"A pergunta do i
1. Os peritos estrangeiros (convidados pelo Banco de Portugal, pela Fundação Gulbenkian e pelo Conselho para as Finanças Públicas) sobre reformas do sector público alertaram em conjunto esta semana contra a pressa nas reformas, as prescrições para problemas ainda pouco estudados e a subvalorização da opinião dos peritos locais. Parecem recomendações que encaixam no caso actual português. Contudo, o governo está sob pressão para cumprir o Memorando e cortar uma verba significativa (mais de 4 mil milhões de euros) de forma permanente – o governo tem mesmo de apresentar as primeiras propostas de corte já na sétima avaliação, em Fevereiro. Como pode um governo fazer uma boa reforma com tão pouca margem temporal? Cortar 4 mil milhões (em áreas sociais e custos com pessoal) é o mesmo que fazer uma reforma do Estado?
Tempo e velocidade da reforma
A pressa reformista parece que chegou em fins de 2012, inícios de 2013. Saúdo a vontade governamental de reformar o Estado, objectivo por que me bato há anos. Todavia, a pressa é má conselheira. Os políticos malbarataram os calendários e agora precisam de fazer em pouco tempo o que ficou por fazer ao longo de governos atrás de governos. Durante anos a fio nem soubemos imitar a sábia tartaruga, que era paulatina, segura, diligente, e dizia e praticava “devagar que tenho presa”. Agora pretendemos partir em disparada como a fabulosa lebre, veloz, imponderada, medindo mal os desafios. Dela se dizia “depressa e bem há pouco quem”. A reforma do Estado é muito urgente, está num momentum único, mas tem de cumprir requisitos que tomam algum tempo. Precisa de concertação social. Precisa de diálogo com os funcionários civis e militares, os utilizadores dos serviços, as forças políticas, os parceiros sociais. Precisa de comunicação e explicação.
Cortes da despesa
Cortar não é necessariamente reformar. Nem reformar é necessariamente cortar. No nosso caso, porém, estando nós como estamos, reformar é necessariamente cortar, e é cortar com cortes fundos, estruturais, definitivos. Há aqui uma interconexão, uma interdeterminação, e há uma necessidade, uma imperatividade, há tempos de guerra que avassalam conceitos, preconceitos, lógicas do que é antecedente e do que é consequente.
No campo dos princípios e das ideias, acharia bem que primeiro se tentasse redefinir as grandes linhas das funções do Estado e as traves mestras da sua reforma e se passasse de seguida à estimação dos novos níveis de despesa e de carga fiscal e das suas composições. É evidente que, na nossa má circunstância, iríamos cair num processo de realimentação em que, numa segunda volta, o consequente condicionaria o antecedente, e assim iterativamente.
Por isso, que me perdoem todos os que levantam a palavra democrática em defesa da ponta do fio do novelo por onde se pegue. Talvez nos arrisquemos a jogar com as palavras, talvez estejamos a discutir o começo da vida, o ovo ou a galinha. Ora, o país não está em maré de jogos de palavras.
Orientações e restrições da reforma
Cortar não é a reforma das funções do Estado; deve obedecer a orientações políticas fundamentais que sejam luz, quadro, alicerce das opções e medidas subsequentes. Infelizmente, goste-se ou não, algumas dessas orientações terão de se traduzir em balizamentos ou restrições, que mais parecerão coisa técnica do que política. Algumas destas restrições têm de ser matematizadas. Isto é uma inevitabilidade por causa da situação de gastadores endividados a que chegámos.
Dito por outras palavras, há um imperativo que talvez mande mais do que tudo o mais, que é o de o Estado pós-reforma estrutural se encaixar numa “tendência de sustentabilidade” das suas finanças. Já que é facto provado e comprovado que o Estado actual, pré-reforma estrutural, não se aguenta nas pernas, é insustentável, está escarranchado nos credores e nos contribuintes.
Impossibilidade e tendência
Convirá fazer dois breves parênteses. Como sabemos, ao resolver uma equação ou uma inequação, o resultado é por vezes uma “impossibilidade”, ponto final. Os políticos dizem que a política é a arte do possível; penso que eles por vezes tentam a arte do impossível. Enquanto estiverem no âmbito eminentemente qualitativo, diria essencialmente político, pois muito bem, que cultivem essas artes regradamente e não esqueçam o destinatário, que é o povo. Quando estiverem em âmbitos mais mensuráveis, pois muito bem, que percebam e respeitem o real alcance de uma “impossibilidade” matemática. Por exemplo, há uma impossibilidade na dívida pública quando alguns políticos recusam a redução do tamanho do Estado. Os portugueses têm então o direito de saber como é que se apartam desta impossibilidade.
A palavra “tendência” tem em economia um significado matemático relativamente preciso. É o andamento, ou trajectória, plurianual de uma variável económica, alisado mediante a exclusão de flutuações cíclicas e alterações acidentais ou pontuais. Faz parte daquilo a que os economistas chamam médio e longo prazo. Para o tema da reforma do Estado e das finanças públicas, a expressão “tendência” é praticamente sinónimo de “estrutural”.
Sustentabilidade das finanças públicas
Venho há anos falando disto, que agora, pelos maus motivos que sabemos, ganhou acuidade e notoriedade nunca vista. Convirá, mesmo assim, mais uma vez, pôr as áridas cartas na mesa com todo o rigor.
Para o efeito da sustentabilidade das finanças públicas, a “tendência” deve ser desdobrada em duas grandes ramificações, a da despesa e a da carga fiscal. O que é despesa pública sustentável? E o que é “esforço fiscal” comportável?
Para ajudar a responder, temos de buscar mais outras duas ramificações da “tendência” das finanças públicas, a da dívida e a do saldo orçamental sem juros (saldo primário). E temos de buscar a taxa média de juro da dívida. Temos de comparar estas três grandezas com a “tendência” do PIB, que o mesmo é dizer o PIB potencial, cujo crescimento anda tristemente derreado. Parece que em parte essa tristeza advém do peso, da qualidade e da eficiência do Estado, o que nos reconduz à reforma que está por realizar. Eis uma das interdependências em que a economia é fértil.
Duas restrições da reforma do Estado
Feitas projecções daquelas variáveis, em visão de médio prazo, devemos reter duas importantes restrições matemáticas:
1. A reforma terá de provocar uma nova tendência descendente do rácio “dívida pública/PIB nominal”, este em cada ano menor do que no ano anterior até chegar a metade do rácio actual, ou um pouco mais além, à regra europeia dos 60%.
2. A reforma terá de provocar uma nova tendência não descendente do rácio “saldo primário/PIB nominal”, este sempre positivo e acima de 3% ou 4%, conforme as previsões do PIB. Estamos a falar da diferença algébrica entre receita total e despesa primária. Por conseguinte, também estamos a falar da carga fiscal comportável. E da despesa sustentável. A carga fiscal é já excessiva, logo, terá de haver cortes da despesa.
A renegociação honrada da dívida pública, que tenho defendido, deve ser vista como um meio para ajudar o futuro e melhorar o rácio 1. da dívida, não como um meio para facilitar o rácio 2. do saldo primário. Se aceitarmos estas restrições, e não vejo como não as aceitar, delas decorrerá um objecto de pensamento e acção reformista bastante mais útil, porque mais preciso, mais claro, mais verdadeiro e mais limpo de ilusões, quer para os políticos, quer para os parceiros sociais, quer para os cidadãos em geral” (texto do ex-ministro das Finanças, Miguel Cadilhe, publicado no Jornal I, com a devida vénia)