quinta-feira, março 29, 2012

Económico: "Esboço para uma radiografia da crise"

"Os indicadores mensuráveis que condicionam a vida dos portugueses são maus. Os não mensuráveis serão piores. Entre instituições financeiras que abrem mão de 10% dos seus colaboradores, empresas que fecham as portas por não terem a quem vender, secretários de Estado que se demitem por não conseguirem impor as suas políticas aos agentes do sector a que elas se destinam e membros do maior partido da oposição que afirmam que o Governo está a matar os portugueses, onde está a radiografia da crise - as suas causas e as suas consequências? Quanto às causas, depende dos pontos de vista. Ou vão buscar-se ao devaneio dos últimos meses do governo de José Sócrates; ou vão colher raízes à crise internacional que escureceu o mundo depois da falência do Lemmon Brothers; ou vão mais atrás ainda, ao enigma que é a gestão partidária de 38 anos de democracia, de 26 anos de União Europeia e de 10 anos de moeda única. Seja como for, culpados é que não se encontram em lado nenhum. Quanto às consequências, as provas - as mensuráveis, porque quanto às outras não há consenso possível - elas estão por aí para provar que uma crise, quando é profunda, é para quase todos. Comece-se pelo mais óbvio: o número oficial de desempregados está, neste momento, situado nos 771 mil, cerca de 14%. O que quer dizer que o número de desempregados é de pelo menos 771 mil: de fora ficam os que já não têm direito ao subsídio de desemprego e ainda não conseguiram arranjar emprego. Para valores apurados no final do ano passado (706,1 mil desempregados), um pouco mais de 53% destes estava sem trabalho há mais de um ano - estando por isso no caminho do desocupado de longa duração. Por outro lado, o desemprego jovem (mesmo o de jovens licenciados) está na barreira dos 30% - o que tem levado pessoas tão avisadas como o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho a nomear a emigração como uma opção racional a ponderar (S.F.F.). Entretanto, num país que aprendeu bem a lição segundo a qual não é preciso ter capitais próprios para comprar o mundo que está à nossa volta, cerca de 615 mil pessoas já não têm meios para pagar os empréstimos ao consumo que foram contraindo - muitas das quais foram contraindo empréstimos para pagar empréstimos que entretanto serviram para pagar outros empréstimos, numa espiral estapafúrdia de carros envelhecidos, plasmas estragados e férias em paraísos tropicais cheios de chuvas diluvianas. Ao mesmo tempo, aproximadamente 145 mil pessoas deixaram de pagar o empréstimo hipotecário - o que dá a entender (como afirmam todos os estudos sobre a matéria) que são famílias que, colocando em causa a possibilidade de contarem com um tecto debaixo do qual se abriguem, chegaram ao fim da linha. Estas famílias, ou muitas delas (dizem esses estudos), já passaram o limiar da insolvência, da falência e da pobreza: já estão no limiar da sobrevivência.
Sobrevivência em causa
Qual sobrevivência? Nenhuma: a despesa da Segurança Social em percentagem do PIB em 2008 era de 15,6%; em 2009 era de 17,5% e daí para a frente é para cortar porque a sustentabilidade do sistema não dá qualquer garantia da sua possibilidade de sobrevivência. Até porque, como se sabe, o Governo (este ou outro que lá esteja, admitindo-se que, se não for o PSD, será o PS) tem que cortar uma larga fatia dos apoios sociais proporcionados às margens mais marginais ao grande bolo do consumo. Essa é uma das decisões politicamente mais difíceis do actual Governo, uma vez que incide directamente no Orçamento de Estado, ou seja, na possibilidade de Portugal honrar os seus compromissos com os credores internacionais. Qual compromisso? Este: em 2011, a previsão para o rácio da dívida directa do Estado em relação ao PIB é de 102,2% - quando em 2010 ainda se ficava por uns agora saudosos 87,9% e, só para chatear, no início do milénio, não ia além dos 52%. Entretanto, uma velha realidade - de que muitos portugueses, sempre a braços com falhas de memória impossíveis, já não se lembravam - está a insinuar-se na vida de todos os dias: a taxa de variação homóloga do índice de preços no consumidor passou dos 3,5 % registados em Janeiro de 2012 para os 3,6%. O resultado imediato é claro: o volume total de vendas de produtos de marca branca nas grandes superfícies de retalho subiu para uns inesperados 46%. Um valor que tem, entre outras coisas, uma consequência: as empresas produtoras de bens de consumo transaccionáveis (pelo menos as que produzem coisas que se podem vender nos hipermercados) estão a empobrecer paulatinamente, como resultado de uma quebra abrupta nas margens de comercialização - querendo isto dizer que, a jusante, terão cada vez mais dificuldades de provarem às instituições financeiras que são capazes de cumprir o serviço das suas dívidas e de manter o contingente de trabalho actual. Só por manifesta falta de espaço é que aqui não se continua a ladainha. Bom, não é só por falta de espaço: é que os quadros que vão mensurar a extensão do desastre e da crise que se instalou como um possesso no país para o ano de 2011 ainda não estão totalmente à disposição do amável público
" (texto do jornalista António Freitas de Sousa, publicado no Económico, com a devida vénia)

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