Escreve o Sol, num texto do jornalista João Madeira, que “a rua principal de Néchin, na Bélgica, tem pouco mais do que um talho e um cabeleireiro. Não há lojas da Chanel, clubes de golfe ou sequer um restaurante com um chef famoso. Mas entre os cerca de 2.000 residentes desta localidade rural – com tanta população como Freixo de Espada à Cinta, em Bragança – estão alguns dos maiores milionários franceses, como a família Mulliez, que detém a cadeia Auchan.
O actor Gérard Depardieu também manifestou interesse em mudar-se para ali, e não foi devido à oferta cultural. Como o próprio autarca da vila admitiu ao New York Times, Néchin «não é propriamente Las Vegas». O objectivo é bastante mais prosaico: evitar os impostos mais altos de França.
Não é que a Bélgica tenha impostos particularmente baixos para a generalidade da população – a taxa mais elevada de IRS é superior a 50% – mas a localização geográfica da vila torna bastante fácil fixar ali a residência. Néchin está a poucos quilómetros de Lille, que tem aeroporto, auto-estrada e comboio de alta velocidade. Com uma deslocação de 800 metros para lá da fronteira belga, consegue-se escapar à tributação que as autoridades francesas aplicam às grandes fortunas, onde sobressai a taxa de 75% que Hollande propôs para rendimentos acima de um milhão de euros. A tributação foi rejeitada pelo Conselho Constitucional francês por se aplicar aos rendimentos individuais e não aos do agregado familiar, mas a maioria de Esquerda já prometeu rever este pormenor e voltar à carga com o imposto.
Néchin é um caso paradigmático de um problema que afecta a Europa: a competição fiscal entre Estados-membros. As deslocalização de ricos e famosos não é de hoje, mas as políticas de austeridade e a busca de receitas fiscais acentuaram o fenómeno, que é possibilitado pela arquitectura da União Europeia, em que cada país tem autonomia quase total para definir impostos.
«A concorrência fiscal é, na prática, a regra decorrente dos Tratados, dado o facto de a União não ter competências específicas em matéria fiscal. Desde meados dos anos 90 do século passado, observa-se uma tentativa de luta contra a concorrência fiscal desleal da parte da União e da OCDE, mas com resultados algo frustrantes», explica António Carlos Santos, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
A legislação fiscal a nível europeu tende a não ser vinculativa, e a concorrência dos Estados vai para campos não cobertos pela regulação comunitária: a tributação de não residentes a nível de IRS e das empresas a nível de IRC. Com tanta liberdade de acção, as diferenças de impostos entre Estados acentuam-se.
Divergência nos impostos
Por norma, os países nórdicos têm sistemas com uma tributação elevada, mas também com prestação de serviços públicos e apoios sociais mais generosos. É assim na Suécia e na Dinamarca, onde as taxas mais elevadas de IRS chegam a superar os 50%. No oposto estão os países de Leste. A incipiência dos Estado social nestes países leva a que a despesa pública seja baixa, pelo que a carga fiscal é também mais reduzida. Já Portugal é um caso sui generis. «O nível da tributação tem vindo a subir nos últimos anos, mas sem grande retorno em termos de Estado Social, e está hoje no grupo da frente». É igualmente um Estado com uma «vulnerabilidade alta à fraude e evasão».
Apesar da disparidade a nível de IRS, a competição entre países europeus acaba por ser maior a nível de impostos sobre as empresas. Para captar investimentos externos, a redução de taxas é o caminho seguido – e que o ministro Álvaro Santos quer seguir, com um IRC de 10%. A Irlanda tem a famosa taxa de 12,5%, da qual não abdicou mesmo sob forte pressão da troika, quando pediu assistência financeira. Luxemburgo e Holanda também estão entre os países mais atractivos. Embora tenham IRC elevados sobre os lucros das empresas, permitem que os ganhos com investimentos financeiros (dividendos e juros) tenham as tributações mais baixas da Europa. Não é por acaso que 56,1% da Jerónimo Martins SGPS, dona do Pingo Doce, pertencem agora a uma sociedade subsidiária na Holanda, e que 19 empresas da bolsa portuguesa têm filiais no país das tulipas.
Reduzir os impostos para captar investimentos de outros países parece boa ideia para quem fica com o dinheiro, mas o resultado é muitas vezes um jogo de soma nula, quando essa transferência se faz entre países da UE: o que um Estado ganha é o que outro perde. E se o espaço comunitário fosse uma união orçamental de facto, como os Estados Unidos, esta rivalidade fiscal seria até prejudicial, pois a união estaria a cobrar menos impostos como um todo.
A solução para este problema poderia ser uma maior harmonização fiscal no espaço comunitário, com taxas mais aproximadas entre estados-membros. Mas nem todos os países estão de acordo. «Quem tem regimes fiscais concorrenciais resiste a essa mudança, e a doutrina dominante incentiva a competitividade por via fiscal. Mesmo quando são aprovadas directivas, as excepções e derrogações permitidas são muitas. A fiscalidade decorrente da política europeia assemelha-se a uma espécie de queijo gruyère», diz o antigo secretário de Estado
A UE tem ainda de lidar com a concorrência fiscal dos países vizinhos. Depardieu manifestou interesse na Bélgica, mas acabou por receber um passaporte da Rússia, onde a taxa mais alta de IRS é de 13%. No Montenegro é de 9% e no Mónaco nem sequer existe IRS, motivo pelo qual este principado já se tornou a residência de inúmeros milionários. Entre eles estão o actor Roger Moore, o tenista Novak Djokovic e quase tantos pilotos como a grelha de partida de uma prova de Fórmula 1.
No caso do Mónaco, o complicado não é pagar impostos, mas sim ter dinheiro para sustentar o luxuoso estilo de vida em Monte Carlo, com preços estratosféricos nas habitações. Um apartamento de 40 metros quadrados pode custar mais de um milhão de euros. Mas não paga IMI”.