terça-feira, setembro 27, 2011

Carlos Moreno: "O buraco na Madeira é normal em todo o Estado"

"Carlos Moreno bate-se por um país em que os cidadãos obriguem o Estado a gastar correctamente o dinheiro de todos Carlos Moreno está reformado. Há quase um ano lançou o livro "Como o Estado gasta o nosso dinheiro." Defende que para haver uma democracia séria os cidadãos têm o direito e o dever de exigir que o dinheiro de todos seja gasto criteriosamente. Para ele, a crise que vivemos começou no desperdício dos recursos públicos.
Foi o primeiro juiz português no Tribunal das Comunidades e tem 15 anos de trabalho no Tribunal de Contas Português. Essas realidades são muito diferentes?
-O tribunal de contas europeu dá uma prevalência muito grande, mais do que à auditoria da legalidade para ver se há normas que estão a ser violadas, à auditoria da boa gestão. Pretende-se verificar se o gasto dos dinheiros comunitários respeita os critérios do menor custo possível garantindo a qualidade desejada. Quer-se garantir que se atinge esses objectivos prioritários sem derrapagem de custos nem temporais.
Em Portugal, isso é diferente? A auditoria tem mais em atenção a questão da legalidade?
- Em Portugal só fiz auditoria sobre a boa gestão. Mas repare, só a partir de 1996 é que o Tribunal de Contas (TC) passou a ser o auditor público do Estado. Como juiz comandava um sector da auditoria às empresas públicas e as parcerias público-privadas (PPP) , só fiz auditoria de gestão. Mas o tribunal tem uma tradição muito mais arraigada na auditoria sobre a legalidade. O poder político e legislativo, enquanto sanciona a ilegalidade como a infracção financeira, com multas e reposição de dinheiros, não faz o mesmo em relação à má gestão. A lei orgânica do tribunal, votada no parlamento, não pune com sanções financeiras os casos de má gestão financeira. Desde que se cumpra a lei pode-se desperdiçar à vontade dinheiros públicos.
Mas isso não torna a auditoria sobre a gestão, uma espécie de conselho de cultura geral sem nenhuma consequência prática?
- Vou-lhe dar a minha opinião, o auditor público tem como missão informar os contribuintes de como os seus dinheiros foram gastos. As sanções pecuniárias que em Portugal se dá muita importância são, para mim, menos eficazes do que a pressão social e a pressão da opinião pública sobre os desperdícios do dinheiro dos contribuintes.
Mas auditorias que apurem aspectos escandalosos da gestão dos dinheiros do Estado não deviam implicar responsabilização dos autores?
- Desejo que nos aproximemos de uma sociedade exigente e vigilante que pressione os decisores políticos e que substituamos a cultura da sançãozinha pela cultura da censura social que é muito mais eficaz. Repare que mesmo que nos casos de ilegalidade se possa aplicar sanções, como medida, e o volume das sanções é fixada pelo legislador político, não raras vezes sucede que o infractor prefere correr o risco da sanção porque ela não é suficientemente pesada. Veja-se o caso do escamotear dívida das mais diversas formas que até é uma ilegalidade e uma irregularidade que não é permitida por lei: nestes últimos dez anos o que é que nós verificamos. É que caminhamos de buraco em buraco, não há visivelmente sanções pecuniárias aplicáveis. As eventuais sanções que poderiam ser aplicadas não dissuadiram os gestores públicos de esconder a dívida.
Mas temos agora o exemplo concreto da Madeira se houvesse sanções pesadas de perda de mandato, reposição do dinheiro e até procedimento criminal a situação não seria diferente?
- Algumas observações, o buraco da Madeira está na ordem do dia porque foi descoberto agora. Mas esta prática de esconder dívida, já existe na Madeira desde 2004. É grave, mas nela não estão isentos de culpa, porventura por omissão, os órgãos fiscalizadores e supervisores quer de natureza técnica, quer de natureza política, por esse buraco que dura há anos só agora ter sido descoberto.
Mas só foi descoberto agora? É que o Tribunal de Contas diz que já tinha alertado atempadamente...
- Mesmo que tenha havido alertas do TC para a possibilidade de haver buracos na Madeira, a impressão com que fico é que a matéria está longe de ser esclarecida. Ainda há pouco tempo, o primeiro--ministro falou da necessidade de serem auditadas as contas da Madeira. Estranhamente desse grupo de auditores estava excluído o Tribunal de Contas. O que eu digo é que a primeira responsabilidade por essas práticas é dos gestores, mas é preciso dizer que há órgãos fiscalizadores que são pagos pelos dinheiros dos contribuintes para descobrir essas situações. Esse buraco da Madeira tem hoje um espaço mediático enorme, mas aparece ao cidadão comum como um comportamento excepcional, quando ele faz parte de um procedimento que de há dez anos a esta parte, é um procedimento absolutamente repetido e normal ao nível de todo o Estado português.
Mas não há uma diferença qualitativa? Uma coisa é a desorçamentação outra parece ser esconder as contas...
- O que eu sei é que dizem que há um buraco e dívida omitida. De onde? Das contas e dos orçamentos. Isso foi o que aconteceu nos últimos dez anos em todo o lado. Quando se criam hospitais empresas, umas Estradas de Portugal, Parceria Público-Privadas (PPP), empresas municipais e fundações nacionais ou autárquicas, está-se a criar entidades jurídicas distintas da administração pública central, local ou regional, para passar a todas essas entidades uma série de funções que pertenciam ao Estado. Para retirar receita e despesa do Orçamento do Estado, permitindo que estas entidades se endividam ao infinito. Mais tarde ou mais cedo, isto tem de ser pago pelo Orçamento do Estado. Veja, na sequência da troika ter vindo a Portugal, toda a dívida das Estradas de Portugal foi assumida como dívida orçamental. Grande parte dela estava escondida do orçamento. Relativamente às PPP foi assumida pelo Orçamento de Estado e nessa altura aparecem os buracos.
Não acha que muitos desses negócios ruinosos para o Estado são bastante mais graves do que uma simples desorçamentação?
- Sabe tão bem como eu que na quase totalidade das PPP foram e continuam a ser excelentes negócios para os concessionários privados e péssimos negócios para os contribuintes.
Mas isso tem a ver com a natureza das PPP ou com incompetência dos representantes do Estado?
- Em todas as PPP que auditei há uma manifesta incompetência do sector público, e eu falo só de incompetência e desleixo, na negociação de contratos que são muito pormenorizados.
Há só incompetência e desleixo ou também há manipulação de negócios a favor dos privados?
- Falo desta coisa bem portuguesa de que é preciso é mostrar obra, independentemente dos custos que ela vá ter no futuro. As PPP foram apresentadas a custo zero para o contribuinte, como aconteceu à ponte Vasco da Gama e à Fertagus, em que os privados desenhavam, construiam, mantinham e eram pagos pela exploração durante mais de 30 anos. Os contratos são assinados, são mal negociados, há falhas graves. No caso da ponte Vasco da Gama foi sete vezes renegociado, e aquilo que era para ser a custo zero, acabou por ter uma derrapagem de 700 milhões de euros.
Volto a dizer, não acha que para além da competência , existe em alguns sectores governamentais uma certa cumplicidade com os privados. Ministros que passam do governo para as empresas que negociavam...
- Não posso falar daquilo que não sei. Cumplicidade ou corrupção são fenómenos que não cabe ao TC investigar. O que lhe posso dizer sobre aquilo que encontrei é que os sucessivos contratos de PPP eram negociados por parte do Estado com incompetência, desleixo e sem cautelas mínimas para se fazerem bons contratos. Em quase todos eles o Estado assumiu riscos comerciais e de financiamento que cabiam aos privados. Por exemplo, nas autoestradas, se não passasse um determinado número de carros o privado seria indemnizado. O que foi um péssimo negócio porque essas previsões foram altamente inflacionadas. O assumir desses riscos próprios de um negócio privado tornou as PPP caríssimas para o contribuinte. Nalguns casos, os contratos têm contornos leoninos, o Estado assume riscos que deviam ser assumidos pelos privados, aceita taxas de rentabilidade para os capitais privados da ordem dos 14 % e não mete uma única norma que caso o negócio corra muito bem o Estado também vai colher uma parte dos benefícios. O Estado assume todos os riscos e abdica de grande parte dos proveitos.
O facto de o TC ter autoridade, em alguns contratos, para dar o visto prévio, não permite que alerte o Estado dessa deriva?
- Em sede de visto prévio o TC só escrutina a legalidade das claúsulas dos contratos. Todas essas alterações aos contratos por estarem mal redigidos, como acontece nas PPP, são de difícil previsão. E digo-lhe mais, a legislação sobre Parcerias Público-Privadas só foi aprovada 11 anos depois dessa figura ter começado a ser utilizada pelo Estado. A exigência de comparador público, a exigência de análise de custo-benefício, nada disto estava na lei. O TC não tinha os instrumentos necessários para avaliar correctamente as implicações das PPP. Gostava ainda de lhe dizer mais uma coisa, os contratos jurídicos das PPP fecham--se no momento da sua assinatura, mas a sua parte económica, só se sabe quanto custa uma parceria no final do contrato. Cada vez que uma permissa se altera dá lugar à renegociação das cláusulas de reequilíbrio financeiro, o parceiro privado diz ao Estado que este pressuposto não se verificou o que implica uma indemnização por parte do Estado. Ainda há pouco tempo tinha sido pedida uma indemnização ao Estado em sede de uma das PPP das estradas porque o tráfego de uma determinada autoestrada baixou devido à introdução de portagens numa scut. Mesmo que o Estado não queira pagar, estes contratos prevêm recurso a um tribunal arbitral e aí o que se valoriza é a letra do contrato e não as condições económicas do país, nem o contexto em que esses negócios foram feitos.
Para além das PPP, uma das coisas que o cidadão não compreende é qual a razão que leva as grandes obras públicas a derraparem de uma forma gigantesca em matéria de custos e de prazos.
- Durante os 15 anos que estive no TC foi constatado que nas PPP e nas grandes obras públicas havia constantemente derrapagens de prazos e de custos. Sem consequências nenhumas. O planeamento não tem um mínimo rigor. Lança-se o projecto muitas vezes sem se saber bem o que se quer. É ao longo do projecto que se vai definindo aquilo que se pretende. Estas alterações de contrato escancaram a porta para as derrapagens de prazos e de custos. Há aumentos de custos gravíssimos, como o da Casa da Música que foi de cerca de 300%, mas os atrasos de prazo não são menos graves. Veja--se o exemplo do túnel do metro do Terreiro de Paço que se atrasou 10 anos. Qual foi a consequência desse atraso, para além da financeira? Foi que milhões de passageiros que iam usufruir dessa obra foram privados dela durante uma década e isso tem custos económicos e sociais que nunca foram avaliados. E finalmente, há um outro defeito de planeamento que é habitual em Portugal, quando se lança uma grande obra pública como a construção dos Estádios do Euro 2004 avalia-se apenas os custos de contrução, deixando de fora o dinheiro que é necessário para a manutenção e exploração dos equipamentos. Não se faz a avaliação do custo total da obra. Não me causou espanto aquela declaração de uma pessoa da Câmara Municipal de Aveiro que confrontada com o dinheiro que era preciso para manter um estádio que dava pouquíssimas receitas, disse que o melhor que se podia fazer era implodir a obra.
Mas não devia haver uma responsabilização dos decisores dessas obras?
- É preciso analisar rigorosamente as circunstâncias. Há comportamentos que podem ser objecto de processo crime: gestão danosa, ocultar deliberadamente, e com dolo, informação e se isso acontecer caberá ao Ministério Público investigar e aos tribunais decidir e a pena a aplicar será aquela que está prevista pelo Código Penal. Isto é um aspecto, mas é preciso que se prove um ilícito criminal o que em matéria de finanças públicas é extremamente difícil.
Isso é devido a um problema de legislação ou a lei está cheia de alçapões e fugas?
- Em matéria criminal é quem acusa que tem de provar culpa, dolo, nexo de causalidade e o senhor sabe a dificuldade que há na justiça portuguesa de provar crimes com dinheiros públicos ou privados.
Não acha que a legislação é por vezes bastante permeável?
- Na sequência das notícias do que se passou na Madeira, ouvi responsáveis políticos a dizer: vamos criar legislação para que isso não se volte a repetir. E eu candidamente digo: legislação para que não haja buracos nas contas públicas já devia haver há muito tempo. Agora é tarde de mais. Sempre houve dificuldade por parte do poder político em criar legislação para que a má gestão financeira e não só, a ilegalidade, seja sancionável.
Não acha que por vezes há uma certa promiscuidade entre interesses públicos e privados?
- Esse fenómeno que está diagnosticado na sociedade portuguesa, há demasiada promiscuidade entre o sector público e privado as incompatibilidades são demasiado fluidas não há mecanismos eficazes de combate à corrupção, à evasão de capitais e à fraude fiscal. Veja o tempo que tem demorado a criação de uma legislação que possa criminalizar o enriquecimento ilícito. Tudo isso são sinais negativos que o sector público dá no campo de tornar muito mais transparente tudo aquilo que tem que ver com os negócios públicos e com a gestão financeira pública. Lamento que em Portugal estas coisas demorem tanto tempo a ser decididas de uma forma transparente. Exige-se nos negócios públicos competência máxima, transparência, reporte continuo de decisões e um funcionamento capaz dos órgãos de controlo e de supervisão. Há a necessidade de um repensar do agir do Estado.
Acha que o TC tem os meios e os poderes suficientes?
-Em termos de auditoria pública tem os poderes suficientes, pode agir em todo o lado em que haja dinheiros públicos.Tem uma legislação progressista que permite intervir nas áreas da fiscalização da legalidade e da boa gestão. Mas o TC só ganhou esta capacidade de auditor público em 1996, e isso tem efeitos na sua capacidade. O TC ainda não teve tempo de ter o número de auditores públicos capazes e especializados para as tarefas que os tribunal têm.
Há quem diga que o TC é por vezes permeável à agenda política. Por exemplo, foi noticiado que uma auditoria sobre PPP não foi propositadamente discutida porque estávamos em período eleitoral.
-O senhor baseia essa pergunta num caso concreto e eu, como antigo juiz do TC, não comento o que se está a passar e aquilo que eventualmente esteja a ser discutido. Não seria correcto nem ético da minha parte. Digo-lhe que relativamente ao TC os juizes são completamente independentes. Não estão sujeitos às ordens de ninguém. O que não quer dizer que não se deparem com manifesta insuficiência de meios para fazer o seu trabalho. Não escondo também que nos termos da legislação em vigor o poder executivo, que é um dos mais importantes dos controlados pelo TC, tem capacidade de intervir em aspectos da organização e da capacidade do tribunal que era preferível não ter.
Como por exemplo?
-Os meios financeiros do TC são aqueles que o governo lhes quer dar no Orçamento de Estado o quadro dos serviços de apoio, as carreiras, as remunerações e os recrutamentos dos mesmos são estabelecidos por diploma do governo e finalmente, isto não tem nada a ver com as pessoas concretas, tem a ver com o sistema, o presidente do Tribunal de Contas não deveria ser uma escolha do governo que propõe o nome que quer ao Presidente da República. Sendo o governo o principal controlado pelo Tribunal de Contas isso não devia acontecer. É o único presidente de um tribunal superior que é nomeado pelo governo. Ora isto está na Constituição e corrigi-lo exigiria que a Constituição fosse alterada.
Na sua carreira foi inspector-geral de Finanças durante um período importante de privatizações. Neste momento o governo pretende vender grande parte do sector público do Estado. Quais são os cuidados que acha que se deve ter para evitar problemas de corrupção?
- Só abordo a questão na perspectiva das Finanças Públicas, quando o país tem o défice que o nosso tem, a possibilidade de amortizar a dívida pública passa por: ou aumentar as receitas e diminuir as despesas ou vender património. As privatizações são uma forma tremenda de poder ajudar o país a pagar a dívida pública. É fundamental que, desde a fase da decisão até às conclusões, a transparência do processo e a sua publicidade sejam totais e completas e que sejam assegurados concursos públicos, que os cadernos de encargo e toda a legislação que vai sair para essa privatização seja clara, sem dúvidas, e que as equipas que sejam chamadas a integrar o apoio técnico e jurídico sejam de inquestionável competência, independência e integridade pública. Nestes domínios o que se exige do Estado é que ao vender património público o faça da forma mais transparente e competente possível. Para que, podendo-se discordar ou não das privatizações por razões que não de finanças públicas, o processo seja um processo límpido e transparente. Que se possa chegar ao fim e dizer que o Estado vendeu, sem favorecimento e ao melhor preço, o património público. Até porque essa venda envolverá empresas estratégicas para o desenvolvimento do país.
E acha que isso está a ser assegurado? Temos o recente exemplo do BPN...
- Relativamente ao BPN só faço este comentário, porque é o único que me compete, o BPN é manifestamente um caso de polícia que foi transformado num problema de Finanças Públicas e quando um caso de polícia se torna um caso desses, torna-se incontrolável. Foram descobertos ilícitos criminais flagrantes e manifestos que estão a fazer o seu caminho nos tribunais.
Na sua carreira qual foi o pior exemplo de gasto de dinheiros públicos?
- Eu tive na minha alçada as finanças públicas das empresas públicas, grandes obras públicas e parcerias pública-privadas. O pior exemplo que assisti foi em grandes obras públicas e na generalidade das PPP rodoviárias e ferroviárias. Li há pouco tempo esta notícia: Portugal é o país que mais quilómetros de autoestrada tem por habitante. Quando eu hoje, como cidadão, me desloco ao longo do país, constato aquilo que os meus auditores descobriram: maus negócios que custaram rios de dinheiro ao contribuinte. Constato isso como cidadão e desta forma: se for daqui ao Porto no mês de Agosto, por determinadas autoestradas, eu até tenho medo de lá circular, não porque o piso seja mau, mas porque me arrisco, mesmo no mês de Agosto, a fazer quilómetros sem ver um carro. E parar numa estação de serviço, estar lá 45 minutos, e ser o único cliente. É a verificação prática do desperdício enorme que foram as PPP.
Foram um mau negócio as PPP?
- Foram, tal como foram negociadas, um péssimo negócio que vai ter consequências desastrosas para as gerações futuras. Que vamos sentir sobretudo nos anos de 2013 e 2024, nessa década o encargo orçamental anual atingirá 1,6 mil milhões de euros por ano. E como estes contratos estão em aberto, são encargos que poderão ainda ser mais desastrosos
(entrevista de Nuno Ramos de Almeida, jornalista do Jornal I com a devida vénia)

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