quinta-feira, junho 04, 2009

Marina do Funchal: um testemunho curioso

De uma pessoa amiga - que lamento não partilhe a sua opinião pessoal com mais pessoas, através de artigos de opinião - recebi um testemunho pessoal na sequência do post aqui publicado há dias relacionado com a situação - ou melhor dizendo, com algumas situações - com torno da ocupação da marina do Funchal. Com algumas omissões e sem identificar o seu autor, aqui deixo o texto:
"Desde que me lembro de mim que ando no "calhau". Sou do tempo do Guinga, do Almada, do Calaça, do Vieira e do "Papilar", etc, todos grandes frequentadores da Rua das Fontes e respectivos estabelecimentos "vinícolas"... Os barcos, poucos, eram fundeados ao largo do Calhau, presos a amarrações de fundo e, depois, era preciso chamar pelas canoas do Clube Naval para irmos para terra. Parece que estou a ver o meu Pai, um homem grande (ainda parecia bem maior aos olhos de uma criança pequena) a dar uns másculos gritos a chamar pelo Guingaaaaaaaaa! Lá vinha o saudoso remador, bem ao seu estilo, buscar a malta. Desembarcávamos num inolvidável pontão por sobre o calhau, esse mesmo, marginal à famosa Gruta. Foram tempos que nunca esquecerei, ainda que ditados por falta de meios, género terceiro mundo mas, lá nos íamos desenrascando e, como é apanágio de todos os que gostam - mesmo - do mar, não seria por isso que ficaríamos em terra. Varar um barco - tarefa anual e imprescindível de manutenção - era um suplício só resolvido por esforço e engenho quase tão valoroso como os que ditaram as levadas e os poios que tanto admiramos. Havia o "corção", ainda hoje se chama assim - ainda que concebido e feito com soluções bem mais modernas, berço de madeira onde se assentava o barco e se o amarrava. Depois, era vê-lo arrastado calhau acima, sempre com o "credo na boca", rebocado por um motor soluçante que lá ia cumprindo a sua missão. No calhau de São Lázaro, procedia-se às reparações - recordo o excelente Mestre Eduardo, pai do grande vulto da vela madeirense, o Victor Nóbrega - e depois era tempo de deitar à água a embarcação, pelo mesmo método, mas em sentido inverso. Com a autonomia, tudo mudou, evolui-se e, também no Porto do Funchal, se fizeram grandes melhoramentos e construí-se a primeira e ainda mais bem localizada Marina da RAM, a do Funchal. Simultaneamente, o actual varadouro, e bem, pois uma Marina deve ter associada uma estrutura dessas e, acrescente-se, hangares, ainda que concorde que São Lázaro não é, de todo, o mais adequado local, em pleno centro da cidade. Tive o privilégio de participar na inauguração da Marina que, recordo-me, diziam que era "demasiado grande...". Honra feita ao dr. Miguel de Sousa - governante à data - que, pelos vistos, se pecou, pecou por defeito, pois em pouco tempo, a Marina já era pequena... Entrei a bordo do "Funchalinho", o mais bem conseguido nome até hoje dado a um barco, propriedade dos irmãos Rodrigues ("Fabrícios"). Lembro-me da euforia que sentíamos, da alegria, do orgulho e, grande satisfação por finalmente termos um local capaz e digno de acolher os barcos e a malta do calhau. Vivi toda a minha juventude na Marina - ainda hoje, felizmente lá passo muito tempo e de lá saio para inesquecíveis navegações e pescarias - ainda que com muito pouco sucesso em matéria de peixe, que já não abunda. Fiz grandes e excelentes amigos, verdadeiros homens e mulheres, excelentes companheiros num ambiente, onde cada um vale pelo que é, pelo que sabe, e pelas suas qualidades humanas. O que têm, ou que lugares ocupam, pouco importa, até porque a grande maioria são pessoas economicamente normais, sem meios de especial, apenas e muito, a todos os une uma grande paixão e saber pelo mar e pelo que representa. E muitos há, grandes marinheiros, velejadores e, acima de tudo, bons seres humanos, daqueles que já não abundam, infelizmente. Claro que também têm defeitos - quem não os tem? - reclamam bastante, opinam ainda mais mas, tudo isso faz parte da dialéctica do calhau...é assim e pronto. Mas, passadas as longas trocas de ideias e opiniões, mesmo deambulações, próprias de quem passa horas em cima do mar, são todos amigos, leais, voluntariosos, e sempre dispostos a colaborar com todos e a se entreajudarem. Acrescente-se que os desportos náuticos foram a prática desportiva que mais títulos e honra deram à Madeira até hoje! Mundiais, Europeus, Nacionais, etc, etc, etc. E não foi só o grande velejador e ser humano João Rodrigues, foram muitos outros! Nem sempre reconhecidos, diga-se. O próprio João não se cansa de os lembrar e elogiar. Aliás, o Mar faz isso: reconhecimento, companheirismo, trabalho de equipa, voluntarismo e sempre, mas sempre mesmo, grande amizade, lealdade e disponibilidade para os outros. É por isso que amo o Mar, fez de mim melhor pessoa, ensinou-me o valor - o verdadeiro - das pessoas. Sem lamechices nem baboseiradas, e muito menos, hipocrisia. Afinal, estamos no Mar! A tudo isto, devemos juntar o saber, o daqueles que têm o "sal na boca" de uma vida junto, e no Mar. Daqueles que vão amarrar os barcos em dias de temporal, daqueles que não hesitam em se meter em "águas revoltas" para ajudar os outros, os que cresceram e têm vivido uma vida de barcos e afins. Daqueles, alguns que já passaram por mais Marinas, Clubes Náuticos, varadouros e reparações que jamais a grande maioria dos projectistas passará alguma vez. Claro que não são os donos da verdade, ninguém é! Mas têm um capital de conhecimento que apraz registar, aproveitar e conjugar com aqueles que têm formação técnica, e com aqueles que planeiam. Será que não deviam ser ouvidos? Foram-no? É por tudo isto, e por muito mais, que aqui seria demasiado longo dissertar que lhe digo: "Histórias de barcos de recreio, lugares, quiosques e mais qualquer coisinha...", pergunte a quem sabe, porque há quem saiba, e são muitos. Basta tomar um cafezinho na Marina do Funchal, que estão lá todos. Disponíveis, como só os homens do Mar sabem estar, e gostam de estar”.

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