negligenciáveis ". As agências de rating ajudaram, dando notações
altas a estas "armas de destruição maciça", como lhe chamou Warren
Buffett, o multimilionário norte-americano. Foi uma festa, enquanto durou. Os CEOs, que não percebiam bem o que os
seus "quants", analistas quantitativos, faziam com estes produtos,
receberam bónus gigantescos pelos lucros que não paravam de aumentar. Até que
rebentou a "bolha".
Quando o mercado do subprime começou a cair, o Banco Central Europeu e a
Reserva Federal americana abriram a bolsa aos bancos, para prevenir "o
risco significativo de uma crise bancária", como lembra o economista grego
Costas Lapavitsas, no seu livro Crisis in the Eurozone. Os bancos usaram essa
"liquidez" dada pelos bancos centrais para "aumentarem os seus
empréstimos aos países da periferia" na Europa. "A garantia era de
que as bancarrotas na Zona Euro seriam impossíveis." (Lapavitsas) 15 de
setembro de 2008. O Lehman Brothers faliu. No dia seguinte, o Governo americano injetou os primeiros 85 mil milhões
de dólares na seguradora AIG. O próprio Presidente Bush não conteve o pavor:
"É suposto uma companhia de seguros fazer estas coisas?", questionou,
ao ser informado do problema dos credit default swaps.
Reuniões e inconfidências
Parte desse dinheiro, pago pelos contribuintes americanos, veio diretamente
para a Europa. Os grandes bancos europeus eram os mais expostos ao subprime. Em setembro de 2008, Portugal era um país muito diferente do que é hoje.
Tinha uma dívida pública de 68%, face ao PIB, cerca de metade da que tem
atualmente, passados cinco anos, quatro deles vividos em
"austeridade". A Europa decidira gastar, para mitigar o efeito recessivo da crise. O
efeito combinado da política "expansionista" com a diminuição dos
impostos, causada pela crise, pusera as contas públicas no vermelho.
4 da tarde, hora de Washington DC, de quinta-feira, 25 de setembro de
2008. À volta de uma mesa oval, na Casa Branca, John McCain, o candidato
republicano e Barack Obama, o seu adversário democrata, sentaram-se, rodeados
pelo Presidente, George W. Bush, o seu vice, Dick Chenney, e o poderoso
secretário do Tesouro, Hank Paulson.
Ao seu estilo, Bush deixou uma frase para a posteridade: "Se não
soltamos o dinheiro, esta porcaria pode cair ao chão." (Too Big To Fail,
Penguin) Bush tentava convencer os dois partidos a aprovar o plano de Paulson,
o TARP (Programa de Auxílio para Ativos Problemáticos), no valor de 700 mil
milhões de dólares, uma inédita injeção de dinheiros públicos no sistema
financeiro, para "limpar" das contas dos bancos o lixo "tóxico"
que tinham acumulado em operações complexas e arriscadas. Houve quem chamasse a
este "resgate" o "socialismo dos ricos". Por essa altura, em Lisboa, também havia reuniões de alto nível. Vítor
Constâncio mandou chamar, na terça-feira, 30 de setembro, ao Banco de Portugal
(BdP), cinco banqueiros: Faria de Oliveira, da CGD, Carlos Santos Ferreira, do
BCP, Fernando Ulrich, do BPI, Ricardo Salgado, do BES, e Nuno Amado, do
Santander-Totta. A conversa, rigorosamente sigilosa, fora marcada a propósito
da crise americana. Mas o habitualmente fleumático governador deixou escapar
uma preocupação: "A situação de dois pequenos bancos portugueses." Os
bancos nunca foram nomeados, mas, naquela sala, ninguém tinha dúvidas:
tratavase do BPN e do BPP. Os visados souberam, rapidamente. No sábado seguinte, 4 de outubro, uma notícia do Expresso relatava a
reunião. Miguel Cadilhe ficou indignado com esta "inconfidência". À
frente do BPN desde 24 de junho de 2008, Cadilhe tentava encontrar uma solução
para o banco e para a sociedade que o detinha (a SLN). E corre contra o tempo.
Em quatro meses, descobre 96 offshores escondidos e um banco, o Insular, que
servia para ocultar prejuízos e lucros, financiar empresas do grupo e esconder
operações. Entre os obstáculos de Cadilhe, que eram muitos, estava o receio, do BdP
de um "contágio " americano a Portugal. Não pelo lado
"tóxico", mas sim pela ainda mais intangível "confiança".
Havia corridas aos depósitos em Inglaterra, Islândia, Irlanda, resgates
multimilionários em França, na Bélgica, na Holanda, na Alemanha. "Na carteira de ativos do BPN não havia produtos derivados. Só
aplicações em créditos, depósitos e outros títulos negociáveis normais",
garante à VISÃO Manuel Meira Fernandes, o administrador financeiro da equipa de
Cadilhe.
A nacionalização
Nas reuniões entre Cadilhe e Constâncio, não era a bolha do subprime que
causava a visível "crispação". Eram as referências, diretas de
Cadilhe à quota de responsabilidade do regulador no caos que estava à vista de
todos nas contas do BPN. Aqui, os depósitos estavam a crescer, mensalmente, desde que Cadilhe e a
sua administração tinham chegado. De setembro para outubro, depois do Lehman e
da "inconfidência " de Constâncio, registou-se a primeira queda, de
quase 300 milhões de euros. Mesmo assim, o saldo ainda superava o registado em
junho desse ano, e dezembro de 2007.
A queda fez, no entanto, soar o alarme.
Pressionados por Bruxelas, os governantes queriam evitar, a todo o
custo, o mínimo sinal de uma "corrida aos depósitos". Carlos Costa Pina, na altura secretário de Estado do Tesouro, recorda:
"A crise financeira contribuiu para tornar patentes, de forma mais rápida,
as fragilidades do BPN. Tive a noção, a partir de julho de 2008, de que a
nacionalização poderia ser inevitável. E por isso dei indicações para se
começar a preparar essa eventualidade. Deveríamos procurar sempre alternativas,
mas sabia que, se elas falhassem, teria que estar tudo pronto para uma decisão
imediata. Não haveria, depois, tempo para estudar. Apenas para agir." No
Eurogrupo, reunido de emergência, em Paris, após a falência do Lehman Brothers,
havia outros motivos de preocupação: a Irlanda tinha dado uma "garantia
integral sem limites" aos seus bancos, atirando o défice para uns
impensáveis 32% do PIB. No dia 2 de novembro, um domingo, estava Miguel Cadilhe em Ponte de
Lima, quando recebeu uma chamada de Costa Pina. O BPN seria nacionalizado. Teixeira dos Santos comunicou a decisão, ao lado de Constâncio, numa
conferência de imprensa. Cadilhe demitiu-se. E o buraco do BPN não parou de
crescer. Os depósitos, esses, caíram a pique. Mil milhões a menos, em setembro
de 2009. Outros mil milhões "voaram" em 2010. Numa coisa Meira Fernandes e Costa Pina estão de acordo: "Os
problemas do BPN eram internos e prévios à falência do Lehman Brothers. A crise financeira acelerou a sua visibilidade, que se teria verificado
com ou sem falência do LB." (Costa Pina); "A crise do BPN tem uma
génese própria: irregularidades e fraudes. Com ou sem Lehman Brothers, teria
sempre acontecido." (Meira Fernandes). Onde discordam é nas virtudes da solução escolhida pelo Governo.
Nacionalizar foi, para Meira Fernandes, "um erro crasso" e uma
"mistificação". "O balanço que faço é péssimo. A liquidez do
banco agravou-se, a solvabilidade deixou de existir (o banco ficou tecnicamente
falido) e a rentabilidade positiva nunca foi atingida. Quem está a suportar os
custos da nacionalização, contrariamente ao então afirmado pelo ministro
Teixeira dos Santos, são os contribuintes." Carlos Costa Pina admite que
algo podia ter sido diferente: "No caso do BPN, não tivesse o contexto
sido o que foi e talvez a nacionalização pudesse ter sido evitada, encarando-se
a falência. Mas infelizmente não se escolhem os momentos em que os sinistros
acontecem e, à época, a falência teria tido proporções não verificáveis noutro
contexto."
O risco de tudo se repetir
Ainda havia uma segunda "banqueta" (expressão de um
ex-banqueiro) em risco: o BPP. Afirma o ex-governador do Banco de Portugal,
António de Sousa: "Nunca foi um banco, nem nunca deveria ter sido.
Infelizmente, o Banco de Portugal não pôde evitar dar a licença que é
obrigatória por lei." O BPP era 14 vezes mais pequeno que o BPN, em volume
de depósitos. Por isso, em dezembro de 2008, o Governo não teve dúvidas de que
seria deixado à sua sorte. O Estado avalizou 450 milhões de euros para um fundo
que procurasse reaver parte dos investimentos perdidos por clientes (que
garantiam ter entregue as suas poupanças como depósitos e o banco usou como
investimentos de risco).
Mas o problema não estava resolvido.
Para mais quando a Zona Euro entrou, definitivamente, na espiral da
crise, com os resgates à Grécia e à Irlanda, em 2010. Foram os bancos
portugueses que, ficando sem liquidez nos mercados interbancários, e impedidos
pelo BCE de aceder aos financiamentos com garantias, fizeram pressão no sentido
da intervenção da troika. Estavam inundados de um novo tipo de "ativo
tóxico": os títulos da dívida pública portuguesa (e da grega). Fizeram-no
em privado, durante algum tempo, e convenceram o ministro das Finanças,
Teixeira dos Santos, e o novo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa.
Mas precisaram de pressionar em público para convencer José Sócrates. Judite de
Sousa, jornalista da TVI, convidou os banqueiros para uma série de entrevistas.
Para sua surpresa, todos aceitaram, no momento. "48 horas depois, o
primeiro-ministro estava a pedir ajuda financeira", contou a jornalista,
numa entrevista ao Público. E observou: "Acabei por, com aquelas
entrevistas, fazer parte de uma narrativa que foi meticulosamente preparada
pelos banqueiros." Nos 78 mil milhões de euros do "resgate"
estava incluída uma fatia de 12 mil milhões para "recapitalizar" a
banca nacional, garantindo que entre 9% e 10% do dinheiro investido existisse
mesmo nos cofres das instituições cumprindo os rácios de capital definidos após
a crise, em Basileia. O nome do mecanismo de ajuda aos bancos é complicado
Contingent Convertible Bonds. O acrónimo é surrealista: CoCos. Usaram este financiamento quatro dos maiores bancos portugueses: o BCP,
o BPI, o BANIF e a Caixa. Como contrapartida, os bancos têm de pagar juros de
7%, aceitar administradores nomeados pelo Estado e reduzir para metade os
vencimentos dos seus administradores. Têm ainda de encolher.
Despedir trabalhadores, fechar balcões.
E estamos, agora, mais preparados para lidar com uma crise bancária?
Nuno Teles duvida: "É difícil avaliar se estamos à beira de uma nova
crise, mas é claro o quão pouco mudou na economia internacional desde a crise
de 2008. Os mecanismos que deram origem à crise quase não se alteraram."
Meira Fernandes, que se reformou da atividade bancária, ironiza. "Fiz um
swap especulativo, na quinta-feira passada, o euromilhões: e perdi." Mais
a sério, este ex-administrador financeiro garante que, hoje, o setor "vive
uma crise de confiança". "Aprendemos pouco."
Onde estão os protagonistas
À escala europeia pouco passou do papel. Nos EUA, apesar dos esforços de Paul Volcker, o ex-governador da Fed
nomeado por Obama para um conselho de sábios, continua por fazer a separação
entre bancos comerciais e bancos de investimento. Nenhuma das regras impostas
por Roosevelt, nos anos 30, de contenção da especulação, revogadas ao longo dos
anos 90, foi retomada. O antigo responsável pelo Lehman Brothers ibérico, o espanhol Luís de
Guindos, é o ministro da Economia do Governo de Madrid. Dois dos quadros
portugueses do gigante falido norte-americano ocupam, hoje, posições sensíveis:
João Moreira Rato é o presidente do IGCP, que gere a dívida pública portuguesa.
Deixou o Lehman em julho de 2008, quando era diretor-executivo. João
Quintanilha, que começou a sua carreira na equipa de derivados do Lehman
Brothers, é hoje membro da consultora Stormharbour, escolhida para assessorar o
IGCP na análise dos swaps das empresas públicas.
Há banqueiros no banco dos réus, em Portugal.
Pedro Vaz Serra, antigo responsável pelo extinto BPP, confessou, na
quarta-feira passada, dia 11, no Tribunal de Coimbra, 12 crimes de burla e
outros tantos de falsificação de documentos. Terá ficado com 731 mil euros dos
clientes, que usou para fazer obras numa casa apalaçada, em Oliveira do Bairro.
"Senti grandes dificuldades financeiras ", justificou-se, perante os
juízes. "Foi um ato esporádico", sublinhou o seu advogado. Em 2008, era senior adviser do BPP, com uma coluna de opinião no Jornal
de Negócios, com o sugestivo título de Ética e Negócios. Na mesma quarta-feira da semana passada, noutro tribunal, em Lisboa, o
conhecido advogado Magalhães e Silva defendeu o seu cliente, Jorge Jardim
Gonçalves, fundador do BCP, acusado de crimes de manipulação de mercado por
transações em 21 sociedades offshore, criadas pelo BCP, para valorizar as ações
do banco, na perspetiva da acusação. Magalhães e Silva terminou a sua alegação afirmando: "Simplesmente,
não é a justiça dos tabloides que se espera deste tribunal." Nos EUA,
nenhum dos responsáveis pela banca foi condenado. A crise parece ter-se transformado num gigantesco "ativo
tóxico", limpo pelos biliões que os Estados gastaram. E a roleta continua
a girar.
GLOSSÁRIO. A NOVILÍNGUA DA CRISE
"Economia" é, na definição de Ambrose Bierce, "adquirir o
barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem
dinheiro para comprar" (Dicionário do Diabo, ed. Tinta da China). As
coisas complicam-se, ainda mais, no nosso século...
CDO (Collaterized Debt Obligations): Obrigações com garantia real. O
nome é engenhoso. Na realidade, trata-se de algo puramente virtual. Um CDO
nasce da expetativa de pagamento de um conjunto de dívidas (hipotecas sobre
casas, empréstimos sobre carros, cartões de crédito, etc.). Essas dívidas são
todas juntas, pelos bancos, e divididas em pedaços. Aqui entram as agências de
rating, que dão a cada um dos pedaços uma nota: de AAA a lixo. Depois, os
bancos constroem uma pirâmide, em que no vértice estão os ratings mais altos e
a base é o "lixo". O "lixo" paga um retorno maior.
CDS (Credit Default Swaps): Permutas de risco de crédito. Os CDS podem
ser vendidos Over The Counter, ou seja, fora das bolsas. A quem não tem,
sequer, qualquer investimento na dívida inicial. O CDS é como um seguro de um
carro de alguém que pode ser vendido a outra pessoa que, muito naturalmente,
pode apenas querer que o carro se estampe para receber o prémio.
Short Selling/ Naked Short Selling: Venda curta e venda curta a descoberto
sem garantia. O short-selling tem um objetivo: desvalorizar um determinado bem
(ação ou título). A versão "a descoberto" só é possível graças aos
buracos na legislação. Imagine o leitor tem uma empresa, que vale 100 euros por
ação. Alguém pretende comprar ações por metade do preço. Manda vender, sem
comprar e o preço vem por aí abaixo. Foi isso que se passou com a cotação de
vários bancos, como o Lehman Brothers.
Swaps: Permutas. Por exemplo: uma taxa de juro fixa por uma variável.
Mas os swaps podem ser mais especulativos. Taxas de juro por cocktails de
"obrigações", flutuações cambiais, índices de matérias-primas... Na
Refer, enquanto era responsável financeira, Maria Luís Albuquerque contratou um
swap, sobre os juros da dívida da empresa, indexado ao desempenho da coroa
sueca.
TRÊS PERIGOS QUE SOBREVIVERAM À CRISE
OS BANCOS DEMASIADO GRANDES
Se já eram "demasiado grandes para
falir", os bancos que sobreviveram à crise de 2008 estão ainda maiores.
Sobretudo os "tubarões" de Wall Street, que absorveram outros.
AS 'ARMAS DE DESTRUIÇÃO MACIÇA
Há "notícias de um sistema
financeiro cheio de 'ativos tóxicos' na China", adianta o economista Nuno
Teles. Nenhum país avançou muito na regulação de "derivados".
OS BANCOS NA SOMBRA
Fundos soberanos, hedge-funds, offshores, continuam
a desempenhar um papel financeiro importante, e acrescentam risco ao sistema.
"Não podemos ter globalização financeira sem regulação
supranacionais", defende o ex-governante Costa Pina".